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Educação

O incômodo que atravessa a fronteira

By 10/09/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Na manhã de 31 de agosto, ministros europeus anunciaram a marcação de uma reunião de emergência para debater saídas para a maior crise de imigração vivida pelo continente desde a Segunda Guerra Mundial. O encontro – que, apesar de urgente, foi agendado apenas para 14 de setembro – acontecerá no momento em que se espalham pelo mundo as imagens horrendas e os relatos pavorosos e desumanos de milhares de africanos e asiáticos que tentam entrar no velho continente para fugir da guerra, da fome ou de perseguições religiosas em seus países de origem. Por mar, a pé, ou em veículos impróprios para a viagem dura, famílias inteiras, incluindo bebês e crianças, acabam ficando pelo caminho. Na semana passada, 71 refugiados vindos do Afeganistão foram encontrados já sem vida dentro de um caminhão frigorífico abandonado na Áustria. Causa das mortes: asfixia. Apenas em julho, instituições humanitárias registraram a entrada de 100 mil migrantes ou imigrantes em distintas nações europeias.

O drama de refugiados, no entanto, não se limita à Europa. Em tempos globalizados, a situação crítica relacionada à imigração repete-se, em graus e manifestações diferentes de violência, em outros territórios. O Brasil, por exemplo, é o destino preferencial de milhares de haitianos, bolivianos, sírios e libaneses, entre outros. E também aqui há aqui refugiados e imigrantes que, para chegar ao país, foram submetidos a humilhações e viram-se obrigados a entregar todo seu dinheiro aos atravessadores e perderam seus parentes na travessia, aceitando condições sub-humanas de trabalho e moradia. Sonham ainda em voltar para casa, ou trazer a família que ficou na terra natal assim que as coisas melhorarem um pouco.

A socióloga Patrícia Villen defendeu há algumas semanas uma tese de doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) discutindo justamente a chegada mais recente de imigrantes ao país. De 2011 para cá, quando iniciou o levantamento, aconteceram diversas ondas, com destaque para grupos de africanos e latinos. “Quando a pesquisa começou, o mercado estava bem mais aquecido e o Brasil era um país muito convidativo para essas pessoas”, lembra. Por isso, completa, houve um aporte mais significativo. “Imigrante sempre busca trabalho”. Por isso mesmo é que ela foi atrás dos registros do Ministério do Trabalho e lá começou a puxar a linha de um novelo ainda pouco explorado. Até agora, as pesquisas sobre imigração majoritariamente focavam em grupos ou setores específicos. Em São Paulo, por exemplo, os trabalhos visavam muito lançar luzes sobre a participação de bolivianos no setor têxtil. “O setor seria inviável sem a participação – por vezes muito sofrida – dessas pessoas”, aponta Patrícia. Mas o que a pesquisadora percebeu é que havia uma boa diversidade de grupos de migrantes, cada um com suas peculiaridades e impactos na sociedade, mas que faltava uma análise para mostrar essa situação de maneira mais ampla e mais geral. E foi o que ela procurou fazer.

Investigando os dados do Ministério mais a fundo, a socióloga identificou então que era possível descrever dois grandes grupos de imigrantes. Esse primeiro, já tratado aqui, que pode ser resumido em “latino-americanos, africanos, orientais ou não, que servem de mão de obra não qualificada”, aponta, “e outro grupo, mais qualificado, formado por estudantes, acadêmicos e executivos de transnacionais”, afirma. A semelhança principal entre eles: trabalho. A diferença? Essa foi certamente a maior contribuição do doutorado de Patrícia: “o tratamento desigual dispensado a um grupo e ao outro, por parte do Estado, das instituições e da própria sociedade”, garante.

A distinção começa já na política de atração desses imigrantes para o Brasil. Os mais qualificados chegam aqui por iniciativa do Estado, das universidades e das empresas. “Esses agentes acreditam que eles têm muito a contribuir com nossa formação, trazem experiências de fora. Olhando para a porta de entrada e para o setor em que se inserem, que são áreas estratégicas da economia, podemos dizer que o Brasil dá a eles um status de civilizadores, formadores da nação”, defende a socióloga. E quanto aos menos especializados, que não chegam a convite de ninguém? “Eles também vêm em busca da sobrevivência e, no caso deles, não conseguem entrar se não for de forma indocumentada”.

