Por Elisa Marconi e
Francisco Bicudo
Passados pouco mais de seis meses das chamadas jornadas de junho, que tomaram as ruas de mais de 100 cidades brasileiras, muitas interrogações levantadas à época continuam nebulosas e provocando acalorados debates. Intelectuais e analistas ficaram surpresos com as características das marchas – tudo tão diferente do que as cartilhas explicativas do século 20 sugeriam e pregavam. Quem eram, por exemplo, aqueles jovens desligados de partidos políticos e de outras organizações tradicionais, mas com forte senso de exigência de direitos civis? Por que tomaram as cidades reivindicando o livre acesso à vida nas metrópoles? Como conseguiram tanto sucesso na reunião de pessoas com formações, expectativas e demandas tão heterogêneas? E, por fim, o que, de fato, querem esses garotos e garotas?
Sem a intenção de esgotar o assunto, o cientista político Rudá Ricci decidiu se dedicar ao tema e produziu um livro com objetivo de compreender com a máxima profundidade possível as manifestações. Assim, chega às livrarias uma obra que oferece algumas explicações a respeito do que se passou e sobre as consequências políticas dos protestos populares recentes. É o livro Nas Ruas – a outra política que emergiu em junho de 2013 (Ed. Letramento), feito em parceria com o antropólogo Patrick Arley, autor das mais de 60 fotografias que recheiam o volume.
A reportagem da Revista Giz conversou com exclusividade com Ricci para tentar lançar luzes sobre aquelas tantas dúvidas que nos acompanham – e outras tantas que apareceram por conta das repostas do pesquisador. A seguir, o leitor pode encontrar os melhores trechos da entrevista.
Qual é a mensagem central de Nas Ruas – a outra política que emergiu em junho de 2013?
Rudá Ricci – Nas ruas é um livro que pode ser lido de duas maneiras: pelo texto, que eu escrevi, ou pelas fotografias, tiradas pelo antropólogo Patrick Arley. A gente achou que as manifestações tinham uma linguagem plástica, imagética, estética, muito própria, que precisava ser mostrada. Os cartazes, as roupas, a ironia, a irreverência, todo aquele conjunto de signos não podia ser apenas traduzido em palavras e não seria correto em termos metodológicos não explicitar as imagens. Por isso, em cada capítulo, colocamos uma coleção de fotos significativas. São 64 imagens, para você ter ideia. Em segundo lugar, o livro é um mergulho nas manifestações de junho. A gente vinha percebendo que algumas pessoas escreveram durante e depois das manifestações, que foi no calor do momento e com um caráter parcial, assumindo o caráter político do que estava ali. Já tinha, portanto, livro de quem era manifestante de fato, de quem era do Movimento Passe Livre, e por isso participou, tem outro de um procurador que escreve contra a corrupção. Enfim, são obras importantes, bem feitas, mas, em geral, sem fôlego para interpretar e projetar o país antes e depois das manifestações. Então achamos que tínhamos de fazer um texto que fosse uma pesquisa, e não um texto opinativo, que buscasse revelar por que surgiu, como pensavam as lideranças e como foi a organização interna que desabrochou nas três semanas de junho. A ideia era também tentar entender por que o movimento parecia algo novo, como envolveu milhões de pessoas e se de alguma forma projetaria o país para a frente.
A divisão dos capítulos ajuda a entender cada faceta das manifestações. Como foi esse agrupamento?
O primeiro capítulo explica as características das manifestações registradas em 100 cidades do país. O segundo capítulo trata dos sinais de que aquilo ia acontecer, já estavam latentes, mas a gente não conseguiu bem decifrar. O terceiro capítulo fala das manifestações mundiais do século 21 que, veja, tinham exatamente as mesmas características das nossas. A gente analisa a Primavera Árabe, os Indignados da Espanha, o Occupy dos Estados Unidos, a Revolução das Panelas da Islândia e as Assembleias Populares do início do século na Argentina, que ninguém nunca cita, mas que são muito parecidas. Todas elas têm o mesmo modelo: estrutura horizontalizada, internet usada como comunicação, a ocupação da rua, assembleia populares e abertas, revolta contra sistema de representação, mosaico difuso de demandas e, principalmente, e isso é o mais importante, um enorme respeito à individualidade. Ou seja, o sujeito não precisa ter compromissos permanentes, pode ser de uma comunidade de skatistas ou de gamers, frequentar universidade ou só trabalhar, se aproximar politicamente de vários grupos distintos e, ainda assim, ter todas as suas reivindicações acolhidas nas manifestações. No quarto capítulo, a gente considera isso muito importante, a gente analisa o passo a passo da organização, como funcionam os grupos, como agem e como pensam os líderes, um raio-x mesmo, quais grupos políticos estavam lá, a cultura, os valores, enfim… entrevistamos muita, muita gente. E o último capítulo é um balanço da crise de representação no Brasil. Entre os capítulos tem um caderno de fotos.
