* Artigo de Marilena Chauí, publicado originalmente no Blog da Boitempo
Como surgiu a “mulher freudiana”? Em Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade, com essa indagação, Maria Rita Khel, partindo da declaração de Freud de que não se nasce mulher nem homem, mas nos tornamos um ou outro, propõe desconstruir a figura universal e abstrata de A Mulher, isto é, um conjunto de imagens e representações que tentam produzir uma identidade para todas as mulheres sem alcançar nenhuma delas em sua singularidade. Para responder a essa indagação, Maria Rita propõe o conceito de deslocamento, que permite acompanhar as mudanças nos conceitos de feminino e feminilidade (bem como de masculino e masculinidade) conforme se desloca a posição das mulheres com a formação da sociedade burguesa, na passagem da Revolução Francesa para a sociedade urbana industrial do século XIX, quando nasce a psicanálise.
Deslocamento possui dupla significação: é objetivo, isto é, determinado pelas condições históricas da modernidade, e subjetivo, isto é, forma o conjunto de representações singulares que as mulheres passam a ter si mesmas. O núcleo deste livro se encontra nas análises que levam ao surgimento da figura das mulheres como histéricas. Por isso, deslocamento possui um terceiro sentido, apresentado de maneira direta e singela pela autora: as mulheres como fundadoras da psicanálise juntamente com Freud. Sentido gigantesco, como logo se vê, pois as mulheres não foram passivas e sim o que tornou a psicanálise possível.
Quatro questões principais formam a teia cerrada da interrogação de Maria Rita, que as enfrenta percorrendo com erudição, argúcia, elegância e firmeza a história social, a lingüística, a literatura, a teoria literária, a psicanálise freudiana e lacaniana, e a filosofia.
Primeira questão: como e porque se dá o deslocamento da posição feminina na modernidade? Para responde-la, Maria Rita examina a presença das mulheres durante a Revolução Francesa, isto é, sua presença colocaram no espaço público, graças à declaração dos direitos à igualdade e à liberdade, e o temor burguês diante dessa aparição. Ocorrerá com as mulheres o mesmo que com as massas trabalhadoras: o grito igualitário e libertário de 1789 produzirá pavor na burguesia e será substituído pela repressão de 1848. No caso das mulheres, a negação da igualdade e da liberdade se efetua com a construção de uma “natureza feminina”, imagem tensa da mulher como naturalmente sensual e desmedida, e, ao mesmo tempo, naturalmente sensível e amorosa, destinada ao casamento (por amor, é claro) e à maternidade, funções que só realizará se for domesticada (no duplo sentido da palavra), isto é, se for obrigada a passar daquilo que ela é àquilo que ela deve ser. Instinto desgovernado nas mocinhas e frigidez nas mulheres casadas: eis o imaginário burguês. E o contraponto das vozes femininas singulares que, na literatura e nos “escritos sobre si”, se ergueram contra isso.
A segunda questão, como conseqüência, indaga: porque Emma Bovary é uma das expressões mais fortes e terríveis dessa mulher (freudiana)? Atacando com ironia impiedosa a mediocridade, estupidez e ignorância do senso-comum burguês, Flaubert constrói Emma Bovary como a menina provinciana educada num convento e alimentada (como as jovens da época) pelos romances “para moças”, que incendeiam sua imaginação na busca do amor e da aventura e que viverá entre homens medíocres, pomposos e inescrupulosos. A narrativa acompanha os deslocamentos sucessivos da personagem, que, sem cessar, só pode inventar personagens para si mesma: adolescente mística, esposa virtuosa, adúltera, primeiro como amante seduzida e, depois, como amante sedutora e experiente, insatisfeita e vazia, se torna consumista voraz (impedida de ser, acredita realizar-se pelo ter) e, finalmente, suicida. Madame Bovary se desloca de uma posição passiva a uma ativa, porém, sempre na posição histérica, isto é, “sua completa dependência em relação ao outro – no caso, um homem; mais ainda, o homem da relação amorosa”, marido, amantes e Jesus. Mesmo quando passa da posição passiva à ativa, “é capaz de manejar o falo, não é capaz de reconhecer que o faz”. É falada pelo discurso do Outro ou objeto do discurso do Outro, sem alçar-se à posição de sujeito. Fracassa sempre.
Donde a terceira questão: qual a relação entre a cura analítica e a ética? Se Lacan tem razão ao afirmar “eu sou onde não penso/ eu penso onde não sou”, indaga Maria Rita: como “furar o discurso do Outro”? Como tornar-sesujeito? Seja sujeito falante, sujeito do desejo? Como tomar o próprio destino em nossas mãos? A distinção lacaniana entre o real, o imaginário e o simbólico abre caminho para a criação de respostas, juntamente com a desmontagem do imaginário burguês com sua glorificação abstrata do livre-arbítrio e do dever, gênese da culpa, da neurose e da impossibilidade da vida ética.
Essa distinção lacaniana é uma das chaves para a quarta questão: por que Freud permaneceu cego para suas descobertas sobre o feminino, ele que foi capaz de escutar as falas e narrativas de mulheres que jamais haviam sido ouvidas e que, com ele, fundaram a psicanálise? Resposta: porque se deteve no real (biológico) e no imaginário (as representações), sem passar ao simbólico, mesmo em suas obras de metapsicologia e sobre a cultura. Freud se refere ao feminino como mistério e enigma, conserva a imagem vitoriana da mulher dependente e doméstica quando tinha tudo para supera-la. Escreve Maria Rita: “A manutenção de um ponto enigmático sobre o querer feminino, a representação da mulher como continente negro da psicanálise seriam, a meu ver, recursos a que Freud recorreu para manter-se ignorante a respeito do que ele mesmo não queria saber, embora já tivesse revelado ao resto do mundo: a diferença fundamental entre homens e mulheres é tão mínima que não há mistério sobre o “outro” sexo a que um cavalheiro não pudesse responder indagando a si próprio. O que fez Freud, aliás, mas, como bom neurótico, não podia saber o que estava fazendo”. Sou onde não penso, penso onde não sou…