Skip to main content
Cultura

Disposição para resistir e lutar até o fim

Carta de índios guarani kaiowá cogitando enfrentamento com invasores e a morte coletiva de comunidade acende sinal amarelo e abre as discussões sobre o presente e o futuro dos povos indígenas no Brasil.  Para compreender melhor o que está se passando, a Revista Giz conversou com o coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário, Flávio Vicente Machado.

Elisa Marconi e Francisco Bicudo*

Foi nos últimos dias de outubro que uma carta assinada pela liderança de Pyelito Kue, comunidade de índios guarani kaiowá, situada nos arredores do município de Dourados,em Mato Grossodo Sul, provocou alvoroço nas redes sociais, estourando em seguida na imprensa e finalmente mobilizando as autoridades estaduais e federais.

A missiva sugeria a morte coletiva da comunidade e, num erro de interpretação, a ideia foi entendida como uma decisão de suicídio coletivo por parte dos guarani kaiowá. Embora seja fato que os suicídios venham marcando as comunidades indígenas sul-mato-grossenses, não era esse o recado do documento.

Segundo o coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Flávio Vicente Machado, os que os indígenas estavam fazendo era se posicionar de forma consciente e coerente sobre a postura que estão dispostos a adotar. “Eles dizem que não sairão das terras que lhes pertence tradicionalmente. Não saem dali nem vivos nem mortos”, traduz. A decisão de enfrentamento, de chegar às últimas consequências para ver reconhecido o direito sobre terras que, na origem, pertenciam aos guaranis kaiowá, é resultado do acirramento dos conflitos na região – e da ação violenta de fazendeiros e de pistoleiros. Para compreender melhor o que está se passando no interior do país, a reportagem da revista Giz conversou com o coordenador regional do CIMI, que estava em Dourados, onde prestava assistência aos indígenas de Pyelito Kue.

[typography font=”arial” size=”12″ size_format=”px”]Crédito da imagem: Agencia Brasil/EBC[/typography]

Revista Giz – Na avaliação do CIMI, que acompanha essa realidade muito de perto, o que está acontecendo com os guarani kaiowá?

Flavio Vicente Machado – Infelizmente, a situação dos indígenas guarani kaiowá, do povo guarani kaiowá, é uma das piores da América do Sul, consequentemente do Brasil, e quiçá do mundo. Trata-se de uma histórica negação de direitos, a partir da invasão de seus territórios, que provocou nos últimos anos um ambiente de violência e genocídio dessa população.

Quem invadiu esses territórios e com que propósito?

Foi o Estado brasileiro, nos últimos 100 anos, com o propósito de colonização do país, em especial a partir da Marcha para o Oeste, promovida por Getúlio Vargas, para ocupar o interior do Brasil. Ele incentivou a ida de colonos para o então Mato Grosso, e foi titulando terras e entregando para colonos. Acontece que essas terras eram indígenas. A mensagem que o governo passava na época é que ali não havia ninguém, só índio, então não havia com o que se preocupar. Atualmente, você tem um quadro de comunidades atacadas por pistoleiros. Assim, tentando reconstruir um processo linear da história, os territórios foram invadidos pelo governo, que criou oito reservas no início do século passado. Os indígenas daquela região eram levados, às vezes à força, para essas reservas. Não eram nem lugares para onde os indígenas gostariam de ir, nem lugares com tamanho suficiente. Um exemplo é a reserva de Dourados, onde não passa nenhum rio. É um povo que depende da água para tudo, para viver, e não tem rio ali. Foram reservas feitas de qualquer jeito e sem critério, que confinaram as pessoas nesses locais que chamamos de integracionistas. Em Dourados, por exemplo, são 14 mil índios em 3 mil hectares. A aldeia de Amambaí também, são mais de 6 mil índios vivendo em pouco mais de dois mil hectares. Então você tem muita violência, tanto interna, quanto externa. Interna porque são tantas pessoas vivendo num mesmo lugar que qualquer sistema de controle tradicional de violência não funciona; ao mesmo tempo, você tem as comunidades que arriscam voltar para o seu território, inclusive com respaldo da Constituição de 1988, mas que ali são atacados por pistoleiros, a mando de fazendeiros da região.

