Salvador Lavorato Faro (*)
Entre os inúmeros crimes que Michel Temer e sua “equipe” vêm cometendo contra os interesses do país, aqueles que mais chamam a atenção são os que podem ser classificados como “geracionais”, isto é, aquelas iniciativas cujos efeitos se transferem no tempo, embora desde já desarticulem os projetos do presente e, justamente por isso, são perniciosos. O guarda-chuva conceitual dessa prática – uma espécie de rede ideológica de sustentação das ações políticas dos golpistas – é a desmontagem do Estado do Bem-Estar Social. De alguma forma e em algum momento plantou-se no imaginário de empresários, economistas e tecnocracia a ideia de que sem a redução do papel do Estado na vida nacional, o Brasil não vai conseguir retomar o impulso do crescimento econômico que caracterizou outras conjunturas de sua história.
O problema, portanto, não é só econômico, fiscal ou de gestão, mas diz respeito também a uma espécie de “revolução” cultural – já que a doutrina do Estado mínimo exige uma substituição dos conceitos e crenças em direitos sociais, interesses coletivos e bem-estar social pelos conceitos de individualismo, disposição de competição selvagemente seletiva no mercado de trabalho, sucesso a qualquer custo, valores esses que cobram ênfase não mais nos princípios clássicos do liberalismo humanista, mas um tipo de shumpeterismo que prega a destruição criadora tanto da lógica produtiva em que se fundamenta o capitalismo como também dos princípios que orientam o comportamento do próprio indivíduo que vive nesse sistema[1].
Para os neoliberais, uma nova filosofia de vida deve atravessar esse projeto de mudança cujos enunciados mais famosos foram formulados por Margareth Tatcher (1925-2013) quando ocupou o posto de primeira-ministra da Grã-Bretanha entre 1979 e 1990. A Dama de Ferro, como Tatcher ficou conhecida em razão da sua determinação em desmontar o welfare state britânico, certa vez saiu-se com a polêmica convicção segundo a qual: “não há nem nunca houve isso que vocês chamam de sociedade; o que há e sempre houve é o indivíduo”. Ou esta outra que Augusto Nunes publicou em sua coluna da revista Veja: “não existe essa coisa de dinheiro público; existe apenas o dinheiro dos pagadores de impostos”[2].
Esses são indícios de que os ingredientes da disposição reformista manifestada pela turma que se apossou do governo depois do impeachment de Dilma Rousseff não são improvisos aleatórios, mas uma tarefa múltipla que vai na direção de vários setores da sociedade e de forma sincronizada e coerente, pelo menos a julgar por seu conteúdo principal. É claro que a análise desse conjunto – formado, por enquanto, pelas reformas previdenciária, trabalhista, fiscal e educacional – será tanto mais precisa quanto maior for a distância no tempo e em perspectiva que os estudiosos mantiverem do presente, mas agora mesmo já é possível observar uma malha que integra seus elementos como uma rede cuja lógica principal reitera isso que foi destacado acima: a desmontagem do social como categoria da prática política do neoliberalismo.
Penso que é disso que falamos quando o objetivo é a crítica à reforma do ensino médio imposta por Temer. Ela parece guardar uma extraordinária simetria com o “modelo” posto em prática quase que no dia seguinte à efetivação do governo que emergiu do golpe. Falo aqui de Temer pela mera conveniência de registrar um símbolo nominal às medidas que foram sendo postas em prática. Na verdade, Temer é um mero agente subalterno da intelligentsia tecnocrática, pequeno-burguesa e empresarial que conspirou contra Dilma Rousseff, ainda que esteja cabendo a ele o papel executivo e tarefeiro do projeto. Pois bem, a relação que estabeleço entre a reforma educacional e o conjunto das medidas voltadas para a desarticulação do projeto desenvolvimentista brasileiro é mais ou menos a mesma que o historiador camaronês Achille Mbembe faz no artigo A era do humanismo está terminando (no original, The age of humanism is ending), publicado no Brasil no site do Instituto Humanitas Unisinos[3]. Para Mbembe,
o principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo. A crescente bifurcação entre a democracia e o capital e a nova ameaça para a civilização (IHU, edição de 24/01/2017).
