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Cultura

Arrastão Vinícius

Abaixo um seleção de canções do poeta para ouvir durante a leitura da reportagem a seguir. Aperte o play e aprecie a experiência. Caso não consiga visualizar, acesse aqui

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo*

Vinícius de Moraes, “único poeta brasileiro que ousou viver sob o signo da paixão”, nas palavras do poeta Carlos Drummond de Andrade, faria 100 anos em 19 de outubro. E talvez o maior feito do diplomata compositor tenha sido justamente sobreviver ao implacável tempo. Vinícius é sucesso incontestável, anda nos assobios, nas bocas e nas trilhas sonoras da vida de boa parte dos brasileiros; participa, portanto, do panteão daquelas figuras que com justiça desafiam a volatilidade de muitas das personalidades artísticas nacionais, sobretudo as celebridades. É chama eterna.

O escritor Wagner Homem, co-autor de História de canções: Vinícius de Moraes (Ed. Leya), admite em entrevista à Revista Giz que essa condição duradoura da memória e das obras do Poetinha chama mesmo a atenção. Também cantor, Homem conta que em suas apresentações sempre repara que há ali muita gente jovem e que mesmo os mais novos sabem cantar as músicas de Vinícius. “Não há quem não conheça Garota de Ipanema, ou Tarde em Itapuã. Já faz parte do saber tradicional de todos nós”, defende.

Se perguntassem ao escritor que outro brasileiro será reconhecido daqui a 200 anos, ele diria, após pensar um pouco, Oscar Niemeyer, “porque é um nome colado a uma obra que o tempo não vai destruir tão cedo. É uma construção física, concreta, feita para permanecer”, explica, para continuar o raciocínio: “mas nas artes é diferente, na música ainda mais, porque a música é efêmera pela natureza de sua linguagem. Mais que isso, a música durante o século XX foi controlada pela mídia, que é sedenta por novidades, por ídolos sazonais. Então Vinícius durar 100 anos no nosso imaginário é uma ruptura com um padrão que carregamos”.

“Dos anos 1950 para frente, Vinícius de Moraes foi a trilha sonora da história do Brasil”

E se dura, segundo o autor, é porque é bom. Muito bom. E quem gosta de música boa, ou muito boa, acaba chegando em Vinícius de Moraes, garante Homem. “Existe um movimento imperceptível à grande mídia de resgate da música brasileira de qualidade. Os jovens encontram e se surpreendem com Pixinguinha, Tom Jobim, Chico Buarque. E com Vinícius, claro”. Os parâmetros que Homem usa para afirmar que a obra musical de Vinícius é muito boa a ponto de sobreviver ao tempo? “Ele buscava muito e conseguiu fazer sempre uma música bela e simples, longe de uma erudição que impedisse o entendimento, a fruição. Mas ao mesmo tempo as letras flertam com questões universais, que nos tocam e por isso ficam”, sugere o autor de Histórias de canções: Vinícius de Moraes.

O poeta

Mas nem só de grandes canções viveu e permanece vivo o poeta. Homem não é especialista em poesia, mas alerta que essa outra faceta do centenário Poetinha também o faz encantar diversas gerações. Afinal, quem não conhece “que não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”, ou “filhos, filho, melhor não tê-los, mas se não tê-los, como sabê-los”. O crítico literário Eucanaã Ferraz, professor de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), reconhecido pesquisador da obra literária de Vinícius, orientou a dissertação de mestrado “Poesias esparsas de Vinícius de Moraes”, defendida por Daniel Vasilenskas em 2009, que propõe três pilares como base para a compreensão da poesia do homenageado: humor, risco e virtuosismo. Lá no meio do trabalho, o autor recorre ao maior crítico literário brasileiro, Antonio Candido, que ensina o seguinte: “A poesia de Vinicius de Moraes, em geral, ainda que afinada com extrema habilidade a uma consciência de tempo, cuja arte não se permitiu prescindir de um pacto entre a tradição e os elementos contemporâneos – resultando em uma consistente sobrevida atemporal –, serviu poucas vezes de modelo, nem mesmo como ascendente, de um ideário crítico-teórico prestigiado nas cátedras da segunda metade do século passado”.

“Como se buscasse o adulto que há na criança, ou a criança que vive no adulto, Vinicius entrou pela porta da frente no imaginário infantil num tempo em que as gravadoras agiam como se as pessoas só passassem a ter ouvidos a partir dos 16 anos.”

