O filósofo José Sérgio de Carvalho fala sobre a educação como uma postura política, a respeito do direito que o educando tem à herança cultural produzida por nossos antepassados, sobre elos de pertencimento que nos constituem como pessoas e como membros de uma comunidade, além de lembrar que educar exige, antes de tudo, coragem. Confira!
Elisa Marconi e Francisco Bicudo*
O filósofo José Sérgio de Carvalho tem a fala mansa e o pensamento crítico. A cada frase, uma provocação tão delicada e contundente que impele o interlocutor a pensar e a rever certas posições. Professor de Filosofia da Comunicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE/USP), ele propõe, por exemplo, que “a educação teria um fim em si mesma, tal qual a amizade. Se minha amizade com alguém é para conseguir empréstimos baratos, eu destruo a própria essência da coisa. O mesmo se dá para relação de amor, de paternidade. Há dimensões da vida humana que se justificam pelo sentido intrínseco que elas têm”.
É uma reflexão que toca pela beleza que carrega, mas ao mesmo tempo convida a pensar sobre como a sociedade vem formulando e colocando em prática experiências educacionais em tempos atuais: lamentavelmente, segundo o filósofo, trata-se mais de um meio para desenvolvimento cognitivo ou para reforçar uma ferramenta instrumental para entrar no mercado de trabalho.
No livro mais recente de Carvalho, Reflexões sobre educação, formação e esfera pública (Ed. Penso), entre sutilezas e sacudidas, o professor retoma uma ideia quase esquecida de educação, aquela que vê e aplica essa prática como uma das pontes humanistas que estabelecem elos entre indivíduos e sociedade. Na entrevista exclusiva que deu à Revista Giz, o autor fala sobre como a educação pode ser uma postura política, a respeito do direito que o educando tem à herança cultural produzida por nossos antepassados, sobre elos de pertencimento que nos constituem como pessoas e como membros de uma comunidade, além de lembrar que educar exige, antes de tudo, coragem.
Ao lado, você acompanha os melhores trechos dessa conversa.
O senhor tem outros livros publicados a respeito da educação, finalidade dessa prática, desse valor, mas “Reflexões sobre educação, formação e esfera pública” aponta uma direção nova para essa questão. Como e por que o senhor chegou a esse livro, professor?
Meu primeiro livro, lançado há alguns anos, critica um excesso de psicologização da educação, como se a educação estivesse simplesmente a serviço de uma suposta natureza cognitiva humana. Essa perspectiva obscurecia um pouco o compromisso que a educação tem com o educado e com o mundo em que ele se insere. Mas esse livro parava na crítica. A partir daí, toda a minha produção tem sido voltada também para a apresentação de uma dimensão que tem sido um pouco esquecida, essa relação humanista com a esfera pública. Hoje, a retórica economicista, que diz que o estudante precisa estudar para conquistar um lugar no mercado de trabalho e ajudar a desenvolver economicamente o país, talvez seja mais forte que a retórica psicológica, que era hegemônica quando fiz meu primeiro livro. É um discurso muito impactante, mas sustentado em bases empíricas muito frágeis. Veja a Espanha, por exemplo: 25% dos jovens não conseguem emprego. E são muito, muito bem formados. A Espanha teve um enorme desenvolvimento educativo nos anos 1980 e hoje conhece um contingente de desempregados muito bem preparados. A relação entre educação e economia não é tão direta assim. Cuba nos prova isso. Então sustentar toda a ideia da educação pública ou não estar vinculada à economia empobrece a vida pública, ao mesmo tempo que é uma falácia.
Essa educação apenas com viés psicológico ou econômico dá conta da formação de cidadãos críticos e dispostos a viver em sociedade?
De forma nenhuma. A gente pode usar um exemplo caricatural. Seres que têm competências, boas formações e ateiam fogo num índio. Ou o caso da Faculdade de Medicina, a mais difícil de entrar, quando houve o caso de um calouro que morreu afogado na piscina. Jovens muito bem educados promoveram um episódio assim. Não faz sentido imaginarmos que o compromisso da educação é com o êxito econômico individual privado de alguém, ou tampouco com a maximização das capacidades cognitivas e competências de um indivíduo, sem nenhum vínculo com uma herança cultural, com um projeto de sociedade, enfim, com tudo aquilo que marcou os ideais de nascimento dos sistemas de educação modernos.
Então qual seria esse outro caminho, que não é marcado pela psicologização, nem pelo discurso econômico, mas que preza, por exemplo, a relação do educado com seu mundo?
