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Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, talvez nem imagine, mas sua política nada cidadã ou civilizada de espionar o Brasil acabou dando um empurrãozinho para o Congresso Nacional finalmente votar o chamado Marco Civil da Internet. Trata-se de uma lei que pretende garantir, ao mesmo tempo, que a rede torne mais difícil o desrespeito a direitos civis elementares – como a igualdade entre os cidadãos e a privacidade –, além de procurar promover o avanço de outros desses direitos – como o acesso à cultura, ao conhecimento e a liberdade de expressão.

O projeto tramitava desde 2011 na casa legislativa brasileira, sempre alvo de muita discussão, mas não chegou a ser votado por esbarrar em forças poderosas que impediam o avanço da iniciativa. Quando, há alguns dias, o esquema de monitoramento e arapongagem estadunidense foi revelado, criou-se a situação política ideal para a presidente Dilma Roussef pedir urgência na votação da proposta, que tem como relator o deputado federal Alessandro Molon, do PT-RJ. “O que pegou para a presidente foi a questão do direito à privacidade, que é tratado no projeto do Marco Civil da Internet e procura garantir que nenhum brasileiro tenha seus dados violados”, explica o advogado Carlos Affonso Souza, diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (CTS/FGV).

Privacidade, embora seja um dos mais relevantes e delicados, é apenas um dos muitos princípios tratados no projeto. Souza, que também é professor de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em direitos na internet, explica que há outros valores e discussões em jogo quando o assunto é a rede mundial de computadores. “A discussão vai muito além da questão tecnológica, na verdade, estamos falando de cidadania, dos direitos mais elementares e, por isso mesmo, trata-se de ideias que fazem avançar a sociedade”, reforça.

As bases da lei

A história, para que se compreenda bem, tem início em 2009, quando o Ministério da Justiça propôs a criação de um site com um fórum de discussões entre cidadãos interessados em dar ideias e fazer propostas para melhorar o processo legislativo no país usando a internet. “Deu certo, deu muito certo. Daqueles debates online, abertos à população, nasceram as bases da lei de Direitos Autorais, que começa a ser discutida agora, a renovação do código de processo civil e outras leis importantes”, lembra Souza. Ele completa: “Foi um dos primeiros casos de inteligência coletiva no país para ajudar a criar leis. Foi tão eficiente que a Islândia repetiu a fórmula para rediscutir a Constituição do país”.

A ideia é que a rede deve ser sempre usada em sua totalidade, não pode haver ferramentas para quem paga mais, porque seria uma espécie de discriminação. Se não se aceita essa postura na sociedade, também não se pode aceitar na rede.

Nesse contexto de cooperação, as mesmas pessoas que conversavam sobre melhoria do processo parlamentar via internet começaram uma reação a uma discussão que crescia no país por conta de uma série de projetos de leis que estavam sendo apresentados no Congresso, referentes à regulamentação da internet. “Naquele momento, em 2009, toda essa regulamentação estava pautada na criminalização. Ou seja, definiam o que podia e o que não podia na internet do ponto de vista da punição de Estado”, coloca Souza. Acontece que não se deve discutir punibilidade quando os princípios norteadores ainda não foram traçados, solidificados, difundidos. “Em outras palavras, a internet funda uma nova cultura, com características e peculiaridades muito próprias, o que abre necessariamente um espaço para discussão”, propõe o diretor do CTS/FGV.

São comportamentos, ações e padrões que, antes da internet, não eram nem imaginados, ou eram vistos com viés do “errado” e passaram a ser tolerados, aceitos e até incentivados. É o caso do compartilhamento de fotos, vídeos pessoais ou obras de terceiros. “A internet vem, se impõe e impregna nossos hábitos e percepções, de forma a mudar os padrões. As reações vieram porque entendemos que era preciso oficializar essas mudanças”, reforça Souza. O que os pensadores dos novos processos de comunicação perceberam muito rapidamente é que, por um lado, a web amplia de forma espantosa alguns dos direitos mais almejados pelos seres humanos: troca, diversidade, liberdade de expressão, aglutinação política. E, no outro lado da moeda, a rede é também uma ferramenta poderosa para romper a privacidade, romper liberdades. Assim, o plano era, desde 2009, potencializar a primeira parte e impedir a segunda. Como? “Com um Marco Civil, amplamente discutido”, responde o professor da UERJ.

