Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
No início de fevereiro deste ano, a Science, uma das mais renomadas publicações de divulgação científica do planeta, destacou os resultados intrigantes de uma série de estudos feitos com meninas e meninos de 5 a 7 anos de idade. Nesses trabalhos, o que os pesquisadores das universidades estadunidenses de Nova York, Illinois e Princeton, comandados pela médica Lin Bian (de Illinois), revelaram é que, aos 6 anos, as garotas já têm convicção de que os garotos são mais espertos que elas, serão grandes líderes e farão relevantes descobertas científicas no futuro; elas, na direção contrária, imaginam que serão reconhecidas apenas por serem muito esforçadas.
Os autores da pesquisa escolheram especificamente essa faixa etária por entenderem que seria nessa etapa do desenvolvimento infantil que os estereótipos ligados a gênero começariam a aparecer e se firmar. O estudo acaba por confirmar esse dado claramente: até os 5 anos, meninos e meninas sugerem equilibradamente que o seu grupo é perfeitamente capaz de ser brilhante. No ano seguinte, tudo muda. Essa ruptura, segundo os pesquisadores, acontece numa idade ainda anterior à percepção biológica de gênero, que se manifesta por volta dos 8 ou 9 anos, na pré-adolescência. Justamente por ser numa fase muito inicial da vida, as constatações chamam atenção. O que será que pais – e escolas – estão ensinando para meninos e meninas de 6 anos para que eles distingam tão radicalmente as supostas potencialidades de cada grupo?
A física Márcia Barbosa, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), além de estudar água, suas anomalias e soluções aquosas, é referência nos estudos científicos sobre gêneros. Ganhadora de vários prêmios (‘For Women in Science’ e ‘Anísio Teixeira – Educação Superior’, entre outros), ela vem apontando como na carreira acadêmica – e ainda mais nas Exatas – as mulheres entram em menor número, não permanecem nela e raramente chegam ao topo dela. Marcia disse ter ficado bastante atraída pelos resultados alcançados pela pesquisa liderada por Illinois.
“Tem essa transição abrupta dos 5 para os 6 anos, em que nada acontece no desenvolvimento físico que diferencie meninos de meninas, mas alguma coisa se dá na percepção deles de mundo. A gente entendia que isso era um pouco depois”, pondera. Ela conta que, amparada nas estatísticas das Olimpíadas nacionais de Matemática ou de Física, detectou que, apesar de muitas vezes terem notas melhores, as garotas não participavam das provas. “Desistem sem nem tentar”, lembra. “E esse é o comportamento padrão. Elas vão melhor na escola, mas acham que física, matemática e essas coisas difíceis não são para elas. Deixam para os meninos”.
Para entender o pensamento dos meninos e das meninas, os pesquisadores de Illinois e das universidades parceiras inicialmente contaram uma história em que o protagonista era muito inteligente e outra em que o protagonista era muito esforçado, sem nunca revelar o gênero do personagem. Depois, pediram para que as crianças identificassem quem era o inteligente e quem era o esforçado. Os dois grupos – mas com destaque para as meninas – apontaram que os rapazes são brilhantes, enquanto as moças são estudiosas, esforçadas e simpáticas. Em seguida, os cientistas propuseram dois jogos: o dos espertos e o dos esforçados. Os pesquisados – estadunidenses, na maioria brancos e todos de classe média – deviam escolher aquele que mais os atraía. Adivinhe! Os meninos foram para o primeiro, e as meninas, claro, para o segundo.
Diante desse cenário, Márcia pinça uma informação que pode passar batida, mas que é, segundo ela, uma das chaves para compreender a situação. “Não é que as meninas acham os meninos mais espertos e ponto. Elas acham eles mais inteligentes, mas se veem como mais esforçadas, simpáticas, aptas a trabalhos em grupo”, aponta. “É essa relação, a lição que estamos ensinando: meninos são educados para ser espertos, meninas para serem esforçadas e empáticas”. De acordo com Marcia, se nada acontece dos 5 para os 6 anos no aspecto genético ou biológico, a transição para certa decepção com o gênero feminino é fruto de (des)informação, de uma sociedade que repete e reproduz essa ideia o tempo todo (às vezes sem nem perceber) e dos preconceitos e estereótipos intensamente reverberados.
O resultado dessa investida desde cedo é que, lá na frente, quando essas meninas chegam ao mercado de trabalho, o que era só percepção vira realidade. “É possível que, a longo prazo, esse estereótipo afaste jovens mulheres de carreiras supostamente associadas à ideia de genialidade”, afirmou Lin Bian, doutoranda da Universidade de Illinois e uma das autoras da pesquisa, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, em 01 de fevereiro. Estudando as estatísticas das mulheres no mercado de trabalho – com especial atenção à carreira científica –, Marcia constatou que, quando as mulheres querem se empoderar, escolhem determinadas áreas – e fogem de outras.
