Por Elisa Marconi*
Eduardo Escorel, cineasta, montador de filmes como Santiago e Eles não usam black tie, recebeu seu convidado para a palestra do meio-dia da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2013 munido de um espírito provocador. Não foi à toa. Ele seria o responsável por mediar e costurar a fala de Eduardo Coutinho, que subiu ao palco de casaco preto, para enfrentar o vento gelado que soprava na tenda dos autores, construída num braço de areia, no exato ponto em que o rio encontra o mar. Coutinho foi aplaudido por muitos minutos; com seu folclórico mau humor, no entanto, fez que não se importava e autorizou o início dos trabalhos.
Fazia 10 anos que eu esperava para ver Coutinho pessoalmente e ouvi-lo falar. Desde que comecei a dar aulas na universidade, montei um dos cursos sobre os documentários dele. Carregava os DVDs debaixo do braço, conseguia cópias raras, emprestava aos alunos, ganhava os novos filmes de presente. A cada semestre, procurava me aprofundar e encontrar novas facetas da obra do cineasta e discutir com os meninos e meninas. Era caso de admiração mesmo, mas era também identificação. O apreço radical pelo real, a dor de ser tudo verdade, é algo que quem sente encontra eco na obra coutiniana.
A lacuna a ser preenchida – e as pessoas têm um desejo atávico de preencher espaços vazios – mobiliza os repertórios anteriores do espectador e seduz a preencher com significados aquela tela em branco.
É por isso, por exemplo, que Eduardo Coutinho nunca volta uma cena, nunca regrava. “Porque é absolutamente inútil, quando eu acho que ficou extraordinário, aquilo não vai se repetir”, pregou lá na palestra. Favor atentar a isso. Aprendi com Coutinho que a mágica do momento extraordinário é a recompensa pela entrega ativa ao real. O embate com aquilo que a realidade oferece traz esse tipo de prêmio, e o documentarista precisa estar muito ligado para perceber quando a mágica se dá.
O assunto seguinte foi o personagem. A resposta começa com uma frase emblemática: “o personagem é tão melhor que a pessoa, porque é quase uma célula ficcional” [neste ponto, o 4º bimestre do curso que venho dando se justificou plenamente] e segue, “porque cinema é isso, não importa a história ser boa se ele conta mal. E não importa se é uma boa pessoa ou um mau-caráter, aliás esses dão ótimos contadores de história”. E Eduardo Coutinho esteve sempre atrás das boas histórias e dos personagens que sabem contá-las. “Se você não tem nada para contar, mas conta bem esse nada, você é bom, é maravilhoso. Tem gente que vê Deus no Egito, mas conta isso de um jeito que é um saco. Saber contar é essencial”.
Seres humanos são, acho que até biologicamente, dependentes de boas histórias. Talvez a narrativa seja das nossas melhores invenções. O método para Coutinho chegar às histórias bem contadas é um capítulo à parte. Tem até um livro inteiro sobre isso, chamado O documentário de Eduardo Coutinho (Zahar), da Consuelo Lins, assistente do cineasta em várias ocasiões. Ali no livro e em entrevistas anteriores, o documentarista conta que a equipe conversa antes com o personagem, em busca de passagens que rendam um bom papo. Coutinho fica sabendo o resultado desse encontro superficialmente e, ao se deparar com o entrevistado e iniciar o embate, ele precisa se surpreender, se encantar, se sentir arrebatado. E, com uma curiosidade genuína pelo que o interlocutor tem a dizer, gradualmente foi desenvolvendo uma sensibilidade para garimpar os bons casos. A equipe também foi aprendendo a captar esses momentos e a não perdê-los.
Dentro do método coutiniano – nem sei se isso existe de fato, assim como tópico de estudo, mas chego a esses termos com a licença poética dos que estudam formalmente o documentarista – destaca-se, sem dúvida e para meu deleite, a entrevista. Na FLIP 2013, Escorel relembrou um depoimento que Coutinho havia dado à revista Cinemais, em 2000, em que citava o pensador francês Pierre Bourdieu. O trecho dizia assim: “A entrevista pode ser considerada uma forma de exercício espiritual, visando obter pelo esquecimento de si uma verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida. A disposição acolhedora que inclina a fazer seu o problema do entrevistado, a aceitá-lo e a compreendê-lo tal como ele é, na sua necessidade singular, é uma espécie de amor intelectual. Um olhar que consente com a necessidade à maneira do amor intelectual de Deus”. Coutinho admite ter achado maravilhoso, até porque retoma o filósofo (Baruch) Spinosa (1632-1677), na aceitação dos fatos naturais como eles são. Ele acha extraordinário concordar com o mundo, assentir com o mundo. E assume que, se não é a tradução do método dele de conversar, é sua única utopia.