Interesses contrários

Começam as discussões – e a proposta vira um projeto de lei. O relator, desde sempre, foi o deputado Alexandre Molón, que apresentou a ideia ao Congresso em 2011 e desde então espera por votação. “Eu já passei por seis vezes pela expectativa de que fosse finalmente votado. E não foi”, brinca Souza. Apesar do bom humor, o advogado especialista em internet explica que o Marco Civil toca em questões muito nevrálgicas para a sociedade atual, ao mesmo tempo que afronta grandes grupos econômicos e, por isso nunca se conseguia aprovar a iniciativa em plenário.

Mas quais seriam afinal essas forças que impediram o projeto de ir adiante? O especialista responde dizendo que há três pontos mais delicados no projeto e que mobilizam essa oposição: a neutralidade da rede, a retirada de conteúdos e a privacidade. O primeiro é, certamente, o mais difícil de alcançar consenso. “Neutralidade da rede é um conceito que, nas palavras do Carlos Afonso, do Comitê Gestor da Internet, pode ser explicado pela seguinte frase ‘todos os dados são iguais perante a rede’”. Traduzindo, neutralidade da rede é um princípio que garante que todas as condições que circulam na internet não podem ser discriminadas por origem, destino e, principalmente, por conteúdo.

Para explicar um pouco mais: as operadoras de internet não poderão impedir que usuários da internet desfrutem de todos os recursos existentes na rede por conta do valor da mensalidade paga. “Aquilo que as operadoras de TV a cabo fazem de oferecer mais ou menos recursos dependendo do pacote contratado não poderá se repetir na web”, ensina o professor da UERJ. A ideia é que a rede deve ser sempre usada em sua totalidade, não pode haver ferramentas para quem paga mais, porque seria uma espécie de discriminação. Se não se aceita essa postura na sociedade, também não se pode aceitar na rede.

Souza sinaliza que esse é o ponto que dá um nó. Primeiro, porque as operadoras de telefonia consideram que há nesse princípio um impedimento a modelos futuros de negócio e, assim, se colocam frontalmente contra o Marco Civil. Outra ponta desse nó é a natureza subversiva da ordem social que conhecemos. A vida digital passa a ser um modelo mais democrático e respeitoso das igualdades e das diversidades que a vida real. Essa ideia pode ser um tanto perturbadora para quem não é muito afeito a mudanças.

E as provocações seguem. O segundo ponto polêmico que até então vinha travando a votação é a questão da retirada imediata de conteúdos da rede. As leis que foram apresentadas antes no Congresso previam que os provedores se responsabilizariam pelo que fosse publicado e, em caso de notificação por ofensa ou dano, deveriam retirar imediatamente do ar aquele conteúdo. Onde a situação complica nesse caso? Os provedores ficam numa situação muito ruim, porque, se cumprem a determinação, jogam a internet num estado disforme, sem a variedade e a diversidade que lhe são peculiares e constitutivas; segundo, porque haveria uma espécie de censura privada, porque todos teriam muito medo de bancar um comentário, um post, uma foto e serem notificados e até processados por isso.

