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Educação

“Leitura é uma forma de felicidade”


Elisa Marconi e Francisco Bicudo*

          Apesar da afirmação feita pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, pesquisa sobre leitura no Brasil revela que apenas metade da nossa população é leitora.

Os dados são estarrecedores: 50% dos brasileiros não podem ser considerados leitores, porque não tinham lido ao menos um livro nos três meses anteriores à realização da pesquisa, e 75% dos habitantes do país declararam jamais terem pisado numa biblioteca. Os números, revelados pela terceira edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, promovida pela Fundação Pró-Livro e pela Câmara Brasileira do Livro e divulgados no final de março, soam ainda mais preocupantes quando se compara o resultado obtido agora com aqueles alcançados na edição anterior, de 2007. Há cinco anos, 55% dos brasileiros eram considerados leitores e liam em média 4,7 livros por ano; atualmente, esse número caiu para 4 livros por ano e, pior ainda, a leitura de apenas duas destas obras é concluída – os outros dois são abandonados antes que se chegue ao final das histórias.

A professora aposentada do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB), Lucília Garcez, doutora em linguística aplicada, reconhece que houve, de fato, uma piora nos resultados, mas alerta que é preciso ressaltar uma mudança de metodologia na pesquisa. Naquela realizada em2007, apergunta-chave (“você leu um livro nos últimos três meses?”) era feita no meio da entrevista. “Hoje ela abre o questionário, para que o entrevistado responda antes de perceber que o levantamento é sobre livros e leitura. Ou seja, na metodologia atual, a chance da resposta ser mais verdadeira é maior”, analisa. Contudo, sejam 55% ou 50% de leitores, a situação é muito grave, na opinião da especialista, assim como o fato de 75% dos brasileiros nunca terem entrado numa biblioteca, que “ainda é vista como lugar de estudo e de pesquisa. Nunca um lugar de diversão, que oferece outras alternativas de lazer e de cultura”, lamenta.

Leitura e o sistema escolar

Outra mudança significativa nesse panorama diz respeito à influência, a quem é o principal responsável por iniciar a criança no gosto pelos livros. Até a edição anterior, era a figura da mãe quem mais incentivava a leitura. Em 2011, quem passa a ocupar esse lugar é o professor, ou a professora. Houve uma mudança de atitude, de acordo com a doutora em linguística aplicada. “A gente pode destacar a atuação do governo, incentivando a biblioteca do professor, formando as bibliotecas escolares, isso tem sido efetivo”, aponta. Em outra perspectiva, no entanto, parece que o esforço da escola e do professor para formar leitores tem alcançado sucesso apenas parcial. Os resultados de Retratos da Leitura no Brasil mostram que a leitura é uma atividade fortemente ligada à vida escolar. Se essa não é uma má notícia, também não é uma notícia boa, porque sugere que o sistema educacional não está conseguindo formar leitores constantes, para a vida toda. “Parece que o jovem lê enquanto está na escola, por obrigação ou por estímulo mesmo, mas não ultrapassa esse muro. Quando sai da escola, para de ler”, alerta Lucília.

A pesquisa confirma dessa maneira que o papel da escola é fundamental na formação de leitores para a vida inteira. Para além da influência do professor, da presença da biblioteca, do acesso aos livros, é na escola que a pessoa aprende a ler. Ou melhor, aprende a ler bem, sem esforço. A professora da UnB lembra que para ler e gostar de ler, é preciso que essa atividade seja tão natural quanto a respiração. “Quem lê com esforço, e uma parcela significativa da nossa população enfrenta dificuldades na leitura, acaba desistindo, porque ninguém quer sofrer”. Daí porque uma alfabetização consistente e a leitura frequente – para consolidar o hábito e a fluência – são condições necessárias para a formação de leitores. E nessa fase, de acordo com Lucília, vale ler qualquer coisa: gibi, livros infantis, cartazes na rua, Harry Potter, literatura de banca de jornal, etc… A criança tem, naturalmente, vontade de brincar com os livros, ver as figuras, tentar decodificar o que está escrito ali. Para que essa relação não se perca é preciso estímulo em casa e na escola, uma boa alfabetização e acesso aos volumes propriamente ditos.