Patrícia explica que essa não é uma particularidade do Brasil. Os imigrantes que entram ilegalmente e arrepiam os governos e as populações da Europa também estão em situação de extrema vulnerabilidade por precisar de trabalho com urgência para se sustentar e sobreviver. Alguns deles, dependendo da qualificação, das leis do país, ou da sorte de encontrar a instituição certa, ainda conseguem se inserir em programas humanitários e passam mais rapidamente à legalidade. Mas não é regra. Outra diferença se dá no pedido de documentos que regularizem a permanência e a busca por renda aqui no país. Para o grupo dos especializados, ainda que haja morosidade e burocracia, existe, de acordo com a pesquisadora, um caminho a ser percorrido; ao contrário, para o grupo dos não-especialistas, o caminho é tortuoso e muitas vezes dependente de anistia e políticas emergenciais de adequação. “Tudo isso para dizer que, de forma geral, as portas da imigração no país estão fechadas. A não ser para os mais especializados”, pontua.

Um cenário repleto de desvantagens para esse enorme contingente de imigrantes choca-se diretamente com o ideário e o imaginário construídos pela nossa história oficial e que tentam vender o Brasil e, em especial, o estado de São Paulo, como terras cordiais, forjadas por imigrantes de diferentes nacionalidades, que vieram de longe justamente para trabalhar e construir a riqueza econômica desta nação. É só imagem. “A imigração é parte constitutiva da nossa formação como país e povo, principalmente do universo do trabalho. Mas boa parte dos que aqui chegam não são cordialmente recebidos”, reforça Patrícia.

De fato, ao longo da história, o Brasil recebeu os escravos negros, depois os camponeses italianos, os agricultores japoneses, os comerciantes árabes e judeus, numa diversidade que deu origem às misturas étnicas e culturais que marcam a nossa sociedade. Os setores econômicos se apoiaram essa mão de obra para se modernizar e crescer, dos séculos 16 ao 20. Sempre com as lamentáveis ressalvas. “Se você olhar, desde lá havia políticas seletivas. Não é de agora que o governo escolhia o perfil de quem queria aqui no país”, lembra a socióloga. “Em geral, queriam os brancos europeus, fortemente associados à ética do trabalho livre e a uma cultura mais avançada, entre aspas”. Segundo ela, era a mentalidade dominante na época, um indicativo do modo como a gente tratava nossa população. Os escravos e os migrantes internos não eram nem considerados. Já o imigrante selecionado vinha para ajudar a formar um povo, uma nação. O estudo feito por ela sugere que continuamos restritivos e seletivos, a receber bem os ‘civilizados’ – e a negar os ‘atrasados’.

Essa repulsa pode ser confirmada recentemente pelo aumento nos casos de violência contra os imigrantes fortemente motivada pelo sentimento de xenofobia. Há um mês, seis haitianos foram baleados em dois ataques distintos na região da Baixada do Glicério, centro de São Paulo, próximo à igreja Nossa Senhora da Paz, local de abrigo para quem desembarca na capital. Segundo testemunhas, o autor dos disparos teria gritado: “Haitianos, vocês roubam nossos empregos!”. Patrícia acredita que o ataque faz parte de um contexto que favorece as agressões aos estrangeiros. “Vivemos um cenário de crise econômica, enxugamento de empregos e pouca perspectiva econômica, situações assim sempre acirram os ânimos”. No entanto, as redes sociais talvez apimentem mais as reações. “É um lugar de provocações, de racismo dissimulado, de destilação anônima de ódio”, propõe. Essa mentalidade prospera na rede mundial de computadores porque é viva também na sociedade. “O racismo nunca deixou de existir, dizia Florestan Fernandes, mas foi mudando de forma, de manifestação. Combater essa associação e reforçar os mecanismos de aproximação é a melhor maneira de deixar o ambiente menos espinhoso”, sugere finalmente a pesquisadora.

*Todas as imagens utilizadas nessa matéria são da UNHCR – Agência da ONU para refugiados e foram inseridas para mostrar o desespero e o horror que os conflitos armados trazem. Para saber mais, acesse: www.acnur.org

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