A reforma educacional que busca transformar a escola num espaço meramente instrumental e utilitarista de informações, que adestra mais do que educa, que mais individualiza experiências empíricas do que estimula a reflexão, que orienta o aluno predominantemente na direção da operacionalidade técnica das suas práticas profissionais, vai na linha desse choque fundamental que Achille Mbembe aponta. É a escola da legitimação típica da crise contemporânea em torno dos valores clássicos do Humanismo e em termos de sustentação ético-política essa pedagogia constitui-se no sedimento essencial dessa nova sociabilidade.
Onde é que é possível constatar isso? Em primeiro lugar, em razão da sua inconsistência pedagógica, não propriamente por conta de que ela abre um vazio conceitual sobre o perfil da escola que o país necessita como fundamento do seu desenvolvimento humano, mas em especial por instituir esse perfil como um atributo do mercado, hibridizando duas instâncias que, do ponto de vista social, têm objetivos distantes e que são eventualmente contraditórios. A reforma simplesmente ignora, em perspectiva, quais as demandas de um desenvolvimento integral do estudante, fazendo da ótica do mercado um componente restritor na formação do jovem.
Em segundo lugar, porque torna prematura – e irresponsável – a composição da grade curricular do estudante, estimulando-o à escolha aleatória e inconsequente de ofertas para as quais os critérios de sua decisão são inconsistentes frente à dimensão das áreas de conhecimento.
Em terceiro, ao estimular essa escolha precoce suprime campos de equilíbrio da formação intelectual, segregando uns em favor de outros e, de maneira geral, mediocrizando o objetivo fundamental do processo educacional. Se é verdade que, como diz Cláudia Constin Rodrigues referindo-se a uma das características da escola em nosso país, “a educação no Brasil não ensina a pensar” [4], a partir da reforma de Temer esse abismo entre as funções prioritárias do ensino e seus resultados será ainda maior. Para Rodrigues, o importante é que os professores “ensinem com diversas perspectivas, estimulando o individuo a pensar e a ser tolerante”, não apenas do ponto de vista de sua ética social, cultural e política, mas como alargamento de sua compreensão sobre as próprias áreas do saber.
O exemplo da peregrinação da Filosofia na reforma do ensino médio parece-nos comprovar isso de forma clara: ao colocar esse campo do conhecimento no espaço dos “estudos e das práticas” e não no espaço de uma disciplina específica, as mudanças introduzidas no ensino médio deixam de ser “ferramentas no crescimento cognitivo, reflexivo, argumentativo e moral dos alunos”. Para Marcos Aguiar Villas Boas, “Filosofia e Sociologia enquanto disciplinas singulares (…) abrem espaço para uma forma de ensino que prepara melhor os indivíduos para atuarem como seres sociais intelectualmente profundos, socialmente adaptáveis e moralmente cooperativos”[5].
Villas Boas faz referência a estudos realizados na Inglaterra e nos Estados Unidos com grupos controlados de crianças a partir do ensino da Filosofia como prática instrumental para a análise e a solução de problemas concretos apresentados aos estudantes. Os resultados nos dois casos revelaram que as crianças que foram objeto da experiência apresentaram “ganhos significativos” de reflexão comparativamente com outros estudantes que não haviam recebido o mesmo aprendizado. Os exemplos, tomados aqui como referências que contradizem essa espécie de utilitarismo tosco que orientou os fundamentos da reforma do ensino médio no Brasil, evidenciam o objetivo da reforma.
