Skip to main content

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

No dia 05 de setembro de 2019, o governo federal lançou o seu “Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares”. O projeto, que já conta com previsão de R$ 54 milhões em orçamento, pretende chegar a mais de 200 escolas até o final de 2022. Na prática, a militarização consiste em entregar a gestão (administrativa e pedagógica) de instituições públicas de ensino para militares. Na semana passada, em mais um movimento dessa tragédia anunciada, começou a ser distribuído pelo Ministério da Educação o manual que pretende regulamentar o cotidiano dessas instituições. 

Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), estuda esse tema há anos e, nos últimos meses, vem se concentrando nele também como parte de sua pesquisa no pós-doutorado, realizada na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (FE/Unicamp). Em entrevista exclusiva à Revista Giz, ela critica duramente a proposta – que chama de o “ato final” de uma marcha conservadora em curso no país. 

“Os oficiais estão controlando a administração, a disciplina e implementando novas matérias como Civismo, Moral e Cívica e Ordem Unida”, afirma a pesquisadora, também coordenadora da “Campanha Nacional Pelo Direito à Educação/Comitê DF”. Para ela, no entanto, a questão ainda mais profunda que a militarização traz é o ataque à natureza e ao sentido da escola pública. “O controle das identidades, por exemplo, fala muito alto. Cabelo afro não pode, relações homoafetivas não são toleradas, coletivos feministas também não, inclusão de alunos trans com nome social, nem pensar. Percebe como isso vai apagando o que os estudantes tinham como direito? Ao mesmo tempo, as aulas – onde o debate se dá – são filtradas, o conteúdo a ser ensinado precisa passar pelo crivo dos gestores militares. As estruturas ficam muito hierárquicas e o debate de qualquer natureza não é bem visto. É um golpe duro na juventude, que está ameaçada de perder a identidade, a ação, os desejos e os sonhos”. 

Os melhores trechos da conversa você confere a seguir.


Professora, de forma mais precisa e objetiva, o que são as escolas militarizadas?

Primeiro, é muito importante diferenciar escolas militares, que pertencem às corporações, e as escolas militarizadas, que fazem parte da rede pública e são sustentadas pelas Secretarias de Educação. As escolas militares pertencem ao Exército, à Polícia Militar e ao Corpo de Bombeiros. São cerca de 13, em vários estados do país. Há ainda algumas escolas particulares, pertencentes a associações de familiares de militares, que usam o nome da Polícia Militar, por exemplo, mas não pertencem às corporações de fato. Em São Paulo tem, em outros estados também. Mas essas últimas são escolas particulares que usam a reputação da polícia, mas nem são das corporações militares e nem formam militares, são escolas comuns, de ensino fundamental e médio.

Essas são escolas já antigas, sem relações mais próximas com esses processos e projetos mais recentes? 

Existem há muito tempo e sempre estiveram ligadas às corporações, de forma que recebem verbas das Secretarias de Segurança e não da Secretaria de Educação. Isso é muito importante de entender, porque reforça o alinhamento de cada escola.

E as escolas militarizadas…

São escolas públicas, municipais e estaduais, sustentadas pelas secretarias de educação e que devem responder às leis federais presentes na Constituição. E aqui inicia a grande questão. O professor do ensino básico no Brasil, assim como as escolas de ensino básico, deve atender aos requisitos legais, descritos na Carta Magna, e não há nenhuma base legal para amparar a gestão de escolas públicas e delegar o ensino nessas instituições a militares, ativos ou da reserva. É um desrespeito à Constituição Federal.

Ainda antes de entrarmos mais a fundo nessa questão legal… o que propõem essas escolas públicas militarizadas?

Do final de 2017, quando saiu a portaria, para o final de 2019, já são cerca de 300 escolas públicas militarizadas. O boom das escolas municipais, no entanto, se deu em 2019, depois da ascensão do atual governo, que estimula as parcerias e a militarização. Uma escola militarizada é, na prática, uma instituição gerenciada por militares, portanto alinhada aos valores militares, mas que precisa seguir a Lei de Diretrizes e Bases. A população conhece essas escolas pelos resultados anunciados: dizem que não há evasão, não tem repetência e tem segurança. De fato, os colégios militarizados são focados em resultados e, para atingir essas metas, têm pré-requisitos bastante rígidos, que seguem com disciplina. A comunidade, os professores e as autoridades da educação daquele município simplesmente devem se adaptar.

