Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Tudo começa pela dimensão do sonho. Ou, em outras palavras, numa discussão por vezes apaixonada entre profissionais da educação, comunidade e os próprios estudantes a respeito da escola que se espera para crianças e jovens adultos. É por essa marca que a pedagoga Roseli Rodrigues de Mello principia a explicação de uma ideia que já ganhou algumas escolas da Espanha e vem fazendo novos adeptos aqui no país: as comunidades de aprendizagem.
A proposta surgiu nos anos 1990, tendo como fonte principal a Universidade de Barcelona. No Brasil, desembarcou teoricamente há cerca de dez anos, a partir de estudos feitos por pesquisadores da educação, como Roseli, que é coordenadora do Núcleo de Investigação Social e Educativa da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
“Uma vez que os professores decidiram tocar a comunidade de aprendizagem, eles viram a peça-chave. Se pararem, o processo todo emperra, mas se prosseguem, são os agentes fundamentais da transformação”
Faz uma década, portanto, que a educadora, mestre e doutora em Educação e pós doutora em Sociologia e Educação se debruça sobre esse assunto. Esteve na Catalunha, conversou com os fundadores da teoria e da prática das comunidades de aprendizagem. E percebeu que, por aí, havia uma possibilidade de caminho para solucionar um problema com o qual há anos ela se defronta: os índices ruins de aprendizagem dos estudantes brasileiros, mesmo em escolas com professores comprometidos e que passam por intervenção e consultoria de universidades.
“Sempre estive muito preocupada com a transformação da educação e com a relação entre universidade e escola”, diz a professora. Ela segue: “porque o que vemos é que as universidades ajudam muito pouco. As escolas se sentem felizes e o clima ali melhora depois dos trabalhos com universidades, mas os índices de aprendizagem não melhoram”, explica.
Ao longo dos estudos sobre comunidades de aprendizagem, encontrou duas parceiras de jornada: Fabiana Marini e Vanessa Gabassa, também pesquisadoras da UFSCar. Juntas, escreveram e publicaram Comunidades de aprendizagem – outra escola é possível , publicado pela Editora UFSCar e que levou o segundo lugar na categoria Educação do Prêmio Jabuti, um dos mais cobiçados da literatura brasileira.
O livro escrito a seis mãos discute fundamentalmente duas ideias: as tais comunidades de aprendizagem e como seria essa nova escola, tão sonhada quanto factível, segundo as autoras. Roseli ensina que a discussão toda nasce da vontade de construir uma escola que ao mesmo tempo ensine e promova uma melhoria na convivência dos diferentes. Os educadores espanhóis entenderam que se a escola permanecesse fechada ao seu entorno, à comunidade que a cerca, seria impossível mudar os resultados a que se estava chegando: alunos que não aprendem e cidadãos que não se toleram.
A participação pedagógica da comunidade é o grande diferencial e vai além das reuniões informativas, aquelas em que a escola dá avisos e comunica o desempenho dos estudantes, e da participação da Associação de Pais e Mestres, em que as famílias ajudam a administrar a escola.
Foi então que propuseram uma troca entre os profissionais da educação, a comunidade que orbita a instituição de ensino e os próprios estudantes. “Porque, lá em Barcelona, houve uma percepção de que se não fosse dada voz aos outros agentes envolvidos no processo, nada ia acontecer”, lembra. Na experiência espanhola, os vizinhos da escola, os pais dos alunos, a associação do bairro, as igrejas próximas foram chamadas a dizer o que esperavam da educação dos jovens e das crianças. Os próprios estudantes se pronunciaram e, por fim, os professores foram convidados a falar. Foi um embate de sonhos – porque, sim, as comunidades sonham com crianças e jovens dotados de ótima educação. A questão que se coloca, em geral, é qual educação e como educar – e os atores todos chegam a uma conclusão comum e passam a gerir coletivamente os rumos que levarão a esses objetivos.
“Parece muito imaterial e utópico, não é? Mas há várias escolas fazendo isso na Espanha. E, aqui no país, duas escolas da rede pública de São Carlos – uma delas de Educação de Jovens e Adultos – adotaram essa pedagogia. No Rio de Janeiro outras três escolas também estão seguindo por aí”, defende a autora. A participação pedagógica da comunidade é o grande diferencial e vai além das reuniões informativas, aquelas em que a escola dá avisos e comunica o desempenho dos estudantes, e da participação da Associação de Pais e Mestres, em que as famílias ajudam a administrar a escola.