O Brasil está, pela primeira vez, de frente para o espelho. E a política tradicional, com esses políticos e práticas que estão aí hoje, não dão conta de atender a esses anseios. Para essa eleição de 2014, acho que não vai dar tempo de mudar muita coisa, mas para 2016 sim, já vamos notar diferença. Estamos, nesse momento, na troca de pele.
Então, para começar a detalhar: que manifestações foram aquelas? O que o primeiro capítulo revela?
Em primeiro lugar, eram manifestações de jovens. Existe, portanto, um recorte geracional. Claro que existem pessoas de todas as idades, mas o grosso era de pessoas de 20 a 30 anos. Existe, então, um recorte geracional. E essa geração inaugura uma cultura diferente de todas as outras que vieram até aqui, porque as grandes referências, os exemplos, os modelos desses jovens são colegas e amigos da mesma faixa etária e não mais os adultos mais velhos. Por uma série de razões, principalmente a absorção pelo mercado de trabalho, eles cresceram sem a presença constante do pai ou da mãe. E isso dá uma forte rejeição à hierarquia e autoridade.
Ou seja, as relações mais naturais para eles são de ligação horizontal e não mais vertical.
Exatamente. E o esforço para o trabalho, por exemplo, se dá por prazer individual e não porque alguém, pai, chefe, empresa, impôs ou sugeriu. E quando essa geração acessa as redes sociais pelo smartphone, coisa de dez anos para cá, isso reforça a criação de uma comunidade fechada. Inclusive no jeito de falar. E o mais importante, a estrutura das redes sociais na internet é calcada na adesão e não no convencimento. Isso significa que o indivíduo é autônomo para decidir se entra ou se sai de um grupo, uma comunidade. E as comunidades vivem desse reforço da individualidade. Qual é a característica organizacional? A provisoriedade. Hoje aqui, amanhã ali. E ninguém tem nada com isso. Então eu vou numa manifestação hoje e amanhã posso não ir. Se eu for, escrevo minha pauta. E ela é tão válida quanto qualquer outra.
E isso confunde a imprensa e os pensadores.
Exatamente. Os jornalistas e os sociólogos na faixa de 50 anos, como eu, ficam se perguntando qual é a pauta. Mas não existe uma pauta, porque cada cartaz é uma manifestação. Essa prática de manifestação do século XXI está sendo chamada de enxameamento, como enxame de abelha. Ele chega, ninguém sabe por que. E vai embora sem ninguém saber por que. Essa estrutura provisória ofende as estruturas organizacionais do século XX. Estamos tendo um confronto dessa lógica do século XXI, com a cultura e a lógica do século XX. Essa é a base para compreender o que aconteceu em junho e o que acontece hoje, nas manifestações.
E chama atenção também a ocupação da cidade e o empoderamento que isso traz.
Isso mesmo. E é um empoderamento imediato. Não é para depois das eleições. É no instante em que a manifestação, o rolezinho, a ocupação da praça Rosa, enfim… E isso é espantoso e revolucionário. E com respeito a cada um. E isso desnuda o sistema de representação formal, que no Brasil são todos de mediação. Têm, de fundo, uma cultura anarquista, mesmo entre os filiados a partidos políticos. Várias lideranças estiveram no Egito, no Occupy, na Argentina.
O senhor encontrou uma orientação mais de esquerda entre os manifestantes?
Aqui em Belo Horizonte, isso era claro. As manifestações foram puxadas pelos partidos de esquerda, PSTU, PSOL, PSTU-R, movimento feminista e movimento gay. O primeiro grito de guerra, para você ter ideia, foi “todos somos de esquerda”.
Isso é bem diferente do que aconteceu em São Paulo.
Completamente. Mas São Paulo foi um caso único. O que aconteceu em BH foi similar ao que aconteceu no resto do país. São Paulo, onde a direita entrou em confronto com a esquerda na rua, houve conflito ideológico. No resto não teve isso.
O senhor diz que houve antecedentes e sinais de que as manifestações iam acontecer, mas que a gente não conseguiu entender bem. Quais foram esses sinais?
