Por Gabriela Bueno*
Ana Maria Araújo Freire, ou Nita como é mais conhecida, é doutora em educação pela PUC-SP e foi companheira do professor Paulo Freire tanto no amor, quanto na produção acadêmica e literária. Foi a ela que o patrono da educação brasileira designou, em testamento, os direitos de suas obras e a missão de dar continuidade a elas.
No dia 12 de julho, Nita recebeu a Revista Giz em seu apartamento para conversar sobre a violação no perfil de Paulo Freire, na Wikipedia, e também sobre a carta que escreveu ao presidente interino, Michel Temer, pedindo providências no esclarecimento do caso.
Durante a entrevista, Nita fala da sua ligação com Paulo, do exemplo de tolerância que ele deu por toda sua vida, de respeito ao próximo, da sua aversão ao projeto Escola sem partido e dos tempos de cólera que vivemos.
GIZ: Como a senhora soube da violação do perfil do Paulo Freire?
Nita Freire: Vi na página do UOL que a biografia de Paulo tinha sido adulterada. Li e fiquei espantada. No Wikipedia todo mundo pode entrar, mas tem que ter ética. Alterar apenas para acrescentar e não para deformar o perfil do outro. Ainda mais um órgão do Estado, porque que ele é feito para proteger todos os seus cidadãos e não para denegrir a imagem de quem quer que seja.
Eu digo, o pior dos criminosos deve ser protegido pelo Estado. Em uma prisão ele não pode ser morto, no meio da rua a polícia mata, mas isso é errado, é contravenção. O Estado deve proteger os seus cidadãos e punir aqueles com comportamento antiético e antissocial.
Deformar o perfil de um homem que foi exemplar, que é o Patrono da Educação Brasileira, dando a ele dimensões inexatas, denegrindo a imagem dele, não é possível alguém dentro do Estado fazer isso.
Quando eu li a notícia, fui dormir perturbada e decidi que iria pensar no que faria, pois a noite sempre é boa para pensarmos no que fazer. No dia seguinte logo cedo eu telefonei para o meu filho (há alguns anos eu discuto todas as minhas questões com o meu filho, Ricardo. Nós mandamos muito nos filhos quando eles são pequenos, agora eles são quem estão quase mandando em nós) e disse que eu estava com muita vontade de escrever para o presidente interino da República pedindo para ele tomar providências. Na hora meu filho me incentivou e deu um impulso forte.
Na sexta-feira escrevi, mas achei melhor esperar o outro dia. Para coisas muito importantes é melhor esperar para revisar o que foi escrito, ver se não foi esquecido nada ou se nenhum fato foi exagerado. É necessário ser muito justa, ter uma linguagem adequada e usar palavras precisas.
No sábado eu revi tudo e mandei a carta para vários órgãos de acesso ao presidente. Enviei para a Casa Civil, para o e-mail pessoal dele e para a presidência da República. Em seguida, recebi uma resposta pedindo para eu confirmar a minha identidade. Feito isso, me informaram que a carta seria enviada para o presidente.
No domingo pela manhã eu distribui para outras entidades ligadas à educação. E foi incrível como essa “imprensa alternativa” que é a internet difundiu a minha carta em minutos. Muitos blogs me agradeceram e publicaram a notícia. E vou além, blogs que eu nem ao menos sabia da existência.
GIZ: Nós achamos linda a sua iniciativa de escrever a carta…
Eu me sinto absolutamente ligada a Paulo, então tudo que o atinge eu acho uma profanação e me afeta também. Não apenas como viúva, estudiosa dele, mas também como cidadã consciente me sinto na obrigação de tomar iniciativa e dizer “O que é isso? O que estão fazendo com o meu marido?”. Isso não pode ser feito… Um homem que teve um respeito com os outros como Paulo teve, a tolerância que ele teve com todo mundo, com pessoas do mundo inteiro. Como as pessoas podem ser tão desrespeitosas com ele dentro de seu próprio país? Pesquisas nos Estados Unidos indicam que Paulo Freire é o terceiro intelectual mais estudado na área de ciências humanas hoje nas universidades norte americanas.