Embora seja uma situação histórica, que dura décadas, a sensação que temos é que o problema com os guarani kaiowá se agravou recentemente. Houve a carta falando em morte coletiva…

Historicamente, são 100 anos de interiorização. Mas a situação começa a piorar na década de 1970. O início desse agravamento é representado pela retomada de alguns territórios tradicionais por parte dos indígenas. Agora, nos últimos dez anos, a violência aumentou bastante. Houve ameaças de despejo, ataques de pistoleiros às comunidades, assassinato de lideranças e um endurecimento na postura dos kaiowá guarani. As comunidades não aguentavam mais viver confinadas e começam a voltar para terras de onde haviam sido retiradas pelo governo anos antes. Esse é o ponto de partida para o contexto de ameaças e violência que vemos hoje.

Os suicídios também se agravaram nos últimos dez anos?

Não, começam também nos anos 1970. O que houve foi um alerta maior por parte da imprensa por causa da carta dos guarani kaiowá que fala de medidas que foram interpretadas como suicídio coletivo. No documento, falam em morte coletiva, mas foi compreendido como suicídio. Eles existem e começam em 1970, ao mesmo tempo em que se dão as retomadas. No início da década de 1980, há assassinatos de grandes lideranças, sendo que Marçal de Souza foi o primeiro, em 1983. Inclusive, o julgamento prescreveu e ninguém foi condenado. Mas nos últimos 10 anos houve agravamento nos suicídios e de 2000 a 2011 a média foi de um suicídio por semana. Nenhuma sociedade do mundo tem isso. Numa população de 43 mil a 45 mil habitantes, acontece, em média, um suicídio por semana. Este ano, só até junho, foram 36 suicídios.

E era gente com quem vocês conviviam diariamente…

Sim. Na maioria jovens, recém-casados, tentando fazer sobreviver sua família e que de repente, sem encontrar nenhuma condição, se suicidam. Essa é a primeira entrevista em que vou dizer isso, mas esta semana mesmo houve um suicídio em Ipoí, que é uma área retomada, uma comunidade que está sitiada por pistoleiros dentro da fazenda,em Paranhos. Nessa comunidade já houve três assassinatos. Dois deles tiveram repercussão, porque eram dois professores guarani kaiowá. Genivaldo foi morto e encontraram o corpo dele boiando num rio uma semana depois, com graves marcas de tortura. E o corpo de Rolindo nunca foi encontrado. Um ano depois teve o assassinato de Teodoro Ricardi e agora teve esse suicídio. O corpo ficou mais de um dia esperando, porque não teve nenhum atendimento da SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena). E os índios ficaram muito preocupados, porque não podiam mexer no corpo, não só por causa da crença, mas porque quando se encontra um corpo há um trâmite a ser seguido. Aí quem teve de retirar o corpo foi a Força Nacional, por falta de efetivo da SESAI, que não tem condições de prestar atendimento a uma comunidade que vive sitiada numa fazenda, cercada por pistoleiros. É importante frisar essa situação.

O governo estadual e o governo federal sabem oficialmente o que está acontecendo e não tomam as providências necessárias…

Sabem, são informados de tudo. E entra governo, sai governo, são só promessas de tentar resolver a situação dos kaiowá guarani. Mas nada acontece de fato. E a solução viria, em primeiro lugar, com a destinação da terra. Mas atualmente essas terras estão nas mãos dos fazendeiros. Enfrentar isso talvez não esteja entre as prioridades do governo. Por que o que houve? Além de o governo desrespeitar a Constituição – a de 1932 já tinha sido desrespeitada – retirando os índios das terras, titulava os fazendeiros que ocupavam a região. Como o governo demorou para resolver isso, você tem títulos com mais de 60 anos e aí os proprietários brigam por entenderem que aquelas terras são deles por direito. Mas a Constituição de 1988 coloca que, quando você declara que uma terra é indígena, os títulos que estão sobre essa terra – não importa se têm um ano ou 200 – são considerados nulos. Os indígenas têm a posse original da terra. E como é terreno da União, a União não pode indenizar a si mesma em caso de nulidade dos títulos. Ou seja, os fazendeiros que ocupam essas terras não têm direito a ressarcimento da terra, apenas das benfeitorias instaladas ali, casas, plantações, estruturas, etc… Então quando um fazendeiro tem sua fazenda declarada como terra indígena, ele não tem direito a indenização sobre a terra, só pelas benfeitorias. E esse é o grande foco das disputas. As terras de Mato Grosso do Sul são umas das mais produtivas do Brasil, são planas, bem irrigadas. Então, às vezes, até o governo estadual se coloca até truculentamente, contrário ao direito territorial indígena, e não resolve a questão kaiowá guarani. Entra governo e sai governo e não se resolve. O próprio presidente Lula disse em 2008 que a questão kaiowá guarani era uma questão de honra para ele, mas até agora nenhuma portaria demarcando as terras indígenas foi publicada.