Por último, a reforma de Temer é um embuste constitucional, fato que a torna divorciada de seu alcance com o sistema jurídico que normatiza os direitos dos brasileiros, um sistema complexo que se organiza em torno de uma Carta Magna que é o resultado talvez o mais expressivo da restauração da Democracia nos anos 80. Veio do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, a observação de que, “por seu rito abreviado, [uma Medida Provisória] não é instrumento adequado para reformas estruturais em polícias públicas, menos ainda em esfera crucial para o desenvolvimento do país, como é a educação”. Janot, no entanto, foi mais longe. Segundo ele, também o conteúdo da proposta do governo deve ser questionado, pois a não-obrigatoriedade do ensino de algumas disciplinas “fere o exercício da liberdade de aprender, ‘o pensamento, a arte e o saber’, além de outras irregularidades como as que atingem os professores, o fim do ensino noturno e “os itinerários formativos específicos”, em nossa opinião eixos de uma formação desprovia de consistência pedagógica[6].
Na hipótese de que a reforma consiga atravessar as fraturas políticas que tem favorecido a implementação de seu sentido e natureza, o Brasil pode estar diante de um elemento fortemente complicador de seu desenvolvimento. A afirmação é quase um truísmo, mas também pode ser vista como uma possibilidade de identificação das linhas de resistência que o projeto de uma educação que não se realiza como tal pode sofrer.
Estranhamente, mas de forma previsível, vem dos professores que se responsabilizam pela realização das provas do Enem a sinalização de que na base do sistema educacional brasileiro, com todas as suas idiossincrasias, permanece de pé a utopia de que os estudantes mais aptos não são os de melhor desempenho funcional que se traduz no aprendizado mimético da informação, mas o de maior competência analítica e conceitual. No exame de 2016, por exemplo, no conjunto das questões de Ciências Humanas, direta ou indiretamente pelo menos nove delas abarcavam temas filosóficos, invariavelmente relacionados com correntes do pensamento contemporâneo cuja compreensão é imprescindível para o estudante – qualquer que seja o roteiro formativo pelo qual ele irá se decidir quando puder discernir sobre isso. Parece-nos que o dado essencial que explica o perfil da insistência em cobrar o conhecimento filosófico em vias de ser ignorado pela reforma está na lógica que o explica e que veio à tona na prova de 2012: o que é o esclarecimento em Kant? É a saída do Homem de sua menoridade, estado que lhe confere a ausência da reflexão intelectual… A arbitrária reforma do ensino médio e seu desprezo pelo conhecimento da complexidade dos vários campos do saber, nos leva por esse caminho.
- Leitura ampliada:
- Defender a Filosofia, contra a cegueira neoliberal (Outras Palavras)
(*) Professor
[1] A referência aqui é feita ao economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) para o qual a dinâmica do capitalismo repousava na sua capacidade de inovar suas práticas a partir da destruição sistemática de seus métodos de produção e de exploração da mão-de-obra, racionalidade da qual emerge o axioma da “destruição criadora”, sem a qual o sistema econômico ficaria estagnado. Uma boa biografia de Schumpeter e de suas reflexões encontras-se em https://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Schumpeter
[2] Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/a-mentira-de-levy-e-desmontada-pela-licao-de-margaret-thatcher-8216-nao-existe-essa-coisa-de-dinheiro-publico-existe-apenas-o-dinheiro-dos-pagadores-de-impostos-8217/
[3] Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/564255-achille-mbembe-a-era-do-humanismo-esta-terminando
[4] Educação no Brasil não ensina a pensar. Entrevista concedida à revista Carta Capital, edição de 30/01/2017, disponível em http://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/claudia-costin-a-educacao-no-brasil-nao-ensina-a-pensar
[5] Ensino filosófico adequado eleva rendimento dos alunos, in Carta Capital, edição de 27/01/2017, disponível em http://www.cartacapital.com.br/blogs/vanguardas-do-conhecimento/ensino-filosofico-adequado-eleva-o-rendimento-dos-alunos
[6] Medida Provisória do Ensino Médio é inconstitucional, diz procuradoria, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/12/1842954-medida-provisoria-do-ensino-medio-e-inconstitucional-diz-procuradoria.shtml