“Nas comunidades de aprendizagem, a comunidade diz como quer que suas crianças sejam educadas”, garante Roseli. Em termos reais, tudo se inicia com a vontade dos profissionais da educação em adotar esse caminho. “Ou seja, se inicia na escola, vai para a comunidade e volta para a escola”, retoma a professora da UFSCar. Decidido isso, os educadores devem discutir como será a sensibilização e o convite para a comunidade passar a participar pedagogicamente. Depois que o convite é feito, vem aquela etapa da discussão dos sonhos, já comentada, e a partir daí segue-se a ação propriamente dita.
Cabe aqui refletir sobre uma dúvida que atormentou a reportagem: num país em que as pessoas têm relativa dificuldade em se envolver com projetos sociais de logo prazo e em que as famílias por vezes terceirizam a educação das crianças, é preciso muito tempo de convencimento da comunidade para iniciar os trabalhos de fato? A professora Roseli volta às fontes primárias de inspiração e saca Paulo Freire, certamente um dos maiores pensadores da educação no Brasil: “A realidade se muda criando a teoria e transformando a realidade. A gente vai aprendendo enquanto faz. Não tem isso de primeiro mudar a mentalidade para depois agir na realidade. É a ação na realidade que ajuda a transformar as mentalidades, o que – por sua vez – potencializa a ação no mundo”, pontua.
Ou seja, à medida que se vai implantando o projeto, a cultura já vai mudando. E funciona? “Pergunte aos alunos de EJA da escola de São Carlos. As transexuais finalmente se fizeram ouvir e a rixa entre elas e os outros alunos está sumindo. O resultado é que todos podem aprender bem mais. Ou pergunte aos adolescentes que passaram uma hora e meia respondendo a questões de matemática e se animando com os resultados a que conseguiam chegar. Perceberam que eram capazes com a ajuda dos colegas mais velhos, com quem antes não conseguiam conviver”, responde taxativa.
Olhando para os exemplos da Espanha e do Brasil, o livro consegue traçar algumas características comuns às escolas que optaram pela comunidade de aprendizagem: são instituições formadas por pessoas mais questionadoras, insatisfeitas com o que vinham vendo e persistentes para mudar. São escolas que não pararam no vício da nostalgia e que, portanto, não defendem a hierarquia pela hierarquia. São, enfim, escolas que se assumem como um lugar que evidencia os conflitos e as dificuldades da sociedade complexa em que vivemos. “Ali os professores entenderam que sozinhos não podiam resolver tudo”.
Os educadores espanhóis entenderam que se a escola permanecesse fechada ao seu entorno, à comunidade que a cerca, seria impossível mudar os resultados a que se estava chegando: alunos que não aprendem e cidadãos que não se toleram.
A coordenadora do Núcleo de Investigação Social e Educativa da Universidade Federal de São Carlos conta que nessas escolas que se transformaram em comunidades educativas, os professores, em geral, podem ser divididos em três grandes grupos. O primeiro é formado pelos educadores que têm muito receio de implantar um diálogo com a comunidade. Muitas vezes querem impor o que pensam e suas sugestões para agir às famílias e aos vizinhos. Esse grupo percebe rapidamente que essa estratégia não funciona e é obrigado a repensar. O segundo grupo é aquele dos que querem, com todas as forças, alcançar dois objetivos: “melhorar a aprendizagem na sociedade da informação, com os conteúdos trabalhados de forma elaborada e não básica; e, depois, garantir o acesso crítico dos estudantes às informações dos novos meios de comunicação”, sugere.
Por fim, o terceiro grupo é aquele que, ao se envolver, se dá conta de que seu papel não se encerra na sala de aula, que um professor é exemplo, inspiração, figura de referência e passam a fazer disso o meio para buscar as transformações. O último alerta da co-autora de Comunidades de aprendizagem: outra escola é possível se volta, claro, para os educadores e, lido com os devidos olhos, nota-se que se trata, afinal, de um convite. “Uma vez que os professores decidiram tocar a comunidade de aprendizagem, eles viram a peça-chave. Se pararem, o processo todo emperra, mas se prosseguem, são os agentes fundamentais da transformação”, finaliza Roseli Rodrigues de Mello.