O que eu tenho discutido muito é que se começa a encarar a educação, principalmente a partir do final da década de 1970, no Brasil, a partir de supostas finalidades. Uso a palavra finalidade para explicar que se tem pensado educação como meio para algum fim, como meio para desenvolvimento cognitivo, como meio para desenvolvimento econômico. O problema de pensar a educação a partir dessa lógica de meios e fins é que ela é sempre aprisionante, porque um meio se transforma num fim, que por sua vez se transforma num novo meio, que vira um novo fim e assim por diante. Eu compro uma mesa para apoiar meu computador, compro um computador para escrever artigos, escrevo artigos para publicar e continuar na pós-graduação e etc. Tudo é um meio para outro fim, que se transforma numa cadeia em si, sem nenhum sentido. E isso tem ocorrido.
O custo de a gente pensar a educação como um meio para outra coisa é que ela perde seu sentido público, seu significado para a vida social. Há atividades que não são meios para outros fins, elas têm sentido próprio. A educação, pensando dessa maneira, teria um fim em si mesma, tal qual a amizade.
Se minha amizade com alguém é para conseguir empréstimos baratos, eu destruo a própria essência da coisa. O mesmo se dá para relação de amor, de paternidade. Há dimensões da vida humana que se justificam pelo sentido intrínseco que elas carregam. Claro que elas também trazem resultados, que um amigo também me ajuda, mas não vou ter amizade para isso, para essa finalidade, porque isso destrói o sentido da prática social. Educação, a meu ver, tem um sentido. Ela cumpre finalidades sociais, mas ela tem um propósito em si mesma, que é você tornar-se herdeiro de um legado público de conhecimentos, de saberes, de linguagens, que uma determinada cultura, que uma determinada nação produziu, e das quais somos os herdeiros por direito. Temos o direito de herdar a literatura brasileira. Não porque ela vai nos facultar entrar na Faculdade de Medicina. Mas porque é um bem público.
E atualmente ainda é possível vislumbrar experiências mais amplas de educação cidadã?
Eu penso que há modelos que estão mais próximos disso. A gente usa até hoje a expressão educação humanista. Se deixar de ser um chavão e a gente encarar não como um ideal de regresso, mas como uma experiência histórica iluminadora, é a educação humanista em sentido estrito. Aeducação desse período histórico, o humanismo renascentista, é concebida como a iniciação num conjunto de saberes, como elemento formativo de um sujeito cujo compromisso principal é com a cidade, porque estamos falando do renascimento da Itália, trabalhado em Gênova, em Roma, em Florença. Ouseja, na vida pública. Então até hoje quando a gente usa o termo educação humanista, é essa a experiência histórica a que nos referimos. Isso para pegar um exemplo de uma situação de educação que tem esse caráter. Há outras, mesmo no século XX, como o início da experiência republicana na Espanha, que foi dos anos 1920 até 1932, antes de Franco e da Guerra Civil Espanhola. A Espanha teve um governo de coalizão, socialista e tinha aquelas caravanas culturais que saiam fazendo uma formação cultural. Não era uma formação escolar stricto sensu, mas era de novo essa ideia de uma educação humanista, no sentido de que o acesso aos objetos da cultura, peças de teatro, literatura, ciência, teriam poder formador e emancipador do sujeito. Não estava ali para fazer o desenvolvimento psicológico, nem muito menos a sustentação de uma política econômica. Não, acreditava-se que o processo de humanização, certa imagem de homem decorreria desse esforço educativo. E não é fruto de um pensador da educação. Não é a fabricação de uma ideia de educação por um iluminado. É mais do que isso, é uma ação em marcha. É o movimento histórico que vê na educação isso.
Como a gente traz essas ideias todas para o Brasil hoje, pensando que as escolas estão bastante preocupadas em entrar em rankings? Fica difícil pensar tudo isso nos tempos de educação mercadológica que vivemos, não?
Num dos capítulos do livro, que é “O declínio do sentido público da educação”, tem um parágrafo que traz uma hipótese.
Há certa correlação que, na medida em que afirmamos que a finalidade da educação é reforçar as capacidades cognitivas, ou competências para o mercado de trabalho, essa competitividade como princípio motor da educação, a gente enfraquece a ideia da educação como compromisso com a criação daquilo que é comum e público, de uma cultura, de uma comunidade política e cultural. Porque a comunidade representa exatamente isso: aquilo que nos é comum.
