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Cultura

Receita para um mito

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Há pouco mais de dez anos, o cientista político Gianni Carta topou com um livro que o instigou de maneira irrecusável a contar uma história que ainda não tinha recebido a devida atenção no Brasil, país que havia deixado há mais de trinta anos. Foi em Paris, numa feira literária, que Carta, também jornalista e correspondente internacional da revista Carta Capital, conheceu a obra de um historiador francês que revelava a trajetória – ou uma parte dela – do revolucionário Italiano Giuseppe Garibaldi. Naquelas páginas, encontradas por acaso, o autor francês relatava a passagem de Garibaldi por terras brasileiras, entre 1841 e 1848.

Depois de ler tudo aquilo, Carta se deu conta de duas coisas. A primeira, que o material sobre Garibaldi em língua portuguesa era falho, econômico e, no mais das vezes, pouco baseado em verdades factuais. Faltava, assim, uma obra de referência mais abrangente sobre a atuação do italiano, conhecido internacionalmente e estranhamente identificado com os gaúchos. A segunda convicção do jornalista foi que ele mesmo faria então essa obra, para cobrir a lacuna bibliográfica, claro, mas também para, de alguma maneira, encontrar-se com as próprias raízes, já que o correspondente é brasileiro, mas filho e neto de italianos, que costumavam contar os feitos e as aventuras daquele revolucionário que ganhara fama na América Latina e respeito na Europa, uma figura controversa por ter sido, ao mesmo tempo, local e global, revolucionário e monarquista, corajoso e fanfarrão, guiado por ideais libertários e um marqueteiro de mão cheia.

“Mas analisando friamente, Giuseppe Garibaldi era mesmo muito prático, pragmático, queria implantar mudanças”.

“Garibaldi entrou para a história como um herói dos Pampas, que guerreou na Revolução Farroupilha e comandou os exércitos gaúchos, levando-o a vitórias. Também atuou na Argentina e no Uruguai e foi muito importante nesse último país”, conta Gianni Carta, que acaba de lançar Garibaldi na América do Sul – o mito do gaúcho (Boitempo Editorial). Embora conhecido, o italiano ainda não tinha sido alvo de estudos acadêmicos, mais críticos e consistentes. Aproveitando esse hiato, o jornalista primeiro passou dois anos lendo tudo que encontrou a respeito do revolucionário. “Até tinha material, mas pouca coisa em português. Faltava. E assim comecei a ir atrás das fontes primárias. Documentos, textos sobre as guerras, reportagens de jornais da época. Foi uma pesquisa exaustiva, mas que deu um resultado sólido, respeitável”, explica o autor. “E a primeira conclusão a que cheguei é que ele foi mesmo um herói, no sentido primeiro do termo”, ou seja, alguém com habilidades acima da média que age motivado por um ideal de melhoria para a sociedade e está disposto a matar ou morrer para que o objetivo seja alcançado.

Foi sob esse espírito que Giuseppe Garibaldi, defensor dos propósitos universais de libertação dos povos – um tanto afinado com o comunismo –, chegou ao Brasil. Era ligado a uma sociedade secreta chamada Jovem Itália, fundada por Giuseppe Mazzini e apoiada nas ideias socialistas de Saint-Simon. Primeiro desembarcou no Rio de Janeiro com a missão de fundar um jornal que propagasse os ideais revolucionários que trazia. Um governo conservador naquela província e contatos nos pampas gaúchos acabaram levando o italiano para o Rio Grande do Sul, onde entre 1938 e 1940 faz parte da Revolução Farroupilha.

Também popularmente conhecida como Guerra dos Farrapos, a Farroupilha foi um movimento da elite rio-grandense contra o aumento nos impostos do charque – principal produto de exportação da região – impetrado pelo governo imperial, sediado na corte do Rio de Janeiro. Os fazendeiros como Bento Gonçalves não aguentavam mais a carga de tributos e se voltam contra o governo central. É nessa luta que Garibaldi se envolve, chega a ocupar o posto de Chefe da Marinha e obtém um sucesso relativo. A marinha imperial era mais bem preparada, mas os sulistas não fizeram feio.

Nesse ponto, Carta destaca um ponto fundamental para a construção do mito Garibaldi e que vai se repetir em outras ocasiões. Entre 1938 e 1940, o jornalista Luigi Rossetti, do jornal O Povo, do Rio Grande do Sul, acompanha o italiano e vai relatando seus feitos para a imprensa local. “Rossetti, embora jornalista, não se atém aos fatos e acaba engrandecendo a atuação de Garibaldi e quando o repórter morre, o que sobra é uma obra de enlevação do revolucionário que não corresponde muito à verdade”, aponta criticamente o autor, que teve acesso a todo o arquivo do jornal O Povo, onde estão preservados os textos do jornalista de guerra.