Para fechar essa equação falta uma informação fundamental, sem a qual o resultado jamais será positivo: valorização e consolidação do hábito da leitura. “Seja pela família, seja pelos colegas, seja pelos professores. Nossa sociedade não valoriza a leitura. Quando você assiste a uma novela, raramente vê alguém lendo. Na mão contrária, um produto que apareça exposto numa cena esgota nas prateleiras das lojas de departamento. Por isso, mesmo um jovem que goste de ler fica sem ter com quem conversar”, provoca a professora da UnB.

O quadro é sério, não resta dúvida. As escolas não têm conseguido alfabetizar de maneira consistente os alunos, “a prova Brasil, o Saresp e o Saeb mostram exatamente isso”, lembra a especialista. Para ela, as famílias e a sociedade não valorizam a cultura, o acesso aos livros é pequeno, porque as escolas têm quantidade limitada, as pessoas não vão às bibliotecas e brasileiro – que não raro vive com um salário mínimo – não compra livro porque é caro. Ou seja, tudo predispõe para que não tenhamos leitores.

Some-se a isso a situação do professor. A especialista lembra que os educadores também raramente são leitores assíduos, não têm com a leitura a relação de necessidade que deveriam ter, nem sempre são apaixonados pela leitura – leem para preparar aula, para trabalhar, mas não por prazer, por diversão. “Nossos professores estão proletarizados, eles trabalham demais e ganham muito pouco, então eles também têm dificuldade de leitura. Ora, se você não tem um professor leitor que ama leitura e que passa isso para os alunos, você não tem como formar um leitor, ainda mais para a vida toda”, afirma Lucília.

Um país sem leitura

A professora da Universidade de Brasília é ainda mais enfática quando discorre sobre o futuro de um país que não lê. “A falta de leitura afeta a questão da humanidade. Uma sociedade leitora é uma sociedade mais solidária, mais tolerante e mais avançada em termos de humanidade. E uma sociedade que não lê é mais consumista, mais brutalizada, mais violenta. Porque a leitura nos humaniza”, ensina. De acordo com outros pesquisadores da área e também na opinião da entrevistada, o que diferencia o ser humano dos animais é a construção da linguagem articulada e sofisticada. Chega a ser, portanto, uma obrigação dos seres humanos usar essa linguagem em todas as suas potencialidades, e a literatura seria exatamente o uso da linguagem ao infinito.

Pedimos licença ao leitor para lembrar que o escritor Mario Vargas Llosa, premiado com o Nobel de Literatura de 2010 e autor, entre outros, de A festa do Bode, A guerra do fim do mundo, escreveu algo precioso (longo, mas de valor), em ensaio reproduzido na revista Piauí (ed. 37) e disponível também na obra “A cultura do romance”, organizada por Franco Moretti: “A literatura, ao contrário, diferentemente da ciência e da técnica, é, foi e continuará sendo, enquanto existir, um desses denominadores comuns da experiência humana, graças ao qual os seres vivos se reconhecem e dialogam, independentemente de quão distintas sejam suas ocupações e seus desígnios vitais, as geografias, as circunstâncias em que se encontram e as conjunturas históricas que lhes determinam o horizonte. Nós, leitores de Cervantes ou de Shakespeare, de Dante ou de Tolstoi, nos sentimos membros da mesma espécie porque, nas obras que eles criaram, aprendemos aquilo que partilhamos como seres humanos, o que permanece em todos nós além do amplo leque de diferenças que nos separam. E nada defende melhor os seres vivos contra a estupidez dos preconceitos, do racismo, da xenofobia, das obtusidades localistas do sectarismo religioso ou político, ou dos nacionalismos discriminatórios, do que a comprovação constante que sempre aparece na grande literatura: a igualdade essencial de homens e mulheres em todas as latitudes, e a injustiça representada pelo estabelecimento entre eles de formas de discriminação, sujeição ou exploração. Nada, mais que bons romances, ensina a ver nas diferenças étnicas e culturais a riqueza do patrimônio humano, e a valorizá-las como uma manifestação de sua múltipla criatividade. Ler boa literatura é divertir-se, com certeza; mas também aprender, dessa maneira direta e intensa que é a da experiência vivida através das obras de ficção, o que somos e como somos em nossa integridade humana, com os nossos atos, os nossos sonhos e os nossos fantasmas, a sós e na urdidura das relações que nos ligam aos outros, em nossa presença pública e no segredo de nossa consciência, essa soma extremamente complexa de verdades contraditórias – como as chamava Isaiah Berlin – de que é feita a condição humana”.