“Elas preferem as carreiras em que o trabalho precisa ser feito em grupo, como biologia, química. Já na física, ou na matemática, em que as pessoas acham que você tem de ser inteligente individualmente, elas não ficam”. Um bom exemplo disso é o que aconteceu com a carreira do programador. No início, quando era só programação, homens e mulheres estavam em igual proporção, segundo a professora. Depois, “quando virou coisa de nerd e software e hardware – máquina mesmo – começaram a dialogar, as mulheres saíram e ficaram só os rapazes, porque equipamento, chave e parafuso são instrumentos para homem”, provoca.
Desde a mais tenra e inocente infância, portanto, os pais e as escolas estamos afastando as meninas das máquinas e de trajetórias socialmente tidas como ‘mais inteligentes’. E elas reproduzem esse ideário pela vida toda. Marcia volta até a Idade Média para encontrar a raiz desse postulado. “O conhecimento sobre o funcionamento das máquinas está diretamente relacionado ao poder. Quem tem domina o outro. E eram os homens que queriam dominar os outros. Lembre do Feudalismo, da Idade Média. Os magos eram protegidos. As bruxas eram queimadas”.
Esse pensamento, ela insiste, é preservado e se reproduz até chegar aos dias atuais. Com o feminismo, a mulher sai de casa, ganha o mercado de trabalho, mas ainda vai quase sempre preferir as carreiras em que pode ser agradável, em que o trabalho é feito coletivamente, em que você não precisa ser inteligente, mas esforçado. “As pessoas não são malvadas, as pessoas reagem à pressão da sociedade e, para garantir que as mulheres encontrem seu lugar e fiquem ali, a partir dos anos 1940, as roupas e os brinquedos ganham gênero”, explica a professora. “A cor pink desesperadora é quase uma resposta ao feminismo. Mas tivemos grandes avanços. A sociedade vive em pêndulos: avanços e recrudescimento dos preconceitos”.
Por todos esses resultados e reflexões, a física brasileira acredita que a pesquisa comandada por Lin Bian abre duas avenidas de estudos para neurocientistas e educadores: como as crianças captam essa informação e o que fazem com ela? E a segunda: como podemos agir para mudar essa realidade? Ainda na entrevista à Folha de São Paulo, os autores afirmam que não há como determinar um único fator responsável pelo o que observaram no estudo. Segundo eles, é um fenômeno cultural, relacionado ao mundo ao redor da criança.
Embora não seja especialista em educação infantil, Márcia é uma investigadora das diferenças de gênero e arrisca dizer que a primeira providência é deixar as meninas se sujarem. Os meninos saem de casa e podem se sujar e se machucar. As meninas, não. “A ciência é uma visão de mundo que depende da intervenção nesse mundo. Quem não mete a mão no buraco, quem não levanta a pedra, não encontra o besouro. Quem não anda descalço na grama ou na lama, não se suja, mas também não descobre nada”, defende. Ao mesmo tempo, enquanto os livros trouxerem exercícios falando de avião, de trem, de barco, de tiro de arma de fogo, as meninas vão ficar de fora. “Isso é visto como brincadeira de menino, não toca as meninas do mesmo jeito. Se elas brincarem das mesmas coisas na infância, se identificarão com os problemas de física na adolescência. As mulheres sentem que não é o clube delas, como se não pertencessem a ele”, provoca mais uma vez a física da UFRGS.
Brincadeiras que exigem estratégia, como xadrez, jogos de tabuleiro e videogame, também costumam ser associadas aos meninos. No entanto, seriam um ótimo recurso em casa e na escola para derrubar a ideia de que a esperteza mora nos cromossomos XY. Também os professores podem atuar no combate aos estereótipos. Márcia sugere que, para isso, os educadores saiam do automático e pensem nessa temática para preparar as aulas.
“As meninas só levantam a mão para responder se tiverem certeza absoluta da resposta. Por isso, os professores podem estimulá-las a responder, mesmo que não se sintam 100% seguras”. Quando ela notar que pode se expor mesmo sem a certeza de acertar e quando o professor a elogiar por isso, a garota provavelmente começará a olhar para si de outra maneira. “Ela se permite ser inteligente”, comemora Marcia. Elogiar os meninos pelo esforço e as meninas pela inteligência é uma postura interessante para os professores e costuma funcionar. Para isso, o educador deve ter o problema em mente, estudar saídas e trazer a temática para as aulas. Sozinho é bem difícil, mas se a escola se comprometer e se o material didático reforçar, fica mais fácil.
Há que se olhar ainda para os meninos. O traço de despreocupação com empatia e colaboração que a pesquisa da Universidade de Illinois revela também deve ser objeto de estudos. “Os meninos podem sim der empáticos e queridos. Podem ser ótimos em trabalhos colaborativos e em carreiras coletivas. Precisamos reconhecer isso e cuidar”, desafia a professora.
A sugestão final dada pela pesquisadora da UFRGS é apresentar personagens femininas nas aulas de ciências. Elas existem e contribuíram muito para o avanço do conhecimento. “Ela aparecem bem na literatura, um pouco menos em História, e quase nada em Ciências. É possível mudar isso, insistindo que elas não estão naquele panteão pelo esforço apenas, mas porque são inteligentes e brilhantes”, sustenta, para concluir.