Logo depois da morte de Rossetti, em 1940, Garibaldi conhece Anita, com quem se casa e tem um filho brasileiro, chamado Menotti. Pouco depois de a criança nascer, o italiano se dá conta que a Guerra dos Farrapos não é a sua verdadeira guerra, não era com auxílio daquela gente que poderia implantar as comunidades baseadas nas ideias de Giuseppe Mazzini, seu mentor intelectual. Assim, em 1941, o casal e o bebê partem em busca de outra guerra, dessa vez no Uruguai. E pelejando em terras uruguaias, Garibaldi é acompanhado de perto pelo jornalista Giovanni Cuneo até o ano de 1948. O revolucionário entra para a marinha uruguaia e ajuda o povo daquele lugar na Grande Guerra.

“Cuneo publica em inglês, italiano e português, espalha pelo mundo os feitos de Giuseppe Garibaldi. E com essa forcinha da imprensa internacional, o revolucionário passa a ser o primeiro herói moderno, porque sabe se autopromover, faz um marketing fantástico de si mesmo”, provoca criticamente Carta. Cabe aqui ressaltar que esse é o tom do livro, uma reflexão crítica e não uma obra historiográfica ou hagiológica sobre o revolucionário, e essa talvez seja uma das principais contribuições da obra de Carta.

Seguindo a linha cronológica, o autor de Garibaldi na América do Sul – o mito do gaúcho, acompanha a saída de Garibaldi do Uruguai e sua partida para a Itália. Era o ano de 1848 e o italiano já percebera que ali no sul ele não conseguiria imprimir seus ideais revolucionários, por algumas razões. O Rio Grande do Sul era um estado católico e Garibaldi era anticlerical. O jornalista Rossetti escondeu isso o quanto pode, mas logo a situação fica insustentável. Mais: no decorrer da guerra farroupilha, o italiano liberta 5 negros, a quem chamava de “os libertos”. “A elite dos pampas era escravocrata, nunca reivindicaram a abolição. A postura de Garibaldi, portanto, não agradava os fazendeiros. A revolução que a elite bancava era burguesa e não libertária nesse ponto. A situação de Garibaldi ali era insustentável”, relata Carta.

No Uruguai, antes que a Guerra acabe, casado com Anita e já pai de três filhos, o italiano vai tendo notícias do movimento de unificação italiano, comandado por Mazzini, que queria chegar à República por meio de um levante popular. Para tanto, Giuseppe Garibaldi, herói no Brasil e no Uruguai, era peça fundamental e assim entende que é tempo de voltar para a sua terra.

Heroi Gaúcho

Tendo lutado em duas pátrias até então, Garibaldi já é, neste ponto da história, tido como herói. Mas não um qualquer, e sim “um herói gaúcho”, defende Carta, “o que é um feito a ser apreciado, porque o gaúcho era o mestiço, era mal visto, era um apátrida. Aqui, na Argentina e no Uruguai a visão era a mesma. Garibaldi consegue imprimir algum valor a essa figura regional e impõe a ela um traço de honra, de dignidade, de povo fundador da matriz brasileira”, explica. O curioso, como o livro ressalta já nas primeiras páginas, é que nos países vizinhos ao Brasil, o italiano é pintado como um herói cosmopolita, que une dois mundos, mas por aqui, ele é tido como um italiano gaúcho, muito gaúcho, o que seria sinônimo de macheza, bravura, facilidade para guerrear.

Carta conta que o Brasil aceita de muito bom grado e promove esse herói estrangeiro que virara gaúcho, “porque vivia-se o Romantismo, era importante ter heróis a quem idolatrar. Além disso, os pampas gostaram muito de limpar a barra da figura do gaúcho e fazer dele um bem local e nacional, se aproveitam assim de Garibaldi, que encarnava as características todas que o bom gaúcho tinha de ter, ainda que ele fosse italiano”, afirma o autor. Por outro lado, ao revolucionário também interessava ser visto pelo mundo como um gaúcho, propõe Carta. “Ele chega de volta à Europa para lutar pela unificação italiana com toda a indumentária gaúcha: bombacha, poncho, chapéu, bota de montaria, é visto assim”, se diverte.