E a professora Lucília Garcez resume: “Se a pessoa não convive com isso, não tem acesso a essa experiência prazerosa da leitura, ela é menor do que poderia ser, digamos assim. Jorge Luis Borges dizia que a leitura é uma forma de felicidade. Não ler e não ter acesso a isso é uma violência”.

E o problema, insiste a especialista, não vem de hoje. O Brasil entrou no século XX com a maioria esmagadora de sua população ainda analfabeta (em 1890, o índice de analfabetismo era de 84%). Não havia, portanto, construído uma história de letramento bem sucedida quando entrou na era da imagem, do audiovisual, que se instalou com mais força a partir da década de 1950, com a chegada da televisão. Não existia universalização do ensino quando a TV despontou e começou a concorrer fortemente com a leitura. Países que já tinham completado o letramento quando implantaram a televisão não sofreram prejuízo na leitura, ou na valorização da leitura.

A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil aponta que o passatempo preferido de 85% dos brasileiros é ver TV (em 2007, esse número era verdade para 77%, representando o 1º lugar). Ler livros, jornais, revistas e até textos na internet ocupa uma posição bem abaixo: sexto lugar, com 28% da preferência nacional (em 2007, ler era o passatempo preferido para 36% dos entrevistados). E, mesmo diante de tudo esse cenário, a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, declarou publicamente estar satisfeita com os resultados. “Satisfeita só porque poderia ser pior”, ironiza Lucília. “Na verdade, o ministério afirma que os dados precisam ser analisados mais profundamente para que as medidas possam ser tomadas, para que se escolha o que fazer”.

A professora aposentada da UnB não tergiversa: “Está claro que as bibliotecas precisam mudar. Outra mensagem é que a escola precisa descobrir um jeito de formar leitores duradouros, ou seja, oferecer a oportunidade de ter uma leitura prazerosa, que seja uma resposta a uma indagação interior, e isso em nada se parece com as provas de verificação de leitura. Se o sujeito descobre isso, ele se transforma automaticamente num leitor. Não tem volta”, propõe.

A missão da escola seria, então, promover o encontro do indivíduo com o texto, com a literatura. Desse encontro nasce a descoberta de que a leitura abre horizontes existenciais. Nesse ponto, o sujeito vira leitor e, a partir daí, pode seguir sozinho, porque não tem retrocesso. Ainda na visão de Lucília, não se pode desperdiçar a dica que a pesquisa deu em relação ao papel do professor: se ele é a figura de referência no incentivo à leitura, há que se investir pesadamente na formação desse educador como mediador da leitura. “O professor precisa ser um apaixonado pelo livro, que lê em seu tempo livre, que escolhe ler como maneira de se divertir”, sugere.

Crescimento da Economia X Crescimento da Leitura

Causou também estranheza em quem analisou Retratos da Leitura no Brasil que, num período de crescimento econômico significativo, saída de milhões de pessoas da miséria, ascensão das novas classes médias, o apreço pela leitura tenha caído. Entre os produtos que os brasileiros sonhavam em consumir e agora o fazem de fato não está o livro. Mas Lucília Garcez é otimista ao avaliar essa situação. “É uma questão de tempo, desde que seja implantada uma política muito clara e efetiva de valorização da leitura com tudo que já citamos. Se os programas de TV e outros meios de comunicação se comprometerem a promover a leitura, fica mais fácil”.

Trata-se, portanto, de uma decisão política, porque será necessário atuar com campanhas e políticas públicas de valorização da educação, de mudança de hábitos e de comportamentos. O mais grave é que esses dados não são novidade para as autoridades, de acordo com a professora da UnB. Todos os indicadores provam que a situação é gravíssima e o governo já sabe disso há tempos. Esse retrato é só uma faceta de uma tragédia maior, na opinião da entrevistada, que é a situação da educação no país. “Se não se investir na formação e na valorização do professor de forma eficaz, se não investir no equipamento escolar, não adianta, não vai mudar nunca”, pontua.

Foto: Marcos Santos/USP

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