No centro do capitalismo, que tem horror à Marx, e que quase reverenciam Paulo… Ele tem também prestígio enorme na Argentina, muito maior do que no Brasil. Eu vejo isso mesmo na Europa, na Espanha, na Inglaterra, na Alemanha. Em tantos países do mundo, no Canadá, no México, na América Latina inteira, e eu destaco novamente a Argentina.
Paulo é respeitado, é considerado um grande filósofo, um grande educador, o maior no século XX e está sendo considerado agora do século XXI. E eu mesma duvido que alguém consiga superá-lo nesse século. Ainda vai demorar muitos anos para alguém escrever mais coisas sobre educação do que Paulo. E aí Paulo é desvalorizado nesse país? No país que ele lutou tanto, que ele amou tanto, não é possível!
GIZ: Para a senhora, qual a razão dessa violação ter ocorrido?
Paulo é pouco valorizado, pois nós somos um povo muito inflamado, muito emotivo. Darcy Ribeiro dizia “Paulinho meu filho, não fique zangado. Eles (os intelectuais) nos combatem por inveja. Isso é ciúme”. Eu acho que da maioria dos que se destacam mais na vida intelectual, muitos têm um sentimento bastante agressivo contra Paulo e outros mais disfarçados, menores.
Não se perdoou que Paulo viveu 16 anos no exílio e voltou. Note, Paulo foi para o exílio, pois ele foi forçado a ir, senão seria morto. Como dizia, ele não foi passear em uma praia na Jamaica. Ele foi e teve uma vida duríssima lá e sem passaporte. Paulo tinha uma folha de papel que era um salvo conduto. Primeiro da Bolívia, depois do Chile, em seguida dos Estados Unidos e por último da Suíça. Paulo teve uma vida duríssima e esteve sempre em um contexto de empréstimo, preocupado com o seu país.
Eu acho que há esse sentimento de que ‘Paulo ficou em um bem-bom lá fora e chega aqui e quer ter prestígio’. Primeiro que ele não ficou no bem-bom. Claro, houve momentos bons na vida dele, ele foi muito prestigiado no seu trabalho nos mais diversos espaços fora do Brasil. Mas a sua vida afetiva, a sua vida pessoal, o mais íntimo dele sofria muito, pois ele era louco por essa terra.
Veja, quando Darcy Ribeiro convidou Paulo para irem fazer a Universidade de Brasília, nos anos 1960, ele disse ao amigo “Vá à adiante, que esse troço tá muito bonito. Sempre que possível eu virei aqui para te ajudar”. Darcy ofereceu a Paulo qualquer matéria que ele quisesse lecionar, a resposta foi “Rapaz, eu não posso viver fora do Recife. Longe daqui eu não sei nem pensar”. Logo, para Paulo, se afastar do Recife, se afastar do Brasil, teve um peso muito grande. Mas ainda assim, o sofrimento não o impediu de escrever grandes obras, de fazer trabalhos grandes e importantes. Mesmo assim, Paulo sofreu muito.
Aí você me pergunta se existe essa coisa que o Brasil, se os intelectuais brasileiros não digeriram muito Paulo… Ele tem um prestígio enorme, fantástico entre professores e professoras. Aproveito até para agradecer e dizer que elas e eles têm razão. Paulo foi um pensador, ele foi um gênio em seu pensamento. O livro ‘Pedagogia do Oprimido’ fará 50 anos e ainda é um livro de referência no mundo inteiro, edições e edições saindo. “Pedagogia da autonomia”, que ele lançou poucos dias antes de morrer, é um livro que imagino que já foram 2 milhões de unidades vendidas só no Brasil. Nos Estados Unidos ele também é muito lido.
