Por Silvia Bárbara*
“Nova Orleans tem o desejo natural de ser lago”
Timothy Kusky, professor de ciências atmosféricas
e da terra, em entrevista à Revista Time.
Nascida francesa em 1718, Nova Orleans passou para controle espanhol 45 anos mais tarde, retornou ao território da Nova França em 1800 e assim permaneceu por mais três anos, quando a Louisiana foi vendida aos Estados Unidos.
Com vocação natural para o comércio – dada a posição estratégica, no delta do Mississipi – a cidade ganhou importância no século 19 com a expansão da cultura de algodão.
No século 20, além de centro escoador e comercial, transformou-se também em sólido polo petroquímico. A partir da metade do século, a área conheceu expansão econômica ainda mais acelerada, na esteira do processo de descentralização industrial em direção ao Sunbelt.
Nova Orleans cresceu em área geograficamente arriscada. A maior parte da cidade situa-se abaixo do nível do mar. Reportagem publicada na Revista New Yorker, em 1987, fazia a seguinte descrição: “encaixada entre o Rio Mississipi e o Lago Pontchartrain e cercada por diques, como uma vasilha rasa”[1].
No início, a cidade não oferecia tantos riscos como atualmente. Quando foi fundada, em 1718, as primeiras construções assentaram-se em áreas mais altas formadas pela acumulação de sedimentos deixados pelo rio. Vem daí o apelido de “Cidade da Meia Lua” (“Crescent City”), numa alusão às formas sinuosas desenhadas pelos depósitos aluviais.
Além disso, uma longa faixa de mangue, de 241 km, separava Nova Orleans do Golfo do México. O mangue era uma proteção natural que recebia e absorvia a água e controlava o impacto das ondas formadas pelas tempestades tropicais.
A expansão urbana impulsionada pelo desenvolvimento econômico definitivamente transformou Nova Orleans e produziu uma geografia perigosa. Aos poucos, a cidade projetou-se para as áreas mais baixas, freqüentemente inundáveis, onde antes existiam rios e pântanos: “a partir dos anos 1800 e até o início do século 20, construtores começaram a limpar e a drenar os pântanos situados atrás da “meia-lua”, chegando a ponto de jogar terra no lago Pontchartrain para ampliar a cidade”[2].
Assim, a medida em que a cidade se aproximava perigosamente do rio e do lago, tornou-se necessário alterar o curso do rio e construir um complexo sistema de diques para conter as enchentes.
Estas obras, contudo, revelaram novo problema, pois retiraram do rio o necessário espaço que ele dispunha para depositar os sedimentos e garantir um escoamento mais brando das águas.
Além disso, ao cercar-se de diques, a cidade perdeu as condições para escoar naturalmente as águas das chuvas, que passaram a ser bombeadas para fora. Este sistema, diga-se de passagem, mostrou-se ineficiente na passagem do Kratina.
A cidade também se expandiu em direção ao mar. A faixa de mangue, que absorvia água e formava, como já foi dito, um cinturão protetor no litoral do Golfo do México, foi reduzida de 241 km para apenas 48 km.
Vale lembrar que esta redução ocorreu também por conta do enorme sistema portuário na costa, em particular na embocadura do Mississipi, sugestivamente apelidada de “Pé do Corvo”. Trata-se de um complexo de docas, terminais e instalações de refino de petróleo por onde transitam anualmente mais de 6.000 navios, transportando grãos, petróleo e todo o tipo de carga.
Calcula-se que a construção deste pólo – um dos mais movimentados do mundo – tenha custado, desde 1930, mais de 4.900 km2 de terras, ampliando ainda mais a vulnerabilidade.
Embora a cidade toda esteja, no máximo, no mesmo nível dos leitos dos rios, é certo que as áreas mais altas e seguras são também as mais valorizadas e por isso, restritas à população com maior poder aquisitivo. A especulação imobiliária empurrou a população mais pobre para as zonas de risco, fato que ganhou maior visibilidade com o Katrina.
Cheias fazem parte da dinâmica natural do rio. Enchentes são produto da ocupação humana. Da mesma forma, os ciclones que originam as tempestades tropicais são mecanismos importantes na circulação atmosférica, que transferem massas de ar quente para áreas mais frias. Já, os danos causados pelas tempestades, estes são fruto da combinação desastrosa de degradação ambiental, expansão urbana desordenada e desigualdade social.
[1] John McPhee, The Control of the Nature, 23/02/87.[2] Jack Shaffer, Sobre o erro de construir Nova Orleans. Folha de São Paulo, 08/09/2005, A36
*Professora de Geografia e diretora do SINPRO-SP.
Este artigo foi publicado originalmente no site do Sindicato dos Professores de São Paulo em agosto de 2005 (http://www.sinprosp.org.br/reportagens_entrevistas.asp?especial=89) e pode ser reproduzido desde que citada a fonte.