GIZ – Como militante envolvido com as lutas em nome da internet livre, como o senhor avalia o panorama atual das discussões a respeito da propriedade intelectual?
João Carlos Caribé* – O ano de 2012 tem sido uma verdadeira guerra, ainda que sem armas e sem feridos. A internet de livre circulação de informações e produções está sofrendo uma série de ataques simultâneos, em vários países do mundo – inclusive aqui no Brasil –, como uma tentativa de controlar a rede e de manter os negócios no patamar do que acontecia no século passado. A discussão se trava entre os defensores da propriedade intelectual como se prevê hoje e os defensores de uma sociedade de livre produção e circulação de saberes, ideias, trabalhos etc.
O senhor se referiu a ataques simultâneos contra a liberdade de uso da internet. Poderia detalhar quais seriam esses ataques?
Eles se dão basicamente na esfera legislativa e na regulamentação. Desde 1999, tenta-se criar leis que regulem o uso e a circulação na rede. A chamada a Lei Azeredo, conhecida por nós como AI-5 Digital, prevê punição para crimes digitais, e não passou em primeira votação no Congresso, mas segue lá sendo discutida. Países como Estados Unidos, México, Colômbia, Canadá e muitos outros estão discutindo leis semelhantes. Todas elas preveem punição para quem violar a propriedade intelectual. Em alguns países, a pena é mais branda, como advertência; em outros, é uma punição bem perigosa, como o chamado “notify and take down”, que prevê o bloqueio e a retirada do ar sem medida judicial para sites que apresentem violações às leis. O importante é que se perceba que há uma disposição das casas legislativas dos países para reduzir o grau de liberdade no uso da internet. Paralelamente a essa disposição legislativa, há também uma movimentação de acordos entre países e blocos de países para controlar a navegação. Esses acordos são, em geral, tratados de forma bem obscura, pouco se fala na imprensa e serão responsáveis – caso venham a ser adotados – por abusos importantes. O Acta é um desses acordos – firmado entre Estados Unidos, países da Europa e outras potências – e prevê normas de controle no uso de arquivos e de proteção da propriedade intelectual, ditadas pelos Estados Unidos e que ferem até a soberania das nações. Um arquivo que aqui no Brasil é considerado de uso livre pode não ser considerado assim lá fora e o Acta dá o direito de os servidores da alfândega checarem meu notebook, meu ipad, para encontrar arquivos assim. Se forem encontrados, posso ser preso, multado, impedido de entrar, mesmo que não esteja ilegal aqui no Brasil. Outro acordo similar ao Acta é o TPP, que reúne os países do Pacífico. Se forem assinados, esses acordos terão consequências também econômicas e de relações internacionais. Um país pode sofrer sanções na Organização dos Estados Americanos, ou na Organização Mundial do Comércio, por violar regras do Acta, ou do IPP. E tudo isso vem sendo discutido fora dos parlamentos.
O senhor poderia explicar quem são os jogadores mais importantes nesse tabuleiro e como eles se mexem?
Aqui no Brasil a grande briga é pelo que chamamos de governança da internet. Ou seja, quem toma conta do armazenamento e do transporte de dados que circulam diariamente pela rede. É um jogo de poder e controle sobre essa rede. Até hoje, quem toma conta da rede é o Comitê Gestor da Internet. O CGI. Podemos dizer que esse órgão multi-setorial é bem democrático, porque reúne representantes do governo, do empresariado, do 3º setor, da academia/pesquisa e da sociedade civil organizada. Ou seja, representa os diversos interesses sobre a rede. Contudo, há uma brecha na lei dos serviços de telecomunicações que permitiria que o controle da internet ficasse sob o comando da Anatel e, dessa forma, muito vulnerável à ação das empresas de telecomunicações, o que seria uma ofensa grave à organização que temos hoje.
No mundo essa possibilidade se repete?
De alguma maneira sim. O ITU, que é o órgão da ONU responsável pelas telecomunicações do mundo, também estaria sendo cotado para ter o controle mais centralizado da governança da internet. As movimentações globais mostram que há uma tentativa de centralizar essa governança e isso é uma afronta ao que entendemos como internet livre. Vamos voltar ao começo. A internet foi pensada de forma descentralizada para, em caso de ataque nuclear, ela continuar existindo e funcionando. Essa descentralização de uso e de controle é a alma da internet. A ideia de rede perderia muito o sentido caso a governança se concentre em um único órgão.
Na sua avaliação, esse temor da web, manifestado por alguns importantes segmentos da sociedade, acontece por quais razões?