Daí você me pergunta, por que interferiram na Wikipedia? Eu acho muito claro, tenho para mim que foram as forças de direita, que é O Instituto Liberal, é o grupo do Escola Sem Partido, é o grupo que está trabalhando para acabar com esse modelo de política nacional em favor de todos e todas. O governo Lula e depois do governo Dilma não governaram só para o povão, ele governaram também para o povão. Até o governo Fernando Henrique Cardoso, não havia orçamento da União para os 180 milhões de brasileiros, se previam apenas para 120 milhões. E os outros 60, onde estavam? Estavam no bolsão da miséria.
Foram esses dois governantes, esses dois presidentes que apesar de seus enganos e erros, de terem continuado muita política anterior que não deveriam ter continuado, foram eles quem botaram essa população “esquecida” dentro do orçamento da União. Então vêm esses governos que olham para esses 60 milhões sem auxílio, sem tolerância e sem compaixão, porque sabem que precisam tirá-los da miséria e da classe mais baixa para terem um mínimo poder aquisitivo. A ponto da classe C e D poderem viajar de avião. Isso foi uma coisa que parece insignificante, mas a elite brasileira enlouqueceu pensando “Eu vou viajar com aquela gentalha comigo? Eu não posso”.
Nas muitas vezes que eu viajo dentro do Brasil, eu prefiro muito mais estar ao lado desses que eles classificam de ‘gentalha’, do que das granfinas, patricinhas e mauricinhos que vão no avião incomodando e se achando donos do mundo. Que batem e chutam a cadeira.
Quando você vai junto de alguém de classe popular eles vão ali numa humildade incrível! Eu viajei ao lado de uma senhora bastante modesta e sua filhinha, de colo. Elas não me incomodaram em absolutamente nada. Quando o avião começou a descer e a menina a chorar, a mãe acalentava a criança e dizia “vai passar filhinha, vai passar”, ela sussurrava no ouvido da filha. Diferente da classe média que gosta de gritar e aparecer.
Eu acho que quem interferiu na Wikipedia são aqueles que querem mostrar que a direita está aí e difama quem quiserem. Só que eles se enganaram, pois a sociedade reagiu. De uma maneira ou de outra, mas reagiram à minha carta. Tanto que na segunda-feira de manhã, dia seguinte à confirmação do recebimento da carta pela presidência, eu cheguei em casa e a pessoa que trabalha comigo me disse que alguém tinha me ligado, mas sem deixar o nome. Fui abrir o e-mail e vi que tinha uma carta em nome de Luciana Temer. Uma carta muito gentil, muito generosa, muito amorosa dizendo que: “Ontem tomei conhecimento de sua carta endereçada a meu pai e imediatamente eu telefonei para ele. Ele não sabia do acontecido na Wikipedia”.
Claro que não foi o presidente Temer quem mandou fazer a alteração, mas sim o grupo que o sustenta no poder. Esse grupo de direita quer mudar o Brasil para pior. Na carta de resposta escrita pela Luciana Temer, ela afirma que o presidente não sabia e reafirma a grande admiração e respeito pelo grande Paulo Freire, e que por isso mesmo, iria tomar as providências cabíveis.
De tudo isso o mais importante é que o meu recado chegou, ele está chegando a muita gente. Até mesmo um blog de senhoras de elite no Rio de Janeiro publicou isso. Socialites famosas subscrevem a carta, nomes famosos. Eu fiquei boquiaberta. Mulheres que eu jamais imaginei que conheceriam Paulo falaram dele com conhecimento.
Logo, essa carta atingiu uma parcela significativa da população. Atingiu professores, a classe média, uma pequena parte da elite. O que é importante é que essa providência se ela não vem por ato do presidente em descobrir quem foi essa pessoa dentro do Serpro que teve essa ousadia mentirosa, essa ousadia ultrajante da dignidade de um homem como Paulo que se pautou a vida inteira pela Ética. Parte significativa da população brasileira está condenando o profanador
Eu conheci Paulo com 5 anos de idade, ele estudou no colégio do meu pai. Eu sei que ele se pautou pela dignidade e o respeito, pela verdade. Todo mundo sabe disso. Que não me admirou que homens como o presidente interino Temer tenha admiração por Paulo, pois Paulo é suprapartidário. Independentemente do partido você pode dizer que não concorda com a ideologia do outro, eu não concordo com coisas que você diz sobre educação, eu não concordo com vc quando diz que educação é política, mas eu o respeito. Paulo é respeitado por membros de todos os partidos. Isso eu acho uma cosia bastante interessante, bastante importante, mas infelizmente não tem as mesmas respostas dos políticos.