“A questão do direito à privacidade, que é tratado no projeto do Marco Civil da Internet e procura garantir que nenhum brasileiro tenha seus dados violados”

Mudaria, assim, a natureza da internet, que é de promover a liberdade de expressão, o debate, a troca e o confronto de ideias. Souza explica que a solução encontrada pelo Marco Civil é que o provedor só deve retirar o que for objeto de ordem judicial. Se um juiz, a partir do pedido de uma parte, entender que algo é ofensivo, pode pedir a exclusão do material. No entanto, o provedor não será obrigado a fazê-lo. “A crítica aqui é à burocratização. No nosso entendimento, estamos garantindo o direito à liberdade e a heterogeneidade e desestimulando notificações e ações judiciais, o que ajuda a preservar o espírito da rede”, defende. Para além dos imbróglios de ordem administrativa e operacional, o Marco Civil se posiciona aqui no sentido de proteger e incentivar a prática do debate, que ainda é recente no Brasil, porque também nossa democracia ainda é jovem, mas que é um caminho sofisticado para aprofundar e radicalizar certos valores democráticos.

E neste ponto, o diretor do Centro Tecnologia e Sociedade alerta para uma pequena modificação que foi feita no texto original. Toda essa configuração valerá para todos os casos, menos em possíveis notificações sobre direitos autorais. “É delicado porque deixa um flanco aberto para outra distorção dos princípios da internet – que é o compartilhamento de conhecimentos e bens culturais – mas, por outro coloca essa discussão na seara da Lei de Direitos Autorais que está em processo de discussão neste momento”, afirma Souza. Esse adendo também tirou os produtores de conteúdo – como editoras e gravadoras musicais – da linha de confronto direto com os defensores do Marco Civil. Esse grupo deixa de ser contrário ao projeto porque já não vê ali uma ameaça a seu negócio. É, portanto, um obstáculo a menos.

Privacidade

O terceiro tópico polêmico do Marco Civil é também o centro do mal estar entre o governo brasileiro e o norte-americano: a privacidade. A presidente Dilma pediu urgência na votação justamente para garantir que, no máximo em 45 dias – sob risco de travar a pauta do Congresso –, nenhum brasileiro tenha seus dados violados através da internet. E é nesse aspecto que desponta a única dúvida do Marco Civil, na opinião de Souza. Dilma disse que gostaria de ver disponíveis datacenters no Brasil, para armazenar dados de brasileiros e, assim, não haver mais invasões dessa natureza.

“A discussão vai muito além da questão tecnológica, na verdade, estamos falando de cidadania, dos direitos mais elementares e, por isso mesmo, trata-se de ideias que fazem avançar a sociedade”

“Vejo algumas questões aí. Como você garante quem é brasileiro na rede? Como assegura que um dado veio mesmo do Brasil? Há mil mecanismos para burlar tudo isso. E, mais, aprisionar dados no Brasil é impedir a troca, outra característica da internet”, alfineta. Empresas estrangeiras teriam mais dificuldades para operar aqui. Países estrangeiros, pelo princípio da reciprocidade, também poderiam exigir que empresas brasileiras que atuam lá tivessem centrais de dados naqueles países. Enfim, impedimentos de várias ordens. Entretanto, a principal fonte de preocupação para o advogado é que o Brasil não tem uma lei geral para proteger os dados pessoais dos cidadãos, dentro ou fora da internet. Se não se legislou sobre isso, não se discutiu, não há parâmetros. Por isso mesmo, Souza não consegue prever como ficará o texto final nesse quesito.

Para finalizar, o professor da UERJ faz questão de se mostrar tranquilo no que diz respeito ao projeto que deve ser votado nos próximos 30 dias – uma vez que o prazo da urgência já começou a correr. Porque foi muito conversado, discutido, pensado e repensado. “Ele é principiológico, ou seja, discorre sobre princípios que não mudam, mesmo que a tecnologia avance, ou que as configurações sociais sejam outras”. Por isso mesmo, contempla todos os pontos que asseguram cidadania e direitos civis amplos aos usuários, garante Souza.

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Documento favorável ao projeto do Marco Civíl foi assinado hoje por países como Rússia, Índia, China e África do Sul.

Fonte: Estadão.com.br – Portal de Política

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