O dilema do documentarista é, segundo Coutinho, estender a mão e tirar o entrevistado do sofrimento, mas nunca saber como ele sairia de lá; ou, estar ao lado do entrevistado, aguentando o sofrimento junto nesse momento de dor e acompanhar, de posição privilegiada, a saída desse estado.
No embate com o outro – premissa primeira e fundamental do documentário –, o documentarista, ao entrevistar, pode se deparar com as mais variadas respostas. Impossível prever o que vem; aliás, roteirizar de antemão a reação do entrevistado seria matar na origem o que há de mais bonito na narrativa não-ficcional. Das falas surpreendentes à conversa cansativa, passando pelos gestos e – aqui tenho especial interesse – e pelos silêncios. E se o entrevistado não falar?
Na palestra da Flip, Eduardo Escorel separou dois silêncios emblemáticos na filmografia de Coutinho. No primeiro, um personagem de Cabra marcado para morrer é interrompido por Coutinho, no meio de uma fala importante, por problemas com o som. Ao retomar a conversa, o entrevistado trava. Coutinho, muito jovem e um tanto ansioso, procura estimular o personagem a falar. Quando finalmente acontece, ele mudou de discurso. No segundo trecho selecionado por Escorel, um Coutinho já mais velho entrevista um peão do filme Peões e, lá para as tantas, ele fica pensativo, meditativo. Ao contrário do que fizera na experiência anterior. Coutinho sustenta o silêncio do personagem e entra nele, junto com o entrevistado – posso até dizer, amorosamente aceitando o fato como ele é. E ao final desse curtíssimo período, que parece bem mais longo, o documentarista recebe um presente. O peão lhe faz uma pergunta que é senha mais que perfeita para encerrar o filme.
Me arrisco aqui a falar sobre silêncio, porque é um tema sobre o qual me debruço desde o mestrado. A suspensão, longe de ser uma falha, ou a ausência de algum estímulo, é antes de tudo um convite para o espectador jogar o jogo proposto pelo diretor. A lacuna a ser preenchida – e as pessoas têm um desejo atávico de preencher espaços vazios – mobiliza os repertórios anteriores do espectador e seduz a preencher com significados aquela tela em branco. O silêncio do personagem de Cabra deve ter incomodado Coutinho, porque a partir dali, ele passa a atentar para a mudez e passa a experimentar trabalhar com ela. Destaco o documentário Santo Forte, todo pontuado por imagens estáticas, silenciosas, que convidam a uma audiência ativa, consciente e de jogo, à medida que a cena só existe de fato dentro da cabeça do espectador. Na tela em si, o que se vê é uma imagem parada, de um quarto, ou uma sala, sem nenhum movimento e nenhum som de fundo.
Voltando aos trechos silenciosos exibidos na FLIP, Coutinho comentou que era preciso manter o silêncio do peão, porque ele estava sofrendo e nada traduz melhor o sentimento e a dor de ser peão. O entrevistado pergunta ao documentarista: “O senhor já foi peão?” e, absolutamente surpreso, Coutinho diz que não. E o silêncio segue. Fica evidente que nada, nenhuma palavra explicaria melhor o significado de ser peão. O dilema do documentarista é, segundo ele, estender a mão e tirar o entrevistado do sofrimento, mas nunca saber como ele sairia de lá; ou, estar ao lado do entrevistado, aguentando o sofrimento junto nesse momento de dor e acompanhar, de posição privilegiada, a saída desse estado.
Aprendi com Coutinho que a mágica do momento extraordinário é a recompensa pela entrega ativa ao real.
Acho isso belíssimo, porque é uma daquelas situações em que a fronteira é tênue, mas ao mesmo tempo agudíssima e até me arrisco a dizer que essa singeleza que beira a dor só se alcança em filmes de vida real, justamente porque a verdade tempera e tensiona a situação. E, se como prega outro documentarista, João Moreira Salles, o barato do documentário é contar não pela informação, mas pela experiência, nada melhor do que deixar o entrevistado falar daquilo que não se traduz em palavras, abrindo mão da fala, mas, ainda assim, comunicando tudo.
Muitos dos meus alunos e ex-alunos me procuraram quando a notícia da morte de Eduardo Coutinho se espalhou pelas redes sociais e sites noticiosos, diziam que lembraram imediatamente das aulas, das discussões e do encantamento que os foi tomando aos poucos, à medida que se entregavam à fruição dos documentários de Coutinho. Vários deles percebiam a falta que os filmes dele e suas reflexões ranzinzas e irônicas vão fazer. Alguns notaram meio preocupados que talvez o país não tenha um discípulo à altura. Enfim, pensamentos que surgem na hora do luto.
De minha parte, ainda doída pela perda do parceiro de tantos estudos, vou aguentar em silêncio até enxergar o ponto de saída da escuridão.
Coutinho, meu velho, saravá!
[typography font=”arial” size=”12″ size_format=”px”]*Imagem: Divulgação[/typography]