Eu quero aproveitar essa oportunidade para dizer e reafirmar que Paulo não é o criador apenas de um método de alfabetização, ele criou uma teoria, uma epistemologia do conhecimento a partir de sua experiência pedagógica. Mesmo ele sendo formado em direito, tinha uma experiência muito mais pedagógica e por isso não seguiu a advocacia. A partir dessa experiência ele compôs o que ele dizia, muito humildemente, ser certa teoria, certa compreensão da educação. Dentro dessa compreensão de que todos têm direito à educação, que educação não é neutra, é um ato político de libertação, ele compôs um método de alfabetização.
Por que, veja o seguinte, se nós partimos dos grunhidos e dos sons que representavam milênios de anos atrás como “tem perigo”, “tem comida aqui” ou qualquer sinal que um grupo queria dar para o outro, a comunicação era apenas através de gestos e grunhidos. Isso foi evoluindo até uma linguagem falada. Por isso que temos tantas línguas pelo mundo todo. Então essas linguagens, foram criadas pelos sujeitos humanos e nos fizemos humanos exatamente por causa disso, pois antes éramos meros animais. A gente vai criando a cultura, a gente se torna sujeitos de nós mesmos e então somos capazes de comunicação e vão surgindo outras linguagens, a pictórica, a teatral, a musical e assim se cria a cultura. Nós somos seres da cultura, nós criamos a cultura. É o que nos diferencia dos animais, dos quais nós partimos. E aí com essa comunicação só a linguagem oral se tornou pouco para nós, e daí nós inventamos a linguagem escrita. É um patrimônio da humanidade. Todo ser humano tem ontologicamente, como coisa de essência de cada homem, de cada mulher, saber escrever.
Então Paulo diz, “quando uma pessoa não sabe ler, lhe foi roubada parte de sua vocação ontológica”. É muito bonito isso, não é? Por exemplo, não saber pintar. Isso não é necessário para a existência. Mas é necessário para a minha existência saber ler e escrever. Isso foi criado pela humanidade. Então eu acho muito importante que os educadores saibam.
Eu sempre tenho certa repulsa quando alguém diz que Paulo criou um método de alfabetização. Eu digo que Paulo criou uma compreensão, e que dentro dessa compreensão de que nós somos sujeitos de nós mesmos e que nós temos a capacidade de ler e escrever.
Falar é muito fácil, você aprende ao se socializar, ao conviver com os outros e outras. Toda criança começa a falar sem ter ido à escola. Aprende a falar em casa, na pré-escola ou com um amiguinho. Mas para aprender a escrever é preciso que se ensine, se induza a criança a aprender a ler e a escrever. É preciso ter um ensinamento específico. Daí a necessidade e importância da escola.
Há uma poesia que divulgam por aí que me irrita bastante. Diz assim: “a escola é um lugar de fazer amigos”. Que coisa mais paspalha! É um horror! E ainda dizem que essa poesia é de Paulo, não é de Paulo, professores! Neguem sempre quando ouvirem que essa poesia seja de Paulo! A escola não é um lugar de fazer amigos, a escola é o lugar do conhecimento. Como o conhecimento deve ser uma troca amorosa, em um convívio amoroso, a gente se torna amigos daqueles que procuram saber. Lugar de fazer amigos é na rua, no parquinho, na família, são outros espaços que propiciam a amizade.
Pode até mesmo ser pela internet. Que eu não gosto muito. Eu não pertenço à nenhuma rede, mas há quem valorize isso.
GIZ: Como a senhora vê o projeto da Escola sem Partido? Como ele influencia o professor?