Em tempo: Garibaldi nunca se pareceu com Thiago Lacerda, o ator da TV Globo que interpretou seu papel na minissérie A casa das sete mulheres, mal sabia montar e não tinha nenhuma ligação especial com esse folclore. No entanto, a razão para optar em se tornar um gaúcho aos olhos do velho continente “era marketing, auto-promoção”, alfineta o correspondente da Carta Capital. “Os trajes e a postura, somados ao imaginário que já se construíra dos gaúchos – como bons guerrilheiros – e do próprio Garibaldi na América do Sul ajudavam a criar um ícone que exalava força, coragem, impetuosidade. O italiano queria voltar para casa provocando medo no inimigo”, reforça Carta.

 “A primeira conclusão a que cheguei é que ele foi mesmo um herói, no sentido primeiro do termo”, ou seja, alguém com habilidades acima da média que age motivado por um ideal de melhoria para a sociedade e está disposto a matar ou morrer para que o objetivo seja alcançado.

E tem mais. O revolucionário sabia que ao se alinhar com os gaúchos que vinham guerreando na América do Sul, conquistaria a admiração dos moderados que participavam do movimento de unificação. E, por fim, mostraria ao mundo que era um inconformado. “Ele recebeu o título de general no Uruguai, podia chegar vestido como um militar respeitável, mas escolhe uma figura popular, mestiça e corajosa para avisar que não estava em busca de glamour pessoal. Propagandeava, assim, que queria mesmo é ser um herói”.

Nos anos seguintes, Giuseppe Garibaldi luta pela unificação italiana, no início sob a bandeira republicana de Mazzini, mas logo percebe que não funcionaria assim. Rompe com o antigo mentor e passa a defender uma monarquia italiana que expulsasse os franceses para, aí sim, no futuro instalar uma outra forma de governo. Anita morre em 1849, numa fuga desesperada, e Garibaldi se culpa por essa perda pelo resto de sua vida. Talvez essa seja uma das causas de seu pronunciado pragmatismo. “Mas analisando friamente, Giuseppe Garibaldi era mesmo muito prático, pragmático, queria implantar mudanças”.

Essa característica fica ainda mais evidenciada, de acordo com Carta, quando na última grande cartada da vida, Garibaldi reúne mil soldados e parte para o sul da Itália para unificar aquela região. O norte já estava unificado, faltava o sul. Para essa empreitada, além do milhar de homens, o italiano convida para formar a comitiva nada mais que Julio Verne, autor de Volta ao mundo em 80 dias e Viagem ao centro da Terra, e Alexandre Dumas, autor do já aclamado Os três mosqueteiros. Ganha um naco de panetone quem adivinhar as razões para o revolucionário agregar os escritores no exército. “Marketing, claro”, confirma mais uma vez Carta,

“Dumas era tido como um dos mais importantes de seu tempo, era filho de um general negro e, portanto, simpatizava muito com a postura anti-escravagista de Garibaldi e queria vingar a morte desse pai, torturado e assassinado pelos Bourbons, que dominavam o sul da Itália”, desenha a situação. Por fim, Dumas escrevia em francês, que era a língua universal naquele momento, e ao ser chamado para relatar os feitos do revolucionário italiano, faria sua mensagem positiva chegar a um número expressivo de leitores. Alexandre Dumas cumpriu com afinco seu papel e nesse período, de acordo com o jornalista da Carta Capital, publicou vários artigos e três livros tratando dos episódios da guerra de unificação italiana e da expulsão dos Bourbons da região.

Resultado: Garibaldi passa a ser conhecido e adorado, agora no Brasil, na Argentina, no Uruguai e na Europa, em especial na Itália. A pergunta que Gianni Carta ainda acha que vale a pena responder é por que, afinal, um sujeito branco-rosado, de barba ruiva, que montava mal a cavalo, não tinha a tática gaúcha, nem dominava a dança gaúcha vira o gaúcho-símbolo e merece ser estudado ainda hoje?

O autor responde que, além das razões debatidas acima, é preciso lembrar que na Era Vargas, o Rio Grande do Sul fez um esforço tremendo para resgatar o mito arquetípico do gaúcho e consegue isso se apoiando fortemente na trajetória de Garibaldi. Também porque Giuseppe Garibaldi foi um revolucionário. “Tanto assim que durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, não se devia estudar Garibaldi, era perigoso ensinar isso nas escolas”, resgata o jornalista. E, por mais que os movimentos de inspiração fascista tentassem aproximar o personagem de suas bandeiras conservadoras, essa aproximação nunca colou de fato, deixando claro, portanto, que o italiano era um libertário, característica que assunta governos autoritários. Por fim, nas palavras de Carta, vale a pena resgatá-lo porque “Garibaldi inventou e difundiu mundialmente o mito do gaúcho”.

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