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Cultura

Niemeyer: um outro parâmetro de civilização

By 02/07/2014No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

O Itaú Cultural abriga, até 27 de julho, a exposição Oscar Niemeyer: clássicos e inéditos. Os três andares do prédio da Avenida Paulista dedicados à mostra oferecem mais do que uma homenagem ao grande arquiteto brasileiro, morto em 2012. “Estamos falando de uma experiência em que o visitante vai encontrar referências às criações mais conhecidas dele, mas também muitos desenhos e projetos que nunca haviam sido expostos”, explica o arquiteto Pedro Mendes da Rocha, responsável pelo projeto de montagem da exposição e também um aluno e admirador à distância de Niemeyer, com alguns poucos contatos, mas sempre acompanhando de perto as ideias do mestre.

Quem cruzar o pórtico principal de cada andar vai encontrar três divisões que contemplam os materiais expostos: Os Clássicos; Os Inéditos e a sala especial São Paulo. Em Clássicos, como o nome sugere, podem ser vistas as obras mais conhecidas, os projetos mais notáveis, que saíram ou não do papel “É o espaço perfeito para aqueles que não conhecem a obra de Niemeyer terem ideia do que ele produziu”, justifica Mendes da Rocha. Na série Inéditos, encontram-se os estudos e desenhos que o arquiteto fez e que nunca haviam sido publicados ou expostos. São materiais que pertencem à Fundação Oscar Niemeyer. Por fim, na sala São Paulo, uma ala especial em que se relembra e se conhece a produção do arquiteto para as terras paulistas e paulistanas, como o Parque do Ibirapuera, o Memorial da América Latina, o Edifício Copan e até projetos que não foram executados, como o prédio da Companhia Energética Paulista, a CESP, uma universidade no interior do estado e a sede da Fundação Zumbi dos Palmares.

Embora toda a parte material seja, evidentemente, muito importante na mostra e na obra completa de Niemeyer, Mendes da Rocha deixa escapar que o aspecto mais significativo da exposição montada no Itaú Cultural é que através das pranchas, dos desenhos, das maquetes, dos filmes, o visitante pode começar a compreender que, por trás de tudo aquilo ali exposto, existe um pensamento coerente, que coloca a arquitetura em relação com seu tempo e com as pessoas que dela vão usufruir. E, junto com isso, ou ainda no início de tudo isso, existe um ser humano, com as dores e as delícias de ser o que é, profundamente tocado pela preocupação com os outros seres humanos. Mendes da Rocha vai explicando a ideia enquanto passeia virtualmente com a reportagem de Giz: “Tem uma série de 20 pranchas que ele desenhou nos anos 1970 – é importante frisar que era um tempo que não havia internet – com intuito de serem reproduzidas e distribuídas nas escolas, falando um pouco de como ele pensa a arquitetura, de como ele enfrentou os problemas que a arquitetura propôs a ele”. E segue: “problemas não no sentido de encrenca, mas de questão, desafio. Tinha uma frase muito bonita do urbanista Lúcio Costa que era ‘os problemas são nossos amigos’, porque as dificuldades propostas às vezes dão na virtude do projeto”, ensina, dando as pistas de como pensava e agia o arquiteto carioca.

Os desenhos, às vezes muito didáticos, ajudam o visitante a ligar os pontos sobre o processo de criação, a maneira como ele compunha os projetos e, principalmente, como Niemeyer resolvia as demandas arquitetônicas. “E tudo isso parece tão simples, tão fácil, que mesmo quem não é arquiteto, ou estudante de arquitetura, se encanta. É, portanto, uma maneira de humanizar esse personagem histórico”. Os filmes exibidos na mostra também dão uma forcinha nesse sentido. Niemeyer aparece na tela como um carioca desbocado, usando uma linguagem bem simples, bem carioca, bem humorado e crítico. E essa seria uma das chaves para entender a arquitetura como integrante da cultura e não como uma escola encastelada, hermética e sobrenatural. Na verdade, Niemeyer pregava e produzia uma arquitetura muito ligada a problemas bem cotidianos, banais quase, e relacionados com seus usuários, defende Mendes da Rocha.

Na série Inéditos, encontram-se os estudos e desenhos que o arquiteto fez e que nunca haviam sido publicados ou expostos. São materiais que pertencem à Fundação Oscar Niemeyer. Por fim, na sala São Paulo, uma ala especial em que se relembra e se conhece a produção do arquiteto para as terras paulistas e paulistanas, como o Parque do Ibirapuera, o Memorial da América Latina, o Edifício Copan e até projetos que não foram executados, como o prédio da Companhia Energética Paulista, a CESP, uma universidade no interior do estado e a sede da Fundação Zumbi dos Palmares.

No entanto, o mesmo homem que fincava pés na vida cotidiana, antecipava questões do futuro. Nas paredes da exposição aparecem vários projetos feitos décadas atrás que já apontavam preocupações com questões que só estamos vivendo agora. Um deles trata de uma cidade no deserto de Israel onde se chega de trem e tem a forma de um anel. Ali, tudo é calculado para que não se tenha distância maior que 500 metros, e os moradores possam fazer tudo a pé, portanto. “Num tempo em que se discute a mobilidade, ou a falta dela”, lembra Rocha, “esse projeto é absolutamente atual. Mas o projeto é dos anos 1960. E ele pensava também que a cidade não podia crescer se esparramando como uma planta, mas sim em módulos, como esse primeiro, ligados pelo transporte público, outra questão bem atual”.