É terrível! A Escola sem partido é um sistema autoritário, punitivo e que se o professor falar qualquer coisa de classe social, de diferença de conhecimento, da possibilidade da mudança de gênero, se falar que educação em escolas diferentes, são ditos conhecimentos diferentes. Tudo que mostra diferença, que mostra senso de realidade, que mostra compromisso será punido. O pessoal será punido.
Dizem que já tem alguns sistemas aí estaduais e municipais que estão punindo professores.
GIZ: Houve um caso de uma professora da rede pública de uma cidade em Goiás por que estava dando uma aula sobre Marx, que faz parte do conteúdo.
Eu soube, era uma professora de segundo grau. Marx é um filósofo, ele não pode estar proibido de ser estudado. Até porque você só pode negar um pensamento se você o conhecer.
Você não pode negar, pois o professor mandou negar ou porque a secretaria da educação disse que ‘tem que negar fulano de tal, tem que negar Marx, tem que negar Paulo Freire’. O que é isso gente? E a capacidade, a autonomia de cada um de nós? Nós, os alunos e professores somo quem devemos definir com responsabilidade e ética.
Muita gente dizia a Paulo que no lar a mãe dizia uma coisa e o pai dizia outra. Quando isso acontecia, Paulo falava que era bom ter pontos de vista diferentes porque a criança vai aprender que existem possibilidades diferentes e que ele pode aderir a um ou outro ou mesmo a nenhum. Nem ao pai, nem à mãe, mas ter outras ideias que ele vá aprendendo e captando de sua própria experiência existencial. Então essa coisa de educação sem partido é autoritário, é fascista, é a antítese do que Paulo pregou. Aliás, pregou não… O que ele acreditou e difundiu.
É um absurdo! Como um professor não pode falar?
Eu me lembro de um caso na escola quando meus filhos eram pequenos (hoje os 4 já passam dos 50 anos de idade). Eles estavam em uma escola privada considerada muito boa. Maciçamente os alunos eram filhos de professores universitários. Nessa época eu ainda não era professora universitária. Eu e meu marido na época, o Raul, escolhemos esse colégio por ser uma escola de qualidade. Mas lá ouve um caso espantoso.
Em uma classe de meninos de 9 anos a professora levou o caso das mortes por fome em Biafra, na África. Ela levou uma revista que tinha publicado fotos de crianças esqueléticas, semi vivas devido à fome. Daí um menino de alta burguesia disse assim: “se ele está com fome, por que ele não abre a geladeira para tirar comida?”. Quer dizer, numa alienação total.
A professora respondeu que a criança não sabia nem mesmo o que seria uma geladeira e que não havia qualquer tipo de alimento ao seu redor, por isso ele estava morrendo de fome.
No dia seguinte a mãe do aluno chegou indignada no colégio exigindo que a professora desmentisse e afirmasse que aquilo era fantasia, que não existia aquilo no mundo. A diretora disse que sentia muito, mas que não poderia apoiar a ideia e que a mãe poderia escolher entre manter o filho lá ou não. Uma vez que não poderia atender aos caprichos familiares que negam a realidade.
Para mim a Escola sem partido é isso. Quer que neguem e alienem as pessoas da realidade.
GIZ: E é ideológica também…
Sim, por isso, ela é ideológica. Ela é preponderantemente ideológica para difundir a ideias de direita. De que não existem classes sociais, que todos somos iguais. Então não se tem que mostrar essas diferenças, afinal elas não existem. Negam o óbvio que está aí e todo mundo vê.
Por exemplo, minha neta mais nova tem hoje nove anos. Aqui no bairro de Higienópolis há várias pessoas que dormem na rua. Há uns 3 anos ela viu um cara embrulhado naquele cobertor, deitado no chão, aquele mal cheiro exalando e me perguntou se aquilo era uma pessoa. Eu disse que sim e expliquei que era um homem. Então ela me perguntou o motivo dele estar deitado na rua. E então eu falei que ele não tinha casa para morar ou possibilidades como nós, que ele não tinha como sobreviver na vida além de se deitar na rua. Nisso era visível o rosto e o corpo dela tenso, ela estava horrorizada.