A própria ideia de Público tem a ver com isso. Se você for na origem da palavra, os gregos faziam uma cisão entre aquilo que era comum e o que era individual. A palavra Koinon, de onde vem comum, comunidade, comunismo, diz respeito àquilo que é de todos, que a gente compartilha, que é o espaço entre nós. Não é uma propriedade coletiva, é um espaço entre nós, como a cidade, a pólis, a língua que falamos, o que está entre nós. No contraponto disso, está Idion, que é próprio, privado e de onde vem idioma, idiota, que para os gregos era aquele que não sabia fazer mais nada além de cuidar de si próprio. Portanto, o idiota reduz a dimensão da sua vida porque só sabe cuidar de si. A gente não está fazendo pregação moral, na verdade é chamar atenção para o equívoco que é reduzir a vida a cuidar da própria vida, o que empobrece sua existência. Essa dimensão do compartilhado não anula a do privado, precisa dela até, mas o excesso de zelo pelo que é próprio enfraquece o que é comum.
Professor, mas se a gente educa as pessoas para cuidar do comum e trazer essa referência como uma dimensão da própria vida, a gente está adotando uma postura política. Será que não é isso que as escolas, os sistemas educativos e os educadores não querem enfrentar, assumir?
Claro, mas postura política stricto sensu, não partidária. Separemos aqui política de gestão do Estado, do governo. Entendendo política como cuidar daquilo que pertence a todos nós, o que é comum. Aí, olhando para a educação, que é o que nos interessa, cuidar daquilo que é de todos nós é cuidar de nossa herança cultural, da literatura, por exemplo. E o que é importante? Que a gente eleja os cânones, quem a gente deve ler para ter algo em comum com os outros. Pode parecer banal, mas é muito importante que quando eu faleem Guimarães Rosa, ouem Machado de Assis, ou Drummond, ou Chico Buarque ou Mano Brown, a outra pessoa saiba quem é, já tenha lido. A gente tem uma cultura que nos constitui como pessoas no mundo e a gente compartilha tudo isso. A capoeira, para falar de uma prática não discursiva, ou o futebol, que criam um elo comum entre nós. São práticas políticas, porque são comuns a todos nós, qualquer taxista, dono de banca, ou chefe de escritório sabe a escalação da seleção. A gente não transfere essa responsabilidade para um técnico de Educação Física, faz parte da minha vida, da vida de todo mundo, e é um assunto comum, nos une, está entre nós. Então a literatura brasileira tem de ser isso, as narrativas históricas que temos a respeito de nós mesmos têm de ser isso. Tudo isso cria pertencimento, vinculação. É mais do que identidade, é vinculação. A questão não é formar uma identidade nacional, é formar vínculos. Compartilhamos esse mundo com nossos antepassados e vamos compartilhar com os que virão. A dimensão de pertencimento a esse mundo não é só geográfica, é histórica, temporal. Sem o que não há nenhuma profundidade na existência humana, a vida fica rala, se for só do aqui e agora.
Mas professor, vamos insistir, não é isso que é oferecido por aqui quando se fala de educação. Quer dizer, educar tendo em vista tudo isso seria extremamente perigoso, ao menos para alguns… Porque uma comunidade que se vê e se entende como tal, percebe os elos que ligam cada um dos indivíduos, que cuida dos espaços entre eles, é uma comunidade muito forte.
Assim espero. (risos). Mas quando você diz perigoso, tenho duas perguntas: perigoso para quem? Porque acho que perigoso é viver na sociedade que temos hoje. É perigoso porque se põe contrário frontalmente ao que temos hoje? Então sim, é uma posição crítica à sociedade que temos hoje vigente. Até porque o que temos hoje vigente não é assim de nos dar tanto orgulho, não é? E isso é um problema, porque educar exige que a gente assuma que esse mundo é o nosso mundo. Tal qual ele está, ou como queremos que ele fique. Não é uma aceitação à crítica, mas é aceitar que foi esse mundo que criamos. Nesse sentido, o ato de educar exige do educador coragem para assumir a sua responsabilidade coletiva sobre o mundo. Não a culpabilidade, porque essa é individual, como num crime, mas a responsabilidade política, que é coletiva. Por isso olho para a educação e penso que educação assim é um equívoco, uma conta errada. Estamos reafirmando erro ao tentar aumentar cada vez mais a eficácia desse sistema que desvincula a educação de um projeto comum e político – naquele sentido não partidário, mas da nossa vida comum. O sentido da educação estaria ali.
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