Outro ponto que salta aos olhos dos visitantes é a simplicidade de soluções. O responsável pela montagem brinca dizendo que hoje há uma mística sobre o valor da arquitetura. Quanto mais rocambolesco e estapafúrdio, mais valoroso seria o projeto. Para Niemeyer, isso não é verdade. Porque, em primeiro lugar, a arquitetura está ligada à construção, à concepção do lugar. Então o bom arquiteto é um bom engenheiro, há então uma lógica estrutural construtiva. “Nos trabalhos dele, ele sempre dizia que, quando a estrutura estava pronta, a arquitetura estava definida. Não tem embrulhamento, revestimento. É uma lógica construtiva. Basta lembrar do projeto da Catedral de Brasília. Uma estrutura simétrica que se apoia nela mesma, um cálculo sofisticado e um domínio da técnica fantástico”, explica.

Nessas particularidades dos projetos fica claro que Oscar Niemeyer sabia que sua obra teria lugar na história, não por ser única apenas, mas por dialogar conscientemente com seu tempo. Mendes da Rocha reforça essa percepção quando reflete sobre a arquitetura e o urbanismo como provas materiais de um tempo histórico. “Por isso é que é uma besteira fazer um prédio imitando a Roma Antiga em pleno século 21. A arquitetura é uma testemunha de seu tempo. Niemeyer se preocupava com isso. Ele propôs prédios que se interligavam por passarelas pelo espaço aéreo e suscitou a discussão da posse desse espaço. O que se planta no chão tem um dono claro, mas e o que se planta no ar, pertence a quem?”

Com provocações dessa natureza, o homenageado acabava trazendo à tona discussões sobre outras cidades possíveis, diferentes dessa desastrada – nas palavras do arquiteto responsável – que temos aí. O famoso edifício Copan poderia ser também um bom exemplo, com comércio e serviços embaixo e apartamentos de tamanhos e valores variados, mostrando que pobres e ricos, solteiros e famílias, podem conviver no mesmo espaço, porque a cidade é de todos. Não tem essa de casa popular e casa de rico. O mesmo prédio, com a escala da metrópole, ocupa o quarteirão inteiro e se projeta no espaço aéreo. Mais que isso: expõe um raciocínio que sugere que, se a propriedade do solo não fosse privada e não tivesse interesse da especulação imobiliária de fazer isso render o máximo, poderia ter uma alternância muito mais saudável e desejável entre áreas verdes, áreas livres e área construída, e não uma ocupação que é o máximo que o empresário pode faturar. “Traz a arquitetura para um campo em que mesmo quem não é arquiteto pode ser instrumentalizado a brigar para uma cidade de melhor qualidade”.

O público comum é convidado a refletir sobre questões como essas nas rodas de conversa que acontecem nos finais de semana. Samara Ferreira, coordenadora do atendimento educativo do Itaú Cultural, conta que a ideia é aprofundar as reflexões propostas pelo homenageado. “Arquitetura e questões sociais sempre aparecem no bate-papo e depois resvalam no alinhamento com o comunismo; além disso, a proximidade com artistas plásticos também vem à tona, por conta da fachada e dos interiores de alguns prédios e, por fim, arquitetura versus acessibilidade”, revela.

Nessas particularidades dos projetos fica claro que Oscar Niemeyer sabia que sua obra teria lugar na história, não por ser única apenas, mas por dialogar conscientemente com seu tempo.

Pensando no público de professores que lê a Giz, Pedro Mendes da Rocha destaca a questão do desenho. Dispostas em vitrines, as mais raras, ou em gavetões como nos escritórios de arquitetura, as pranchas e plantas chamam a atenção para a linguagem do desenho que, segundo a artista plástica Carmela Gross, todo mundo deveria dominar, assim como a escrita e como a fala. Uns falam melhor, outros escrevem melhor e outros desenham melhor. Mas todos deveriam saber se expressar das três formas. “Para os professores essa é uma questão interessante. Em que momento o desenho deixa de ser uma disciplina obrigatória, como música. Antes do homem pré-histórico escrever, ele desenhava.  É uma forma de representação clássica, humana. E ninguém precisa deixar de desenhar porque começou a escrever”, arrisca. Aqui, cabe um olhar especial para as maquetes que são, segundo Samara, os objetos que mais atraem as crianças. “Elas adoram, porque percebem como uma grande brincadeira de criação. A gente até oferece uma oficina para a construção de uma cidade dos sonhos, cidade ideal, para as crianças fazerem com os professores ou as famílias. E, se divertindo, vão refletindo sobre o lugar em que gostariam de morar”, afirma.

Para o professor fica ainda a reflexão sobre um outro parâmetro de civilização. Na opinião de Mendes da Rocha, a forma como Niemeyer pensa a ocupação do território, a relação com a paisagem, a forma de morar, seriam especulações do mais alto nível, que levam em conta o prazer, o conforto, o visual. “Não é a visão do empreendedor capitalista que quer faturar. Ele leva em conta coisas como a importância do espaço externo, uma varandinha, mesmo em apartamentos. E tem projetos que mostram como a arquitetura tem um compromisso maior que a casinha de cada um, o prédio bonitinho. É um pensamento para a coletividade, para a cidade, para o que é de todos”.

Em outras palavras, alternativas para uma cidade mais fraterna, mais solidária, a mesma que estava em voga nas manifestações de junho de 2013. Certamente uma cidade oposta àquela que temos hoje: que exclui, que agride e devora seus habitantes, em que o automóvel se impõe sobre o pedestre, em que a propriedade se impõe sobre o espaço público. “Para mim, é um sopro de esperança para o país se pensar melhor, fora da lógica da experiência do capital”, Mendes da Rocha.

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