O grande trunfo da web é ter dispensado os intermediários, os atravessadores. Há 30 anos, apenas empresas tinham a força para colocar no mercado – e sobreviver disso – bens relacionados à propriedade intelectual: livros, revistas, textos opinativos, músicas, discos, filmes etc… Fazer de qualquer internauta um produtor e distribuidor de conteúdo rompeu essa lógica e colocou o mundo e a economia diante de outra realidade, com a qual ninguém sabe lidar direito. Em última instância, o exercício da democracia colaborativa na rede poderia colocar em risco a democracia participativa que vivemos hoje, afinal não precisaríamos de intermediários para criar as leis, aplicá-las, repensá-las, etc….
Então, num passo último, a experiência da rede derrubaria os mercados e os governos. Estou aqui pensando filosoficamente, passeando pelas possibilidades. Ninguém acredita que isso vá acontecer assim, mas é um pensamento possível e que certamente motiva algum temor. Por outro lado, o sociólogo espanhol Manuel Castells [autor de Sociedade em Rede e Mobile Communication and Society: A Global Perspective, ainda sem tradução para o português) propõe que comunicação é poder, e a sociedade conectada, portanto, tem muito poder. O mundo mudou, a internet percebeu e respondeu a isso e as antigas instituições não lidam muito bem com tudo isso. Pedro Abramovay, advogado e Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, dizia que as instituições até mudaram o software, mas o hardware ainda é muito antigo.
Essas mudanças na sociedade apontam para uma nova visão do que seria a propriedade intelectual?
Olha, se a gente for levar a sério a propriedade intelectual, ninguém poderia aprender teorema de Pitágoras, ou tabela periódica, só os alunos das escolas que comprassem o pacote de dados da editora responsável pelos direitos autorais dos grandes teóricos. A escola que não comprasse esses dados não poderia divulgar essa informação. Imagine como seria isso! Pergunto sempre a quem é defensor ferrenho dos direitos autorais como são hoje se o desenvolvimento do mundo, da tecnologia, da ciência, dos meios de comunicação seriam como são hoje se a gente tivesse de pagar para usar a ideia de cada pensador brilhante que tivemos no passado. A lógica da cobrança indiscriminada pela produção do outro nunca fez sentido. E numa sociedade digital, em que não temos intermediários e podemos ser produtores, consumidores e distribuidores, tudo ao mesmo tempo, essa característica se potencializa. E tem mais algumas coisas. A pirataria é combatida, em primeiro lugar, porque reduziria a arrecadação do governo e, a partir daí, todo o ciclo econômico empobreceria. Sempre que vamos atrás dos números reais, que comprovem essa versão, encontramos dados muito falhos, que não conseguem provar o estrago econômico da pirataria. Tem muito chute. Aqui no Brasil a razão da pirataria é o preço. Um produto pirateado chega ao público com o preço de mercado dos Estados Unidos. As pessoas, portanto, estariam dispostas a comprar produtos que respeitem os direitos autorais e a propriedade intelectual, desde que tivessem um preço menor.
E, desta forma, também temos reflexos na educação, não?
Este ano de 2012 vai ser muito importante, porque a primeira geração de nativos digitais entra na maioridade, completa 18 anos. Isso significa dizer que de8 a10% da população do mundo já nasceu conectada e que, agora, irá para o mundo adulto mostrar como é sua nova forma de pensar, agir, se colocar nos mercados e tal. Essa geração entende as coisas de uma maneira diferente daquela tradicional que ainda vemos hoje. Primeiro, porque entende que a comunicação e a organização se dão em rede. Aliderança é, portanto, muito plástica. Hoje está com um, amanhã, com outro. E o detentor desse papel é aquele que sabe mais sobre aquele assunto específico. Hierarquia rígida, portanto, não é com eles. Além disso, a forma de processar informações e de relacioná-las – ou seja, a inteligência – já mudou. Eles não precisam mais de introduções teóricas longuíssimas para chegar à prática. Decodificam linguagens dificílimas intuitivamente e aprendem a reproduzi-las sem muita dificuldade. As escolas e os professores precisam começar a observar e a trabalhar com essas características. Os meninos são nativos, e os educadores, quando muito, fluentes nesse idioma. Não dá para negar. Os alunos são muito rápidos em buscar informação, encontrar respostas, descobrir gente defendendo esse ou aquele ponto de vista. Isso pode ser muito favorável. Se o professor não quiser ser um sargento na frente de soldados disciplinados e em formação, se o professor quiser ser um líder bem contemporâneo que em vez de mandar fazer convida os aprendizes a fazer junto, sem receio de perder o posto, a educação vai dar um salto importante.
Por fim: o cyberativismo vem sendo chamado de “ativismo de sofá”, por ser leniente, pouco incisivo e até pouco eficaz. Como você analisa o papel da militancia em nome dos direitos dos internautas e do uso da web?
