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Cultura

Tzvetan Todorov

By 17/02/2017No Comments

Por Ailton Fernandes *

Nenhum fato na longa história do mundo é tão chocante como os amplos e repetidos extermínios de seus habitantes.

                         Charles Darwin

A matéria-prima da História é o estudo do passado na esperança de que consigamos desvendar seus processos históricos e as relações intrínsecas observadas neles. De posse desse conhecimento, atuar para que não se repitam mais erros e buscar a evolução daquilo que deu certo.

A humanidade ainda tem muito que exercitar e aprender dessa dimensão do conhecimento…

Marx e o seu materialismo dialético; Jacques Le Goff e sua percepção da longa duração do tempo; Weber e sua teoria da estrutura social a partir dos estamentos; Hobbsbawn e a sua multicompreensão da História. Enfim, inúmeros pensadores deram grande contribuição a essa busca de compreensão da evolução humana.

O ano de 2017 nasce com a perda de um desses intelectuais que ousaram pensar um processo histórico sob uma perspectiva nova. Quando Tzvetan Todorov se debruça sobre o longo processo de conquista da América ele busca compreender todos os aspectos que provocaram tal tragédia.

É evidente que ele considera a descoberta da América e sua colonização como um desdobramento da crise europeia da alta Idade Média e ação da burguesia como agente motor desse processo.

Também não deixa de citar e analisar a centralização do poder monárquico e o gerenciamento que esse fará do processo ao mandar caravelas por todo um mundo ainda desconhecido.

Mas Todorov utiliza grande parte de seu livro A Conquista da América para pensar como o outro agente dessa conquista se portou, ou seja, como os conquistados se reagiram à sua dominação, na verdade a grande vítima de um processo essencialmente violento.

Assim como Hannah Arendt questiona o porquê da passividade dos judeus ao longo do holocausto, Todorov também procura entender a aparente passividade das civilizações pré-colombianas ao longo dos séculos XVI e XVII.

Importante ressaltar que também houve resistência por parte dos nativos americanos, como no caso de Tupac Amaru no Peru e tantos outros exemplos.

Mas apesar do maior número de pessoas, apesar dessas civilizações também serem imperialistas e, portanto, guerreiras; apesar do profundo conhecimento do seu território, essas civilizações pereceram no contato com o europeu. Por quê?

Somente a posse de armas de fogo, do aço das espadas e dos diversos vírus trazidos pelos europeus (e que os ameríndios não tinham anticorpos) explica essa derrocada?

Cito Todorov no livro acima mencionado;

Cortez compreende relativamente bem o mundo asteca que se descobre diante de seus olhos, certamente melhor que Montezuma compreende as realidades espanholas. E, contudo, essa compreensão superior não impede os conquistadores de destruir a civilização e a sociedade mexicana; muito pelo contrário, tem-se a impressão de que é justamente graças a ela que a destruição torna-se possível. Existe aí um encadeamento terrível. Em que compreender leva a tomar, e tomar a destruir, encadeamento cujo caráter inelutável gostaríamos de colocar em questão. A compreensão não deveria vir junto com a simpatia? E ainda, o desejo de tomar, de enriquecer à custa do outro, não deveria predispor `a conservação desse outro, fonte potencial de riqueza?

Aí está uma outra abordagem, nova, feita por Todorov, quase como uma psicanálise social ele indaga o que levou à destruição de um povo, sendo ele um potencial gerador de riquezas infinitas, a ser violentado por seus algozes.

Mais ainda: os primeiros contatos entre nativos e invasores foram, na imensa maioria das vezes, pacífico, inclusive tendo sido os europeus muito bem recebidos pelos povos aqui existentes. Montezuma teve Cortez como hóspede em seu palácio.

O interesse indígena na cultura invasora, o medo do sobrenatural, a ideia de que os conquistadores eram deuses que vinham para julgar as ações dos nativos, tudo isso criou um imaginário de medo, superstição e respeito excessivo ao invasor. Conforme se viu mais tarde, esse receituário foi determinante para a derrota dos nativos.

Tivessem os nativos americanos uma pálida ideia que seja dos interesses e da cobiça espanhola, talvez a resistência teria sido muito maior.

Aí reside a tese de Todorov: a conquista do México só foi possível graças ao fato de que Cortez não era um conquistador qualquer, mas sim um conquistador imbuído da ideia da conquista plena e para isso sabia que seria necessário entender como o potencial inimigo pensava.

Pegue-se o exemplo de sua melhor estratégia: ao obter uma escrava de nome Malinche, Cortez observou que essa mulher seria essencial para os seus planos, pois ela não apenas conhecia a língua espanhola, como também os idiomas Asteca e Maia. Alguns ao se referirem a ela a chamam-na de traidora, pois foi usada por Cortez, mas Todorov ressalta que ela também era uma escrava asteca, que ela também tinha aversão aos seus senhores e não vê neles aliados, mas sim algozes. Ademais Todorov afirma que Malinche foi a primeira a iniciar o profundo processo de miscigenação que se observou no México nos séculos seguintes. Mais ainda: não eram apenas as diversas línguas que Malinche dominava; ela também conhecia a alma dos astecas e maias, por isso foi o principal instrumento que Cortez utilizou para sua estratégia de dominação através do terror. Nem as guerras totais do século XX alcançaram número tão assombroso de mortos.

O resultado desse processo pode se observar na terrível constatação que Todorov faz:

(…) Sem entrar em detalhes, e para dar somente uma ideia global (apesar de não nos sentirmos totalmente no direito de arredondar os números em se tratando de vidas humanas), lembraremos que em 1500 a população do globo deve ser da ordem de 400 milhões, dos quais 80 milhões habitam as Américas. Em meados do século XVI, desses 80 milhões, restam 10. Ou, se nos restringirmos ao México: às vésperas da conquista, sua população é de aproximadamente 25 milhões; em 1600, é de 1 milhão. (…)

Sempre que trabalho esse conteúdo em sala de aula pergunto aos alunos: quem se prejudica com o fim de uma civilização, somente ela ou a humanidade como um todo? Com o desaparecimento de qualquer cultura, desaparecem com ela também os seus conhecimentos nas diversas áreas. Incas, astecas, maias, quichuas e todos os outros povos desaparecidos guardavam conhecimentos milenares nas mais diversas áreas do saber, como a medicina, por exemplo. Ao se destruir um povo, perde-se também esse conhecimento e a humanidade patina na sua evolução.

A perda de Todorov, no momento histórico que estamos vivendo, é grande. Vemos em toda parte do mundo um recrudescimento das relações sociais. Pegue-se a crise dos imigrantes sírios e africanos na Europa. A lição dada por Todorov não foi apreendida, pois não se observa nesse processo uma compreensão desses povos, do outro, não se compreende os motivos que levaram a essa imensa onda migratória e, portanto, a solução que se coloca é terrível, com a criação de campos de refugiados e a profunda aversão contra esses povos.

Pegue-se outro exemplo, a política do novo governo estadunidense, com a construção de muros e negação de vistos para imigrantes. Não há aí também um desrespeito a povos que, com certeza, contribuíram para o processo civilizatório da humanidade?

O alerta dado por Todorov no caso estudado da conquista da América não está sendo ouvido pelos governantes atuais, portanto a iminência de uma nova tragédia nos moldes daquele processo é muito grande.

Ainda precisamos exercitar muito o aprendizado da história.

*Aílton Fernandes é professor de História da rede pública e particular e diretor do SinproSP


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