Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Stephanie Habrich é francesa, administradora de empresas, trabalhou por muito tempo no mercado financeiro, morou por sete anos em Nova York e, quando chegou de volta ao Brasil depois da temporada norte-americana, percebeu que as bancas de jornal daqui não vendiam um tipo de produto bastante presente e comum nos países por onde tinha passado: jornais e revistas especificamente pensados e voltados para crianças. “Morei anos fora do Brasil e conheci publicações jornalísticas diversificadas, com periodicidade mensal, semanal e até diária para crianças de todas as faixas etárias. Aqui, eu não via isso”, reforça.
Com essa constatação martelando na cabeça, a administradora decidiu estruturar uma editora que hoje produz duas revistas e um jornal quinzenal para crianças de 6 a 12 anos. O Joca, nome dessa última publicação, traz as principais notícias do Brasil e do mundo, com textos e fotos, e uma linguagem, segundo a idealizadora do periódico, apropriada para crianças. “A ideia não é simplificar no sentido de empobrecer, de retirar a importância, as contradições, a complexidade dos assuntos, mas sim oferecer uma linguagem adequada e acessível”, explica. “O conceito principal do Joca é respeitar a criança, que é curiosa, interessada, ligada no que acontece ao redor e detesta ser tratada como incapaz”, completa Stephanie.
Professor como mediador entre o jornalismo e a criança
Como não é vendido em bancas de jornal, o Joca encontra as crianças a partir de escolha e indicação feitas pelas escolas. Em muitas delas, publicações como essa já fazem parte da lista regular de material escolar. E, justamente porque é uma leitura mediada pelo professor, o jornal para criança tem merecido cada vez mais atenções especiais dos pesquisadores em Comunicação e Educação. A maior parte dos estudos sobre uso de periódicos em sala de aula investiga os benefícios dos trabalhos feitos com jornais voltados para adultos e chega à conclusão de que existem mais vantagens que desvantagens nessa opção.
O professor da graduação e da pós-graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp – campus de Assis e Marília) Juvenal Zanchetta explica que muitas escolas usam jornais e revistas para trazer às aulas temas atuais e assuntos candentes. “As razões para trabalhar com jornalismo são variadas. A mais comum é desenvolver de maneira mais formal aqueles temas que fazem parte das rodas de conversas dos alunos com os colegas, com as famílias, nas igrejas, etc”, explica o professor. Em geral, essa abordagem permite discutir com mais propriedade e argumentos questões éticas, questões sociais e até comportamentais. É o que Zanchetta chama de uso pretextual da imprensa, ou, em outras palavras, o texto da imprensa como suporte para discussões mais amplas ou até de disciplinas específicas.
A segunda razão levantada pelo professor da Unesp, que também é autor de vários livros sobre mídia e educação, o mais recente deles, o e-book Como usar a internet na sala de aula (Ed. Contexto), é a ponte com o mundo real. Essa ligação mediada e cuidadosa com o que acontece na sua cidade, no seu país ou em outras partes do planeta é também uma das motivações do Joca. “As crianças hoje são muito expostas às informações, são muito espertas para entender o que acontece no entorno. Querem saber”, afirma a idealizadora do jornal para petizes. Por isso mesmo, ao folhear as páginas, o leitor-mirim encontra matérias e notas sobre o que está se passando na Turquia, no Mali, na Síria, em Brasília, no Banco Central, o preço do dólar e do tomate, por exemplo.
Zanchetta completa o raciocínio lembrando que oferecer informações sobre o mundo real para crianças é um bom mecanismo para, de forma controlada e responsável, tirá-los do mundo fantasioso, fechado e cheio de limites que, em geral, os menores vivem. “Se ficar por conta dos próprios meninos e meninas, só chegarão às conversas os assuntos mais gritantes da sociedade. Crimes, violência, celebridades. Por isso, ler jornais de qualidade garantiria uma diversificação maior de temas, o que é desejável, porque traz reflexões e aprofunda as ideias”, aponta.