Mas últimas duas ou três semanas, o assunto estourou. O que aconteceu?

Isso. Veio a carta de Pyelito Kue, uma das mais de dez comunidades que nos últimos anos retomaram suas terras, que vem enunciar de uma maneira muito profunda, a partir do drama da comunidade, a situação de genocídio a que eles estão submetidos. Eles falam em determinado momento que, já que o Estado brasileiro não consegue garantir a vida da comunidade a partir dos territórios de onde foram expulsos, talvez seja melhor que eles sejam mortos e enterrados ali. É o que chamam de morte coletiva. Que o Estado brasileiro mate todos, traga tratores, faça um grande buraco e enterre todos ali.

Isso não é então suicídio coletivo?

Não. Isso é muito forte, mas foi interpretado pela imprensa como suicídio coletivo. Não é. Trata-se de uma morte coletiva, mas quando se falou em suicídio coletivo, mobilizou muita gente, foi para as redes. Inclusive já tem vídeo na internet com a liderança de Pyelito Kue explicando o que é a morte coletiva. Eu também estive com eles em Brasília e posso dizer que não é isso. Porque eles se suicidarem significa entregar a terra aos fazendeiros e não é isso que eles querem. O que eles afirmam na carta é que, se morrerem, seráem combate. Eque vão resistir até o fim. Na carta, dizem que não sairão da terra nem vivos, nem mortos. Pode vir polícia, pode vir pistoleiro, mas eles não saem dali. Nem vivos e nem mortos.

Essa carta foi feita pelo líder de Pyelito Kue, mas poderia ser estendida às demais comunidades? Esse sentimento expresso na carta de Pyelito Kue expressa os sentimentos de outras comunidades da região?

Sim, a gente pode reunir uma série de cartas de líderes de aldeias retomadas e elas todas falam em resistência aos ataques e que vão resistir. Faz parte até do senso comum dos kaiowá guarani. Porque eles dizem que, em lugar de morrer na rodovia, entre a cerca e a terra, ‘prefiro morrer na minha terra, junto com meus antepassados, no meu tekoha, como eles dizem, no meu território, onde posso existir’. As comunidades vão para as retomadas com o peito aberto. Com as mulheres, as crianças nos ombros e vão para terras onde hoje há fazendas. Chegam lá e encontram pistoleiros. Em Ipoí, em 2009, foram pelo menos 50 pistoleiros que atacaram a comunidade. Essa de Pyelito Kue que divulgou a carta já sofreu três ataques. Inclusive um foi considerado ataque genocida pelo Ministério Público Federal.

Mas houve um recuo agora, não? Conseguiram reverter uma decisão em favor dos fazendeiros na semana passada?

O governo tenta camuflar. Noticiaram essa reversão. O Tribunal Regional Federal de São Paulo conseguiu suspender a ordem de despejo dos indígenas. Mas essa decisão também é problemática, porque eles têm de ficar em um hectare, mais de 100 pessoas em um hectare, que são mil metros quadrados, é pouco para as 170 pessoas. Então o governo está tentando camuflar a situação, dizendo que resolveu a situação de Pyelito Kue e que não precisa mais de mobilização, mas na verdade não é isso. A situação não está resolvida, a ameaça de ataque às comunidades está aumentando, e não tem nada resolvido. Há outras comunidades ameaçadas de despejo, como algumas de Dourados e Paranhos. Em algumas delas, como Arroyo Corá, terra já declarada como indígena, ouem Potrero Guaçu, até já homologada, ou seja, viveu o último estágio da demarcação das terras indígenas. E ainda assim a comunidade não pode ocupar, por conta dos fazendeiros e dos pistoleiros. Essa aldeia foi homologada pelo Lula em 2005 com 9 mil hectares e a comunidade ocupa hoje apenas120 hectares. Porque vem em seguida um processo de judicialização. Os fazendeiros vão cobrar favores dos juízes, principalmente dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) e dos ministros ligados ao agronegócio, e conseguem a suspensão de homologações presidenciais. É um absurdo que revela principalmente a incompetência do Estado brasileiro em proteger e dar vida as suas populações indígenas.

E os prognósticos então são ainda piores?