É muito legal perceber quando uma semente vingou no Twitter ou no Facebook. Parece que alguém joga uma senha que incendeia os usuários e, depois de tantos comentários e compartilhamentos, um assunto que passaria batido vira agenda nacional. É o caso da cobrança por exibição de vídeos do youtube por blogs. O ECAD vem sendo bombardeado. A tal ponto que a ministra da Cultura, Ana de Holanda, terá de ir ao Senado explicar a atuação do escritório. Não cabe, no mundo digital que vivemos, que as regras sejam as mesmas de 30, 40, 50 anos atrás. Imagine um café que tocas músicas para fazer um ambiente agradável aos seus frequentadores. Esse estabelecimento, por lei, deveria pagar o Ecad. Mas, se ele usar apenas músicas com Creative Commons, seleciona lá na rede e faz uma playlist com 100 músicas liberadas por seus autores para tocar sem pagar nada. O fiscal do Ecad ia ficar bem incomodado. E se todo mundo fizer isso, acabou o Ecad. Ou seja, os milhares de posts a respeito das arbitrariedades desse órgão motivaram a imprensa a cobrir e o legislativo a se mexer. Quem pode dizer que não dá resultado o ativismo de sofá? Além disso, esse ativismo se divide em muitas frentes: a que recolhe as informações, encontra os dados corretos, os números, enfim… para alimentar a discussão, a que joga isso na rede, a que recolhe os resultados e toma medidas práticas, enfim… O fato é que as instituições já não podem mais achar que os internautas, os blogueiros são guris brincando, jogando e gastando tempo na frente do computador. Somos todos membros de uma sociedade. Da sociedade conectada.
João Carlos Caribé é publicitário, consultor de mídias sociais e ativista da rede. Um dos idealizadores do movimento Mega Não, que reúne as campanhas e a militância por uma internet livre.
Falando de direitos autorais, li, indignado, num outro lugar, há poucos minutos, que o direito autoral era uma conquista da civlização.
Será que é realmente a conquista de uma civilização poder permitir que TODOS fiquem reféns dos direitos de alguns poucos e que esses alguns poucos fossem renumerados, mesmo sem mais trabalho, até o fim da vida, vivendo de “aluguel social” dessa mesma sociedade a quem sanguessugueiam (rent seekers) ?
Tornar a SOCIEDADE, o grupo, refém dos pretensos direitos de alguns é uma conquista ? Bom, para os senhores de engenho escravidão era uma conquista (de uma minoria, o “homem branco”), incousive legal.
Legal agora, todo mundo tem direito autoral. Precisamos agora convocar os pedreiros, mestres de obra, trabalhadores braçais e carpinteiros para começarem a cobrar “direitos autorais por uso” das pontes publicas que constroem, das calçadas que constrome ou consertam, das estradas que pavimentam e que a sociedade fique TB REFÉM de renumera-los mensalmente, mesmo sem mais trabalho, eternamente, por estarem usando algo que foi fruto de força braçal, “obra autoral” deles no passado!
Assim, MAMATA todos querem! Ai daqueles que ousarem criticar uma casta que vive ETERNAMENTE de beneficios até morrerem, sendo privilegiadas, sendo renumeradas sem mais precisar trabalhar!
Vamos agora, artistas, musicos, produtores fazermos uma campanha “novas leis, vamos pagar direitos autorais dos pedreiros que construíram e fazem manutenção de nossas pontes, estradas, calçadas, ruas! direitos autorais pra eles DJá! todos de sombra e agua fresca! Vamos estender os privilégios! MORDOMIA PRA TODOS DJÁ!”
ORA POIS POIS!
Oi Marcelo.
Sou musicista, com LP e CD gravados, e nunca recebi um centavo de direitos autorais. Entretanto, se quiser tocar obras de outros autores, tenho que pagar o ECAD, ou o produtor do show pode receber multa.
Por outro lado, como médica, não ligada à instituições de ensino de Medicina (como a maioria dos médicos), se quiser baixar um só artigo de revista especializada, terei de desembolsar de 35-40 dólares, o que torna impraticável a pesquisa individual sobre assuntos que poderiam salvar vidas. Mesmo na biblioteca virtual de saúde, tenho que pagar pela maioria dos artigos, embora o preço seja bem menor.
Na verdade, quem ganha mesmo, são editoras, gravadoras, TVs (a mídia, em geral). Para você ter uma ideia, a maior parte dos autores e intérpretes ganha em torno de 1,5% da vendagem de discos – restante é da gravadora, produtora, empresário… a gravadora, por sua vez, paga pela divulgação em TV (e não é pouco, ou fazem acordos com a TV, que obriga o artista a participar dos trenzinhos de alguns apresentadores, com a renda revertendo para a TV ou, diretamente, para o apresentador.
Assim, não culpe artistas (músicos também o são), porque as mordomias para nossa classe são inexistentes.
Abraços