Já na Escola sem partido vão dizer: “não, minha filha, isso é um boneco que ta aí, vamos embora”, e assim não se contraria a realidade. Muitas pessoas diriam que ele é um homem que não quer trabalhar, que não se esforça, que é um vagabundo, inútil, que está na vida só para pesar sobre nós ao receber o Vale Família.
GIZ: O Brasil está vivendo um clima de intolerância e criminalização da política. Você organizou de um livro de artigos do professor Paulo Freire que chama ‘Pedagogia da tolerância’
Desde que Paulo morreu, como ele me nomeou sucessora da obra dele em testamento, eu tenho publicado vários livros. Há o ‘Pedagogia da indignação’, que é um livro belíssimo, foi o primeiro que fiz. Depois vieram o ‘Pedagogia dos sonhos possíveis’, também com trabalhos de Paulo e conferências, cartas, documentos todos que ele escreveu. E também tem o ‘Pedagogia da tolerância’, que muita gente considera um dos livros mais bonitos dele, pois há realmente ensaios primorosos de Paulo. Aliás, é bobagem dizer primorosos nesse caso, pois todos os trabalhos dele são.
GIZ: A escola é um lugar de contribuição importante e ela pode ajudar a entender esse clima que estamos vivendo, talvez até mesmo resolver esse preconceito que tomou conta do Brasil.
Não só parece, ele tomou conta do Brasil. Hoje no Brasil existe um ódio louco da elite contra o povão. E a classe média… Sempre coitada. Tenho pena da classe média, sempre pensando que será igual a elite, adere as mesmas ideologias e vão pra rua gritar “fora Dilma”, “abaixo a corrupção”, dando um testemunho de sua ignorância histórica. Se houve e continua havendo corrupção no Brasil, isso é uma coisa endêmica. Isso vem desde o dia que Pedro Álvares Cabral colocou os pés aqui, na Bahia. Então nós devemos lutar sim contra a corrupção, que é um dos grandes males dessa sociedade que não se desenvolve, que tem tanta pobreza. Que muito do dinheiro público é desviado para o bolso das pessoas, para sua eleição.
Há um clima de ódio muito grande. Isso era uma coisa mais ou menos adormecida. O ódio vinha camuflado em políticas de opressão. A dificuldade de acesso à escola… Veja, quem abriu a grande matrícula para um número considerável de brasileiros foi Getúlio Vargas, em 1930. Depois do período militar aumentou muito o número de matrículas nas escolas. Mas por quê? Eles estavam interessados? Claro que não! Um dos motivos do golpe de 1964 era Paulo que estava fazendo um trabalho de alfabetização massivo. Eles não estavam interessados em alfabetização, em educação, mas para obter empréstimos do Banco Mundial, o Brasil tinha que apresentar estatísticas com maior número de alunos matriculados e maior número de formandos no ensino superior, sobretudo em pedagogia. Por isso se proliferou o curso de pedagogia de dois anos e meio, três anos.
Houve um grande aumento no número de matrículas na educação básica. Hoje dizem que praticamente todas as crianças estão dentro da escola pelo menos a partir dos 6 anos. Mas a questão que você tinha colocado era sobre a atualidade do tema da tolerância nos dias atuais.
A classe média e a classe alta aceitaram essa proliferação de todo mundo na escola, pois se garantiu que a qualidade da escola não seria muito boa. Em um momento em que o regime militar tira Língua Portuguesa e coloca Comunicação e Expressão, tudo lá dentro, em um saco de gatos. A formação do educador, sendo uma formação nos cursos de fins de semana, em que qualquer um encomendava seu trabalho em firmas especializadas em fazer o TCC, estava garantida.
Mas quando vieram dois governos do PT, isso mudou. Começou o povo a aparecer, então esse ódio que vivia escondido na dominação ficou abalado, com o povão botando as asas de fora, querendo ser gente. Então esse ódio apareceu e ficou evidente, latente nas políticas públicas do Brasil.