São os piores mesmo. E a situação do estado do Mato Grosso do Sul nisso tudo é muito séria, talvez das mais graves dos últimos anos, porque todos os processos de terras que estão previstas para serem demarcadas vão ficar paralisados. O número de ataques, homicídios, suicídios e desnutrição vai aumentar muito – 90% dessas pessoas vive de cesta básica – e vai ser tudo paralisado. E aí, é como dizemos, estará assinado o decreto de extinção desse povo. Em 1976, o CIMI já tinha denunciado essa situação através de um relatório. Se, naquela época, o governo tivesse devolvido minimamente as terras, não estaríamos nessa situação agora. Naquele momento, a organização social estava mais preservada, as comunidades faziam os rituais. Hoje, isso não existe mais. Alguns povos guardam para momentos em que a situação esteja mais segura. Outros nem realizam mais, se perdeu. Tudo aquilo que for feito que não seja em primeiro lugar devolver as terras para esses indígenas será paliativo.

E esse discurso da morte coletiva, da resistência até o fim, é sério mesmo?

É muito sério, muito coerente e em nenhum momento podemos duvidar da resistência desse povo. Hoje, com mais de 200 anos de contato, é um povo que mantém a língua, as tradições, está bem unido. Agora tem um agravante, a ocupação ilegal da terra. É ingênuo a gente pensar que todos os títulos de Mato Grosso do Sul são de boa fé. Dados do Ministério Público Federal apontam que, dos 79 municípios do estado, 60 possuem terras irregulares, griladas. Os dados não fecham. Incra, governo estadual e Ministério Público divergem. Há fazendeiros que deviam estar produzindo em500 hectarese produzem em 3000. E já existem mecanismos no estado de indenização, só que ele leva em conta o lote original, de500 hectares, por exemplo. Quando o fazendeiro percebe o tamanho do problema, que teria solução, sai da mesa de negociação e entra na Justiça.

E daqui de São Paulo, como escolas, professores e alunos devem encarar essa questão toda? Como abordar em sala de aula?

Os professores precisam lembrar que existem duas Histórias: a do colonizador e a história contada por quem foi escravizado, invadido. E a história dos índios está muito presente nesses povos, eles sabem bem e lembram bem o que aconteceu. Eles veem hoje os assassinos de seus parentes, os invasores de suas terras receberem homenagens e virarem nomes de rua, em função da história que só é contada do ponto de vista do colonizador. Acho que a partir dessa legislação que prevê a história dos povos indígenas e dos povos afrodescendentes no Brasil, temos oportunidade muito grande de contar a história a partir do olhar desses povos. E temos muitos elementos de como foram as guerras, do que aconteceu com as comunidades, já há material didático, mas nós não exploramos e ficamos sentados sobre os estereótipos. O índio tem que ficar quieto, peladinho, lá no meio do mato, batendo a mão na boca, e essa é a oportunidade de superar isso. O Brasil possui a segunda maior diversidade étnico-cultural do mundo – só perde da Indonésia –, e isso se deve aos povos indígenas. E quando se fala de povos indígenas estamos falando de nações com línguas, hábitos e organizações diversas, totalmente diferentes. Falar de terenas e guaranis é como falar de italianos e japoneses. A gente precisa entender que 80% da nossa diversidade cultural reside em 0,5% da nossa população, que são os povos indígenas. O Brasil possui 250 povos indígenas e mais de 180 línguas diferentes faladas por esses povos. Então não dá para botar todos os povos no mesmo saco, misturar e chamar de índio. O professor se aventurar no descobrimento dos hábitos, das crenças e dos costumes desses povos, e até visitar alguns, por que não? Será fundamental para educarmos uma geração mais consciente do direito dessa população e do direito de eles serem diferentes, porque os povos indígenas hoje é a camada social brasileira que mais nos desafia e que mais nos provoca a sermos diferentes. Isto é: quem falou que temos de trabalhar 8 horas por dia? Quem falou que precisamos de um Estado para viver? Tem cerca de 70 comunidades na Amazônia que vivem isoladas e que não precisam desse Estado para viver. E nossa sociedade não vai conseguir captar se não for pela vivência desses povos em sala de aula.

One Comment

  • Heloisa Candia Hollnagel disse:

    Parabéns pela reportagem, apesar das políticas públicas o desconhecimento sobre as comunidades indígenas entre os professores tanto da educação básica quanto da superior se limita à visão européia da história. Existe a necessidade de uma reflexão crítica sobre a importância de manter a “biodiversidade cultural” no Brasil.

Comentários