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Destaque

Quando as armas são informação, conhecimento e educação

By 30/11/2017No Comments

Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Diante de uma plateia ávida por respostas, a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro lançou um desafio: indignai-vos! Esse é o primeiro passo, segundo ela, para que se lute por sociedades mais humanas, respeitosas e solidárias.

O evento em questão foi o seminário “O mundo depois do Holocausto: direitos humanos e direitos nacionais”, que aconteceu na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), no último dia 22 de novembro. E a palestrante, Maria Luiza, é professora da Universidade de São Paulo (USP), autora de mais de 15 livros, especialista em antissemitismo, intolerâncias e Holocausto, além de coordenar o Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer), do Departamento de História da USP, onde desenvolve o projeto Arqshoah -Vozes do Holocausto. Por enfrentar intelectualmente e desde muito cedo todos esses fantasmas, e a partir do tema do seminário, a professora é capaz de propor uma série de ideias e caminhos para combater as serpentes que já saíram dos ovos e hoje passeiam destilando ódios entre as pessoas, nas páginas dos jornais e, principalmente, nas redes sociais.

A reportagem da Giz conversou com exclusividade com a pesquisadora para tentar apontar esses caminhos de resistências. A historiadora defende que é preciso encarar os inimigos de um mundo mais tolerante e democrático exatamente da forma como eles se mostram hoje.

Fake News, por exemplo. A expressão da moda para explicar a disseminação de boatos e a construção de mentiras e de verdades manipuladas deve estar na base das preocupações da sociedade.

“Não é nada novo. A contra informação e a boataria sempre existiram e sempre ajudaram a destruir discursos e a criar outros”, reforça. No entanto, a novidade do nosso tempo é a propriedade da voz. “Todos podem ser donos da verdade hoje. Basta publicar um post na internet. Se você tiver uma imagem que ajude a comprovar sua tese, mesmo que ela seja mentirosa, e postar ao lado de um pequeno texto, pronto: já temos a notícia”, provoca Maria Luiza.

De fato, a internet mudou a relação estanque e unidirecional entre emissor e receptor de informações que conhecemos até o início dos anos 1990. Com a ascensão das redes sociais, essa possibilidade de qualquer um ser emissor, repórter, narrador, formador de opinião ampliou-se extraordinariamente, lembra a historiadora. Junto com esse fenômeno, Maria Luiza e sua equipe de pesquisadores da Universidade de São Paulo viram crescer duas derivações.

A primeira é um aperfeiçoamento nos métodos de construção de versões falsas, de mentiras como se fossem verdades. “Vivenciamos o mundo do fake, construído por falsas identidades, que reforçam o antissemitismo, o racismo e os preconceitos contra outros grupos étnicos, como os ciganos e indígenas”, propõe. A implantação desses textos e fotos na rede mundial de computadores gera uma enxurrada de falsas notícias, falsos documentos, falsos testemunhos que, por algumas razões, convencem uma massa desinformada e decidida a ter respostas rápidas e convincentes.

Essa é justamente a segunda derivação. “Num mundo de excesso de notícias – verdadeiras e falsas – que chegam, via redes sociais, antes mesmo de eu pedir, a população tem a sensação de estar muito bem informada quando, na verdade, sabe muito pouco”, garante Maria Luiza. Pior que a sensação de saciedade em relação às notícias e aos acontecimentos do mundo, a avalanche de informações resulta em pessoas que não tem nem a chance de querer saber. “O excesso e a velocidade embotam a curiosidade. Não temos nem tempo de parar para pensar ‘mas por que isso é assim, ou assado?’. A reposta vem antes da pergunta e sabota o desejo de saber”, lamenta.

Uma sociedade que não questiona é uma sociedade adormecida, que não se aprofunda, que não se interessa. E quando esse mesmo grupo acredita que já sabe tudo, que já tem as respostas, criamos um mundo que não contesta, que não se indigna, “que aceita tudo que é dado como verdade, mesmo que seja a negação de atos e fatos históricos”, explica a professora. Essa postura acarreta em desvios sociais importantes.

Por exemplo, quando policiais não conhecem bem a trajetória do negro no Brasil e quando aceitam que um ato de racismo foi, na verdade, um mal entendido, ou uma brincadeira de mau gosto, não pode lavrar um boletim de ocorrência fidedigno. Não ter documentos que representem a realidade impede o trabalho de classificação, sistematização e pesquisa, que dariam um panorama da realidade. “Quando a gente não olha de frente e encontra uma versão mais suave, que cede a pressões pouco louváveis com a História, não desconstruímos o negacionismo, que é nefasto para a construção histórica”, sugere Maria Luiza.