As crianças e o noticiário
O tal mundo real, como se vê, promove certa atração nas crianças. Ler jornal, coisa de gente grande, seria então experimentar as nuances desse lugar complexo, cheio de histórias mirabolantes. Em 2007, a pesquisadora Josy Fischberg defendeu na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) uma dissertação de mestrado chamada Criança e jornalismo: um estudo sobre as relações entre crianças e mídia impressa especializada infantil. Na obra, a autora relata o resultado de oficinas de leitura e produção de jornais por crianças de faixas etárias diferentes. Nas considerações finais, ao apresentar suas conclusões, ela confirma essa percepção e faz a seguinte observação: “Foi possível notar também, nos debates e nos trabalhos feitos pelas crianças, que seu grande interesse está direcionado a temas que consideramos do “mundo adulto”. Elas sabem e declaram, inclusive, que esses assuntos não se encontram, necessariamente, nos impressos voltados para o público infantil. Desta forma, consomem tudo aquilo que se destina a um público de faixa etária mais elevada que a sua, não apresentando dificuldades de compreensão em relação aos textos, quando se trata de mídia impressa”.
Além dos assuntos atuais, a linguagem jornalística (composta, nesse caso, de texto e foto) é componente fundamental para a atração dos pequenos por notícias do mundo adulto. Zanchetta lembra que linguistas importantes, como Luiz Antônio Marcuschi, defendem que a forma de escrever da imprensa poderia ser adotada como o padrão nacional, porque é construída para promover o entendimento e ainda padroniza a língua, mesmo em localidades diversas. Embora seja mais fácil que a literatura, é mais elaborada que a linguagem oral. E não são apenas essas as vantagens. Talvez mais que a compreensão do texto final, o jornalismo oferece um método, que vai da ideia à escrita e re-escrita, passando pela apuração, checagem e pela transformação do discurso direto da entrevista em discurso indireto. O autor de Como usar a internet na sala de aula reforça esse ponto: o processo de produção da notícia pode ser muito valoroso, especialmente para os professores de língua portuguesa.
Afinada com essa ideia, a redação do Joca é constituída por jornalistas profissionais. “Embora a pauta seja feita em conjunto com crianças de várias escolas, que sugerem os assuntos que mais as interessam, a produção é feita por jornalistas mesmo, seguindo o método jornalístico”, conta Stephanie. Embora não seja uma profissional da comunicação, ela reconhece que percebeu rapidamente que só jornalistas profissionais poderiam fazer os textos do jornal infantil com o entendimento de que criança não quer informação mastigada e sem importância. “Quer um bom texto, que explique muito bem explicado as informações, com foto e com legenda”, ensina.
Outro aspecto do mundo adulto que chama a atenção das crianças e acaba resultando em algo incontestavelmente positivo é o contato e o estímulo à leitura. “As crianças me contam que gostam de ler jornal, porque o pai lê, ou a mãe, e elas acham isso legal. Sentem como uma conquista quando, finalmente, percebem que se tornaram leitores de jornal”, comemora a idealizadora do Joca. Sabidamente, ser arrebatado por uma leitura, qualquer leitura, é um passo significativo para se tornar um leitor pela vida futura.Faz sentido. Na dissertação de Fischberg, aparece uma citação à obra Imagem: cognição, semiótica, mídia de Lucia Santaella e Winfried Noth. “Santaella e Noth ressaltam, no entanto, que nos meios da imprensa não se trata meramente de uma díade entre texto e imagem, uma adição de duas mensagens informativas diferentes. O jornal e a revistas apresentariam, segundo as autoras, tríades formadas por texto impresso, imagem ilustrativa e legenda: um comenta o outro. A imagem, sozinha, não é entendida, por isso precisa de uma legenda que a comente. A imagem comenta o texto e, em alguns casos, ela comenta até sua própria legenda”. Zanchetta e Habrich concordam.
Por fim, o professor da Unesp destaca que ter contato com a mídia – e isso inclui a imprensa – é uma maneira eficiente de tomar parte da cultura de um lugar, de uma sociedade. “A imprensa é uma das mais importantes divulgadoras e potencializadoras das formas de expressão da cultura. E abrir mão disso é abandonar uma parte importante da cidadania. E a escola é o lugar certo para discutir e alcançar a cidadania”, conclui o professor.