Ou seja, além do desrespeito à Constituição, as escolas públicas militarizadas deixam de ser o lugar da inclusão, da sociabilidade e da diversidade?

Exatamente. As escolas militarizadas selecionam o público, têm critérios para aceitar e manter um estudante. Então, se os gestores militares entendem que não pode ter aluno com muitas repetências e, portanto, muito mais velhos que os colegas daquela classe, os meninos e as meninas nessa condição são retirados da escola. Não importa a trajetória para aquele estudante ter chegado ali com aquela idade. Se não combina, está fora. O mesmo vale para a Educação de Jovens e Adultos, o EJA. Escolas Militarizadas têm a prerrogativa de não aceitar EJA. Assim, eles reduzem a evasão, diminuem os casos de repetência e até melhoram a quantidade de ocorrências violentas. É a pedagogia da obediência. Quando se avalia essas condições isoladamente, é claro que a população vai defender e desejar uma escola assim para seus filhos. O que não se mostra é essa seleção inconstitucional do público. 

Voltando à questão legal… por que a senhora diz que a escola militarizada existe ao arrepio das leis?

Porque não há na Constituição Federal, ou na LDB, qualquer figura que trate da gestão de escola por grupos militares. Mesmo nos artigos que regem a formação e atuação de professores, nada há sobre essa possibilidade. Para não deixar de explicar, a lei fala, sim, da formação do profissional militar, das academias de formação de oficiais, como Agulhas Negras, por exemplo. Os oficiais da reserva que estão sendo destacados para administrar escolas não têm formação para atuar na educação básica, não existe essa figura do professor militar.

Então como estados e municípios estão militarizando suas escolas?

Burlando a Lei! Ferindo a Constituição através de atos, portarias e leis estaduais. Em alguns municípios, não dá nem para saber como está sendo feito, porque não há publicação dos atos, o que é mais grave ainda, porque fere o princípio constitucional da publicidade. O governo federal se baseia em consultas à população, que apoia em larga escala a militarização. No entanto, a população não é legisladora e não pode, mais ainda, legislar sobre algo que não está previsto na Constituição. E é claro que a população quer uma escola de melhor qualidade, quer que os filhos progridam, que se saiam bem em provas, que estejam seguros, etc. E é claro que as autoridades educacionais precisam olhar para isso tudo. Mas, decididamente, não são os militares os mais aptos a enfrentar essas questões todas.

Nas entrelinhas… o que está por trás da implantação das escolas militarizadas?

O Brasil vive um momento de profundo conservadorismo, uma guinada no sentido contrário de todos os avanços que vinham, lentamente, se dando no campo dos direitos sociais, da busca por igualdade de condições, como a criminalização da homofobia/LGBT+fobia, a Lei Maria da Penha, a Lei das Empregadas Domésticas, as Cotas, etc. Todos esses avanços desnudam práticas sociais muito arraigadas na sociedade brasileira. E onde esse debate acontece e deságua? Na escola. Fundamentalmente na Escola Pública, a casa da igualdade, da inclusão. De alguma maneira, é nas escolas que se trata da orientação sexual, do controle da natalidade, do direito das mulheres, do lugar das chamadas minorias, da proteção às crianças, do combate ao abuso sexual. É, por tudo isso, a instituição que mais afronta a estrutura patriarcal, machista e oligárquica brasileira.

O que a senhora sugere é que a militarização é mais um movimento para conter os avanços progressistas?

A militarização é o ato final, o ato mortal nessa marcha. Os ataques ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, e o Escola sem Partido são tentativas nesse sentido. A militarização é verdadeiramente a maior tentativa de controle já vista. Controle da escola, dos corpos, dos pensamentos, dos desejos e dos sonhos. Uma tentativa de botar o estudante no devido lugar e, para isso, coloca-se a polícia na escola.