Nos meses anteriores, pesquisas do Ibope e da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, que fazem esses levantamentos de tempos em tempos, apontavam que a confiança dos brasileiros nas instituições democráticas era de apenas 5%, o Congresso Nacional tinha apenas 20% da confiança. Nunca tinha sido tão pouco. Todas as instâncias de representação política estavam deslegitimadas. Um ou dois meses antes das manifestações houve o boato do bolsa-família e o resultado foi um mundo de saques do bolsa-família. Naquele mesmo contexto teve a alta do tomate, indicações de que a inflação estava voltando e, assim, uma desconfiança estava instalada. Boato só se alastra se a percepção é de que aquilo tem algum sentido. Além disso, no último governo do Lula, ele tirou as entidades de mediação dos movimentos sociais das ruas e os colocou na formalidade da negociação, através de convênios, ou até dentro do governo. Isso esvazia o movimento. Os manifestantes juntaram mais de dois milhões de jovens de um dia para o outro. As centrais sindicais, no dia 11 de julho, não conseguiram nem um décimo disso. Elas mesmas dizem que foram um fracasso, que perderam as ruas. Então era previsível que essas demandas de sempre explodiriam, mas sem canal de expressão. A engenharia que Lula montou não previu que deixaria as ruas órfãs. Temos que ter respeito do ponto de vista da lógica social por esses meninos, porque eles fizeram isso sem dinheiro e sem projeto de poder institucional, político-partidário.
Mas não existe uma pauta, porque cada cartaz é uma manifestação. Essa prática de manifestação do século XXI está sendo chamada de enxameamento, como enxame de abelha. Ele chega, ninguém sabe por que. E vai embora sem ninguém saber por que. Essa estrutura provisória ofende as estruturas organizacionais do século XX.
E por que em São Paulo a situação foi tão diferente do resto do país?
A população de São Paulo e a cidade, como consequência, estão profundamente polarizadas do ponto de vista dos valores políticos e sociais. Então tem uma parte onde moram os migrantes e população excluída, que quase sempre votam e expressam valores progressistas de ampliação de direitos. Estou falando de Zona Leste e Zona Sul, onde tem movimento por moradia, educação, e um jovem que quer ser respeitado, ter sucesso e consumir. Nas eleições de 2012, essa população refletiu, mudou o voto e tivemos segundo turno sem Russomanno. São comunidades articuladas, ligadas à igreja católica ou evangélica, ou a time de futebol. Estão agregados a esse pessoal os movimentos culturais de vanguarda, de ocupação do centro, de intervenções na cidade, os coletivos. E tem um outro pólo de valores ideológicos e ação política – e geográfico também, Zona Norte, Vila Maria, e um pedaço do centro e Zona Oeste – que vem se convencendo nos últimos anos de que a cidade vem perdendo a segurança e a tranquilidade principalmente em função dos migrantes. Os migrantes são muito mais atacados por essa população que os gays, por exemplo. Acham que esse pessoal sem os valores paulistanos vem invadindo de forma selvagem os territórios. E reagem a isso, com um pensamento conservador. Porém acham que parte da culpa é da ausência de lideranças políticas que tenham esses valores. São, em geral, refratários aos governos e principalmente às políticas sociais. E o que acontece nos últimos anos? Um pêndulo social: voto na Erundina, depois no Maluf e no Pitta, aí na Marta e depois Serra e Kassab e, agora, Haddad. É um pêndulo ideológico nas eleições, é uma cidade que não consegue se encontrar. E são forças até equivalentes. E esses grupos opostos se encontraram nas ruas e entraram em conflito. O que acontece daí é que a direita toma o centro da cidade e a esquerda vai para a Zona Leste e Zona Sul.
O senhor sugere um apelido para essa situação sui generis da cidade e do estado de São Paulo, né?
É a síndrome de 32. O estado de São Paulo tem características muito parecidas com a cidade de São Paulo, com essa polaridade entre forças progressistas e conservadoras. Essa lógica é reproduzida também no estado. Pouco a pouco, o Lulismo avança sobre todo o país, com exceção de São Paulo. É a autonomia do estado frente ao poder central. A autonomia, a diferença, o sucesso, uma lógica e ética do trabalho muito arraigado. Por isso, o rolezinho ofende muito mais em São Paulo que no resto do país, porque ofende a lógica, porque é uma invasão do outro e o nativo se sente afrontado.
O que fica de tudo isso para o que vem por aí na política, especialmente em ano eleitoral?
O que tivemos nos últimos 10 anos e até junho é o país, que vivia submerso, aparecendo. E isso está assustando. São os pré-adolescentes consumidores de massa do rolezinho, é a classe C consumidora querendo virar cidadã, a população do bolsa-família, que se entende como eleitores fieis do Lulismo, mas que não são tanto assim. O Brasil está, pela primeira vez, de frente para o espelho. E a política tradicional, com esses políticos e práticas que estão aí hoje, não dão conta de atender a esses anseios. Para essa eleição de 2014, acho que não vai dar tempo de mudar muita coisa, mas para 2016 sim, já vamos notar diferença. Estamos, nesse momento, na troca de pele.