GIZ: Como na violação do Wikipedia em que o professor Paulo Freire foi chamado de marxista.
Exatamente, como na violação do Wikipedia. Qualquer um pode ser marxista, por que não? Gostou da teoria do homem? Pode seguir, ué. Marx contribui muito para a história do conhecimento.
Se Paulo era marxista? Não, ele até negava Marx em muita coisa. O que Paulo tem do marxismo foi a que ele encontrou em sua razão de ser da sua preocupação anterior com as classes populares na miséria e no analfabetismo. Então encontrou explicações; mas Paulo negou o marxismo porque Marx dizia que a sociedade caminhava para a ditadura do proletariado, assim saindo do capitalismo, e automaticamente superando para o socialismo. E foi isso, a Revolução Soviética pensava nisso. Você não passa para o socialismo cruzando os braços. Esse determinismo histórico que Paulo nega em Marx, é vital para mostrar que ele não é marxista, nunca foi. Dizem que ele imita, copia a Marx e Engels, mas Paulo criou a própria teoria por sua inteligência única e fora do normal entre nós, além de sua experiência e compaixão no nordeste brasileiro pobre. Paulo aprendia com o povão.
Ontem ouvimos uma pessoa do povão na TV dizendo ‘mandar para mim’, algo pouco compreensivo na linguagem erudita. Mas Paulo encontraria beleza nisso. O povo perguntava o motivo de dizer ‘nós cheguemos’. Ainda que o certo seja ‘nós chegamos’, o ‘nós cheguemos’ não é feio.
GIZ: Houve há uns quatro anos um acusação contra livro de Língua Portuguesa que discutia essa questão da linguagem que se fala, da linguagem popular versus erudita.
Isso deveria ser a Escola sem partido, os germes disso aí. Veja, a gente diz ‘perguntar’, a língua espanhola diz ‘preguntar’. Então eu dizia ontem ao meu professor de inglês, que rigorosamente que ‘preguntar’ está errado, pois a origem da palavra latina é ‘perguntar’. Logo, houve um erro de interpretação. E ele me diz ‘preguntar’ é a forma erudita dele.
Há várias palavras que nós adotamos a forma erudita, mais certa. Vá dizer isso para um espanhol. Ela acredita que a língua dele também é uma língua correta, erudita, correta.
GIZ: O professor Paulo Freire é o grande pensador em educação do século XX e provavelmente do século XXI. Diante da situação que estamos vivendo, e em particular os professores, com a Escola sem partido, qual a maior contribuição dele em relação a isso?
É dizer que a educação é um ato político. Os professores, mas, sobretudo os sindicatos que representam a comunidade de professores e professoras, devem lutar por isso, contra esses sistemas e procurar o diálogo… Que em geral não vão existir. Há de se refutar com repostas científicas e a obra de Paulo tem tudo o que é preciso para se dizer que não é possível aceitar isso. Claro que irão questionar se ele estava certo, porque quem tem um ponto de vista ideológico está, como Paulo dizia, ‘miopizado’. Como quem é míope e está sem óculos, enxerga tudo embaçado. Então a ideologia é isso, deixa sem ver a coisa nítida, sem manchas. É isso que o pessoal que adere e provoca a educação sem partido quer, ver o mundo todo manchado, sem claridade, sem discernimento. Não vê o mundo como ele é.
Ele imagina que o mundo deve ser tal e qual, que favoreça apenas um grupo de pessoas. Vocês imaginam que são apenas 200 famílias em todo o Brasil que são verdadeiramente ricas, em um país de 200 milhões de habitantes. E é assim nos Estados Unidos e no mundo inteiro. Contudo as diferenças no Brasil são muito gritantes. Entre o mais rico e o mais pobre há uma distância muito grande.
*Nota de rodapé: No sábado, Nita Freire teve a alegria de dizer que o presidente interino, Michel Temer, está tomando providências para resolver a violação no perfil de Paulo Freire, na Wikipedia.
Nita Freire, pernambucana, 82 anos, doutora em Educação pela PUC-SP e viúva do grande professor Paulo Freire.