A historiadora se refere aos crescentes movimentos de negação de fatos históricos que vêm se alastrando nos últimos anos. Novamente, o fenômeno não é novo, basta lembrar das mil teorias que circulam sobre a (não) chegada do homem à Lua, em 1969. Tudo teria sido feito em estúdios de Hollywood. Em 2014, Maria Luiza publicou o livro Dez mitos sobre os judeus (Ateliê Editorial), no qual desconstrói uma dezena de falácias – construídas com fake documentos, fake News e fake testemunhos muito bem sistematizados – sobre a perseguição aos judeus na 2ª Guerra Mundial, a existência de campos de concentração, a política antissemita que o Brasil adotou nos anos 1940 e assim por diante. Esse é só um exemplo da indústria da negação de fatos históricos com finalidades pouco éticas.

Também no Brasil o negacionismo marca a disputa da narrativa histórica. E assim proliferam versões mais suaves, mas cheias de supostas comprovações, do que foi a escravatura, o Estado Novo, a ditadura militar e por aí vai. “É uma presença constante o negacionismo brasileiro. E por aqui se aceita muito bem. Numa canetada, num verbete de dicionário, num artigo de jornal, o fato simplesmente deixa de existir e a História é redesenhada sem aquele incômodo”, alerta. Atente para a palavra “incômodo” usada pela professora: “a negação sempre se dá quando o assunto é um engasgo, algo mal resolvido, um fato que não se justifica e era melhor que não tivesse acontecido”, ensina.

Neste ponto entramos no segundo aspecto fundamental para a promoção de uma sociedade intolerante e embrutecida: o desconhecimento histórico. Maria Luiza bate nessa tecla há muitos anos, desde que começou a estudar autoritarismo, antissemitismo, intolerância e memória. “As pessoas aceitam o que leem, ou o que ouvem, porque não conhecem a realidade histórica, que permitiria entender a realidade presente. Enquanto a população não conhecer e se apropriar da sua história, vai aceitar tranquilamente as mentiras verossimilhantes vendidas e publicadas”, garante. Uma sociedade que desconhece e, portanto, aceita o que vem também é surrupiada do direito de se indignar e cobrar mudanças, reparações.

O tom de voz da entrevistada até muda quando passamos das dificuldades que nosso tempo impõe para as armas disponíveis para lutar por uma sociedade menos bruta. No seminário da PUC e também na entrevista, Maria Luiza reforçou que “todos podem ser ativistas”. Ou seja, não é preciso formação especial, não é preciso filiação a grupos políticos ou a entidades da sociedade civil. “É fundamental se indignar, manter a chama da indignação acesa. É ela que empurra para frente e que faz querer descobrir, entender, defender algo”, propõe. Para se indignar, continua, é preciso levantar a primeira arma: informação.

Buscar as fontes e informações sérias e bem apuradas, não acreditar em tudo que se diz e, principalmente, educar-se para ler o que está escrito, de forma crítica, são algumas das trincheiras de resistência. Nessa construção, professores têm papel fundamental. “Se perguntem e perguntem aos alunos: por que aquela foto está na primeira página do jornal? Perguntem quantas outras fotos foram tiradas sobre o mesmo assunto e por que justamente aquela foi a selecionada. Entender os interesses das escolhas e das edições é fundamental”, ensina a professora. Ela segue: “sempre devemos avaliar bem a fonte e nos perguntar a quem essa notícia interessa e em quem ela bate”. Com esse nano-manual na cabeça, já dá para ler com mais consciência as matérias, reportagens e posts que caem no colo. Educadores devem ter essa mesma postura em relação ao material didático adotado: desconfiar, buscar mais informação, ler criticamente. “Fugir dos estereótipos, desconfiar quando o livro aponta um único vilão, apoiar-se na noção de processo, porque a história é uma construção”.

A segunda arma é o conhecimento histórico e sistematizado em perspectiva. “É um direito do estudante conhecer a história do seu povo, da sua etnia, do seu país, dos genocídios e das guerras. Tudo isso fez a gente chegar aqui”, afirma Maria Luiza. Ela reforça a necessidade também de foco nas negações: genocídios, guerras civis, ditaduras e massacres escamoteados devem ser estudados, compreendidos e, por que não?, reparados. A equipe do LEER tem promovido encontros com professores justamente para resgatar grandes questões históricas ainda não resolvidas, trabalhar os incômodos que insuflam os negacionismos e alimentar os educadores com argumentos e fatos que se apoiam na história documentada. “Chamamos isso de ações públicas, porque informam os professores e se multiplicam pelas escolas, famílias e sociedade”, explica.

Contra um coração mesquinho e contra solidão agreste, Chico Buarque recomenda Luiz Gonzaga e Pixinguinha. Contra o embrutecimento da sociedade e suas manifestações de intolerância, Maria Luiza segue uma toada afinada: educação. “De qualidade, crítica, que ensine o professor e o aluno a pensar, a propor e a construir. Educação informal também, nas famílias e nos grupos sociais. Conversar sobre os fatos, no sentido de construir e não de humilhar o outro”, sustenta. “Quanto mais se sabe, mais se quer saber. A educação que ensina a buscar conhecimento e informação ensina a encarar a história e a não permite as negações”, encerra.

 

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