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Por Elisa Marconi Francisco Bicudo

Lançado em junho passado, “A classe trabalhadora – de Marx ao nosso tempo” é a obra mais recente do historiador Marcelo Badaró Mattos. Professor de história do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF), ele vem se dedicando ao estudo do proletariado brasileiro nos últimos 30 anos e, entre pesquisas e publicações, entendeu que o momento era adequado para fazer um bom apanhado de sua produção, com objetivo de reafirmar que a chamada classe trabalhadora ainda é, sim, uma categoria de análise tão válida quanto atual. “A metade da riqueza do planeta está retida nas mãos de 1% da população. Nesse mundo desigual, compreender o que é e quem é a classe trabalhadora é um passo fundamental para entender os desafios de nosso tempo”, avalia.

O pesquisador lembra que o conceito de classe trabalhadora, construído ainda no século XIX, aparece de forma difusa em diferentes textos dos filósofos Karl Marx e Frederic Engels. “Marx parte das relações de trabalho e dos recursos que cada sujeito tem para que a produção se efetive”, inicia o autor. “Se ele tem ferramentas, ou terras, ou animais, ou matéria-prima, por exemplo, é um capitalista. Se não tem mais nada e só conta com sua força de trabalho, alugada em troca de dinheiro, então é um trabalhador”, explica. Para Badaró, o mundo mudou, bens e produtos desejados e negociados se transformaram com a marcha dos acontecimentos, mas essa relação capital-trabalho vem se mantendo em evidência, em maior ou menor grau. Afinal, hoje, como ontem, quem é o trabalhador? São homens e mulheres, a maioria das pessoas que vivem sob o capitalismo e que, despossuídos de meios próprios para sobreviver, optam por vender suas forças de trabalho, em nome de remunerações que são variadas e podem vir de diferentes fontes.

“É uma relação que se generalizou nos últimos dois séculos, principalmente porque faz muito pouco tempo, em nível global, que o número de habitantes das cidades ultrapassou os camponeses”, sugere o professor da UFF. Existe, como essa percepção indica, uma relação direta entre os expropriados – expulsos de suas terras por razões distintas – e o crescimento do proletariado. “Se pensarmos o mundo todo, não tem uma década que a população urbana passou a rural. No Brasil tem mais tempo, cerca de 40 anos, mas no mundo todo é fenômeno recente”, reforça. Ele prossegue: “o que acontece com essa gente toda quando deixa o campo? Vai tentar virar trabalhador na cidade”. Os cálculos variam um pouco, mas o número adotado por Badaró no livro é de 3,5 bilhões de pessoas vivendo de sua força de trabalho, um número expressivamente superior ao dos tempos de Marx e Engels. “Ainda que números e realidades tenham variado de lá para cá, é importante frisar: o sentido não variou”, faz questão de insistir.

A armadilha, sugere o autor do livro, está justamente em não reconhecer essa condição de exploração. Há uma coleção de memes muito conhecida que corre nas redes sociais e diz que “Falta Amor em SP”. Um segundo responde a esse primeiro, lembrando que “falta amor e falta interpretação de texto”. Por fim, um terceiro quadrinho conclui: “Falta amor, falta interpretação de texto e falta identidade de classe”. Talvez uma das mais significativas transformações vividas pela classe trabalhadora, do século XIX para os tempos atuais, seja justamente essa sacada que circula no facebook, whatsapp e outras redes. Contemporaneamente, trabalhadores e trabalhadoras parecem ter muito mais dificuldades – ou até mesmo repulsas – em se enxergarem como tal. Os impactos são consideráveis.

“É notável como as ideias das classes dominantes penetram no mundo do trabalho e modificam, ou perturbam, a noção que o trabalhador tem de si mesmo”, resume Badaró. Conceitos como empreendedorismo e liderança e iniciativas como as microempresas individuais, as MEI, ou ainda o serviço sob demanda, nublam as percepções e por vezes fazem o trabalhador repetir – e acreditar – nas palavras motivadoras de seus contratantes. “Até o funcionário, ou empregado, virou colaborador. O embate entre as classes some e embota a compreensão, porque os limites entre as camadas se dissolve”, provoca o escritor. Não é que no passado essa guerra de discursos não existisse; hoje, no entanto, a receptividade do trabalhador mudou, porque o cenário mudou e a simbologia, ainda mais.

“O individual suplantou o coletivo”, diz o professor da UFF. “Vemos e ouvimos tanto esse discurso que premia o melhor, destaca a meritocracia, que fica fácil acreditar nele. É o tempo do ‘basta querer para conseguir, empreenda, lidere e vença’, é o tempo do Uber e do Rappi, você quer, você tem”, continua Badaró. Seria só egoísmo se não esbarrasse num ponto grave: só é possível ter consciência de classe se você se vê como pertencente a uma classe, a um coletivo (grupo que é mais forte que a soma das forças individuais). E o trabalhador não se vê? “Naturalmente não, porque essa visão é ou deveria ser uma construção”, responde. Sem alfabetização para a coletividade, o ser humano só se defende e busca conseguir vantagens só para si. O resultado é que mesmo que as classes dominantes não façam muita pressão, trabalhadores já concordam com esse discurso, muito benéfico para os capitalistas, já que desmobiliza os operários. Sem se ver como um trabalhador, é impossível resistir como um trabalhador e cobrar melhorias para toda a classe – como sugerem os escritos de Marx e Engels.

Outra manifestação do sintoma da doença causada por individualismo mais economia líquida é o trabalho sob demanda, também chamado de uberização da mão-de-obra. A ideia é que o capitalista – outrora empregador, agora um aplicativo – contrate alguém apenas para a realização do serviço pontual, sem nenhum vínculo, sem responsabilidades, apenas entregas pré-acordadas. E, se o trabalhador não tem chefe nem patrão, se não tem local de trabalho, não tem rotina fixa, se não usa as ferramentas oferecidas pelos contratantes, “então ele também não se vê como trabalhador”, crava Badaró. Ao mesmo tempo, se resistir e se recusar a aceitar essas relações, corre risco de não conseguir recursos para sobreviver. “É sinal de um tempo sem emprego, sem relações formais de trabalho e com alto estímulo às soluções individuais e pontuais”, afirma.

Até para as entidades de classe fica complexo saber como agir e como lidar. O autônomo faz parte de qual categoria? O “bico” tem representação sindical? São indagações pertinentes e necessárias neste momento. “Essas pessoas trabalham, vivem da força de trabalho, mas não se veem representados pelos sindicatos ou movimentos sociais”, lembra o historiador. O resultado é a fragilização dos grupos e o aumento dos casos de violência, adoecimento e desamparo.

Badaró acredita, no entanto, que a mesma via que leva à precarização – ter de aceitar trabalhos insalubres por falta de qualquer outra opção – é também um possível caminho para o fortalecimento dos sindicatos e para mudanças no simbolismo do trabalho. “Se os sindicatos abraçarem os autônomos, se conseguirem se colocar como lugares de acolhimento, de incentivo e de fomento a essas pessoas, darão o grande passo que precisa ser dado. A fronteira precisa ser cruzada e o trabalhador desse tempo precisa também de um lugar”.

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