O que acontece numa escola depois que ela é militarizada? Essa questão do controle, por exemplo…

Se a ideia é ter um público selecionado e atendido sob os valores da obediência, o que acontece é um silenciamento das identidades, um apagamento do agir dos meninos. O controle das identidades, por exemplo, fala muito alto. Cabelo afro não pode, relações homoafetivas não são toleradas, coletivos feministas também não, inclusão de alunos trans com nome social, nem pensar. Percebe como isso vai apagando o que os estudantes tinham como direito? Ao mesmo tempo, as aulas – onde o debate se dá – são filtradas, o conteúdo a ser ensinado precisa passar pelo crivo dos gestores militares. As estruturas ficam muito hierárquicas e o debate de qualquer natureza não é bem visto. É um golpe duro na juventude, que está ameaçada de perder a identidade, a ação, os desejos e os sonhos. As corporações de segurança, a polícia, o exército e os bombeiros, conseguem impor esse sistema facilmente: quem obedece fica, quem não obedece sai. 

Qual será a cara do Brasil se a militarização das escolas se concretizar?

Nosso modelo de escolas públicas era o da universalização. Com os militares, será o da seleção. Não será mais a escola para todos, será um lugar para os obedientes. Em termos reais, não há militares suficientes para colocar no comando das escolas municipais e estaduais. São cerca de 180 mil escolas da rede oficial de ensino no país, não existem tantos oficiais preparados assim. Mas se uma escola por município for militarizada já serão quase 6 mil propagando a forma de ação e a política de resultado das corporações. A comparação com as demais escolas da rede será inevitável e os números frios são incontestáveis. Ainda estamos muito perto dos fatos, mas o tempo e a história devem confirmar que silenciar a identidade e o comportamento dos jovens faz avançar pouco a diversidade, os direitos, a liberdade. Estávamos engatinhando nessa construção das liberdades amparadas pelo Estado e voltamos para um estágio pré-1964, com exclusão de garantias básicas. É grave. 

Diante de tudo isso que a senhora expôs, o que se pode fazer? Como enfrentar esse ataque perverso?

Primeiro, precisamos falar sobre isso, com todas as palavras apropriadas para definir os acontecimentos. Depois, devemos ouvir as queixas e demandas dos pais e dos alunos. É um pedido justo que os filhos não passem de ano sem aprender. É um pedido justo ter aula e professor para todas as disciplinas. É um pedido justo ter alimentação de qualidade na escola. É um pedido justo o crime não acontecer perto, ou dentro da escola. Estamos perdendo o debate, porque não temos respostas para essas situações concretas e reais. No entanto, precisamos contar aos pais e alunos que não é a Polícia, ou Exército que podem melhorar a qualidade da educação, da merenda, das aulas. Os oficiais não são preparados para isso, que solução podem trazer? O trabalho deles é evitar que o crime ameace os estudantes e a comunidade escolar, mas antes de ele entrar nos muros da escola. Lá dentro, é lugar de professor bem formado e bem remunerado, de corpo diretivo bem formado e comprometido e não de polícia, que tem um papel fundamental, mas na cidade, nas ruas. Precisamos dialogar com perspectivas e soluções. Estamos falhando nisso. Na sala de aula, vamos fazer perguntas: sobre o futuro, sobre os sonhos, as perspectivas e sobre a realidade dos estudantes. Temos de encarar questões tão duras, quanto urgentes, sobre o tráfico de drogas, as milícias, as chances de futuro, os índices de mortalidade, principalmente de pretos, pobres e periféricos.

E a via da Justiça, já que a militarização fere a Constituição?

É outro caminho possível. Os sindicatos e associações de professores podem também proporcionar debates e, paralelamente, entrar com ações na Justiça, provocar o STF para que ele se coloque, sobre a inconstitucionalidade. Neste ponto, o ideal é que pessoas jurídicas, e não físicas, iniciem o debate. Mas, acredito muito que o debate deva se dar na escola, onde acontece o problema. Pais e mães de alunos que sofreram algum tipo de assédio, pressão ou maltrato por parte dos gestores militares precisam dar a sua versão, contar para os outros pais que a escola militarizada é o avesso da escola pública, enquanto uma seleciona e oprime, a outra abraça. 

Comentários