Homem completa o raciocínio: “Dos anos 1950 para frente, Vinícius de Moraes foi a trilha sonora da história do Brasil”. O escritor defende que nos idos dos anos 1950, sob a bandeira desenvolvimentista e o orgulho de ver um país que avançava, Vinícius cantou o rebolar da garota de Ipanema, que encantou os cariocas, os brasileiros e literalmente ganhou o mundo. “A Bossa Nova toca no mundo inteiro e é reconhecida como um gênero brasileiro, um sucesso global até hoje, exatamente como o espírito daquele tempo”. Depois Vinícius se une a Baden Powell e, juntos, resgatam a matriz africana e criam os sambas misturados com as batidas do candomblé, num resgate quase subversivo da história nacional. “Foi também uma virada fundamental na música e no posicionamento artístico. Havia uma provocação num tempo em que provocar era perigoso. Eram os tempos da ditadura militar”.

Na etapa seguinte, em parcerias afinadas com Edu Lobo, por exemplo, o Poetinha retoma o que havia de mais sofisticado na tradição musical brasileira e compõe peças como Arrastão, imortalizada por Elis Regina que, não por acaso, ganha o Festival da TV Record de 1965. O último grande parceiro foi Toquinho, com quem Vinícius atinge – ao mesmo tempo – algo que sempre quis na sua intimidade: “Músicas simples e bonitas e o inconsciente coletivo do brasileiro. São as canções de maior sucesso, que transferem algum orgulho de ser brasileiro aos brasileiros. Nessa mesma época começava o processo de abertura política”, relembra Wagner Homem.

No Jornal O Estado de São Paulo de 6 de outubro, o próprio Toquinho dá um depoimento que confirma as ideias de Homem: “Lançamos essa música [Como dizia o poeta…] no Teatro Castro Alves, levando desta vez a Marília Medalha para cantar com a gente. Esse show foi um risco, pois era quase uma afronta fazer e mostrar música brasileira numa época em que prevaleciam o tropicalismo, o rock, as guitarras. O show do dia 7 foi dedicado aos estudantes, que responderam com uma ovação memorável!”.

Obra infantil

Há ainda uma faceta viniciana que também explica sua resistência ao passar dos anos. O poeta escreveu para públicos diversos. As crianças brasileiras são, desde muito novas, apresentadas pelos pais e professores às trapalhadas do pato que tantas fez que acabou na panela. O jornalista Júlio Maria, no mesmo O Estado de S. Paulo de 6 de outubro, explica a grandeza da obra para os menores: “Como se buscasse o adulto que há na criança, ou a criança que vive no adulto, Vinicius entrou pela porta da frente no imaginário infantil num tempo em que as gravadoras agiam como se as pessoas só passassem a ter ouvidos a partir dos 16 anos. A Arca de Noé foi um assombro. Um punhado de 14 poemas, a maioria musicados por Toquinho, gravados por quem existia de melhor na MPB daquele início de anos 80. Milton e Chico cantavam A Arca de Noé; Elis cantava A Corujinha, Ney Matogrosso fazia São Francisco; Walter Franco ficava com O Relógio. O LP de 1980 virou fenômeno de vendas e, em 1981, veio o segundo, A Arca de Noé Volume 2, com mais artilharia pesada”.

 

“Não há quem não conheça Garota de Ipanema, ou Tarde em Itapuã. Já faz parte do saber tradicional de todos nós

É por isso que há, segundo o autor de Histórias de canções: Vinícius de Moraes, uma sensação de tranquilidade no que tange à obra infantil de Vinícius: é música e poesia de primeira qualidade, que vai passando de geração em geração. Não é modismo, não tem ofensa e sobra inteligência nas composições. Pode-se dizer que, novamente aqui, aparecem humor, virtuosismo e risco. Aliás, esse último foi objeto de reflexão do escritor e crítico de arte e literatura Sergio Milliet, citado na já indicada dissertação de Daniel Vasilenkas: “Estamos, com Vinicius de Moraes, sempre à beira do abismo, o abismo do preciosismo. Mas o poeta é um guia seguro. Conhece os lugares perigosos e às vezes não resiste ao prazer de nos meter medo. Mas nos segura logo pelas vestes e nos repõe no bom caminho. E tenho a certeza de que nunca se deixará arrastar, ele próprio, pela tentação do simples paradoxo ou do malabarismo estéril. Ele tem muito que dizer para dedicar-se em definitivo a tais jogos pueris”.

Vinícius nas escolas

Para concluir e alertar aos professores – ainda que isso não seja de todo necessário, por que já está solidificada a ideia de que Vinícius de Moraes é um dos grandes da cultura brasileira: o centenário poeta merece ser tema de aulas e de folguedos nas escolas.

Aqui, é bom lembrar o que o crítico literário Antonio Candido, citado na dissertação orientada por Eucanaã Ferraz, afirmou: “se hoje dermos um balanço no que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda corrente e linguagem de todos”.

Imagens: Acervo VM Cultural

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“Vinicius – Poesia, música e paixão”

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Vinícus de Moraes

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