Especialista defende que quem não vê documentários deixa de conhecer o mundo. “Acho que essa parcela da população não se imagina numa sala de cinema, por duas horas, aprendendo sobre o mundo, experimentando um ponto de vista inusitado sobre a vida, sobre o outro. É uma experiência tocante conhecer o outro, penetrar na realidade do outro”, convida.
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Elisa Marconi e Francisco Bicudo*
Embora o ambiente seja favorável – produção e lançamento de filmes, festivais em todas as regiões do país, leis de incentivo, programas governamentais de apoio –, o público de cinema documentário continua minguado no Brasil. Uma pena, na opinião do professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcius Freire.
“O documentário permite o contato com o outro. E o interesse pelo outro num tempo de globalização, em que pode ser tão instantâneo visitar outras culturas, outros mundos, é uma experiência muito enriquecedora”, propõe o pesquisador, uma das principais autoridades do país nesse assunto.
Quem não assiste a filmes desse gênero – se é que se pode chamar assim – acaba perdendo a oportunidade de conhecer cenários e personagens em profundidade, com um olhar, um tempo e uma vivência que nenhuma outra forma narrativa da realidade permite.
“As pessoas são curiosas”, lembra o professor. “E desde o início da produção de documentários, no final do século 19, os realizadores souberam jogar com isso, com a exposição do singular, com a busca pelo diferente. Isso, por si, atrai o público”. Então como explicar, no Brasil, o pequeno público para os filmes documentais que entram em cartaz, a baixa procura por essas obras nas videolocadoras, ou ainda a ausência deles na programação de televisão aberta? Segundo Freire, também orientador de mestrados e doutorados que se dedicam a estudar o cinema documentário, existem alguns fatores (econômicos, culturais, históricos, estratégicos da comunicação) que colaboram para reforçar essa realidade e insistem em não promover a ligação entre o público e o cinema documental.
Conhecimento, aprendizado e aprofundamento
O primeiro deles é a tradição mundial. “De um modo geral, os documentários nunca atraíram grande público às salas de cinema. Nem aqui, nem na maioria dos países. É um gênero para quem está ávido por conhecimento, aprendizado, aprofundamento”, começa a desenrolar o novelo. E continua: “para muita gente, cinema e TV são entretenimento. A pessoa chega em casa cansada e quer ver um filme, ou a novela. Ou vai ao cinema para passear e quer ver uma ficção leve, para esquecer os problemas”. E, dessa forma, a experiência do contato com a realidade, ouvir e ver histórias de vidas de verdade, em profundidade, em exercícios sofisticados de reconstrução de narrativas, seriam movimentos incomuns, estranhos para o público médio.
Some-se a isso o apelo que os filmes brasileiros em geral têm com o grande público. “Com exceção feita aos filmes da Globo Filmes, que contam com atores da Globo e merchandising nas novelas, os nossos filmes não atraem mesmo grande público”, lembra Freire, e o público, novamente e na maior parte das vezes, não está em busca de ensinamentos, de conhecimento, mas sim de diversão, lazer.
“Acho que essa parcela da população não se imagina numa sala de cinema, por duas horas, aprendendo sobre o mundo, experimentando um ponto de vista inusitado sobre a vida, sobre o outro”, afirma.
Mas se o público não vai ao cinema para fruir a experiência da narrativa documental, podia experimentar essa possibilidade em casa, alugando um DVD, ou assistindo na TV. Mas aí se desnudam outras duas facetas da relação do Brasil com o documentário. Primeiro, segundo o pesquisador, aparentemente o mercado de cópia, venda, distribuição é falho. Ricardo Calil, diretor ao lado de Renato Terra de “Uma noite em67”, contou recentemente que foi produzido um número limitado de cópias do filme depois que ele saiu de cartaz. “Quem comprou nesse primeiro momento, conseguiu. Quem não comprou, ficou sem, ou só consegue no mercado pirata”, reforçou, entre risos, numa palestra a jovens estudantes de comunicação. E quando nem o mercado formal, nem o paralelo conseguem fazer a obra circular, o público fica sem ver. Além disso, pergunta Freire: “E qual TV aberta, além da TV Cultura, que dá 2% de Ibope, passa documentário?”. E se não está na TV aberta, em emissora grande, não alcança mesmo o grande público. Em outros países, tão diferentes do Brasil como a Alemanha e a França, ou tão parecidos com a gente, como a Argentina, existem canais que transmitem cinema documental normalmente na programação. Faz parte, portanto, da cultura primária dos espectadores argentinos, franceses e alemães. Contudo, por aqui há uma grande resistência. Talvez pela forma como a TV foi se constituindo, talvez pelo entendimento que de não ficção bastam os telejornais e dois ou três shows com astros e estrelas e pronto.
Obstáculos
De fato há todos esses obstáculos para o documentário encontrar seu público. No entanto, para o pesquisador, a dificuldade maior reside mesmo na falta de intimidade dos espectadores com as obras desse gênero. “As pessoas veem pouco e, portanto, conhecem pouco e, claro, têm menos chances de entender, de gostar, de fruir a experiência”, sugere o professor da Unicamp. Cria-se um círculo vicioso. Mas, uma vez que os olhos se exponham, que os ouvidos vibrem junto e que o coração experimente se emocionar com a vida real, o gosto pela narrativa documental se apresenta e se consolida.
“Pessoas bem informadas, quando assistem reportagens, ou grandes reportagens, na verdade veem o que já conhecem. Mas quando enfrentam um documentário profundo, experimental ou tradicional, se defrontam com o desconhecido, aprendem, descobrem. E isso é muito prazeroso”, revela Freire.
Para ele, é também uma questão de educar o olhar, de construir as condições para gostar da não-ficção. O posicionamento do público, a adesão à proposta, a entrega ao olhar de um autor para a realidade dependem de treino, de alfabetização, de educação.
O que motiva Freire é que há caminhos possíveis para se educar para o documentário. Frequentar festivais como o “É tudo Verdade”, organizado pelo jornalista Amir Labaki? “Sim e não. O público de festival já tem interesse, já está sensibilizado para esse gênero, então não é preciso trabalhar muito. Mas se alguém que vai leva um amigo que não costuma ir, aí sim pode-se ganhar mais um integrante para o time”, responde. De qualquer maneira, o caminho dos festivais é lento, avança-se devagar. Na opinião do especialista, se a TV aberta não tomar para si essa missão – ele acha difícil –, a chave é a escola. “Se desde pequena a pessoa vai travando contato com documentários, com uma forma de cinema que dá a conhecer, que busca o contato com o outro desconhecido, ela vai crescendo e experimentando essa possibilidade de aprendizado, de descoberta, de mergulho no outro, que poderá então se tornar tão natural quanto ver uma ficção por puro entretenimento”, defende.
Acontece que, da forma como as aulas e a vida se organizam na escola, os alunos chegam a acreditar que quando um professor passa um filme, ou um programa televisivo em sala de aula, é porque ele não preparou aula e está improvisando, ou porque está chovendo e a quadra não pode ser usada, ou por qualquer razão pouco nobre. “Alfabetização. A resposta para tudo isso é a alfabetização para o audiovisual, que é tão presente na vida real e ainda tão malquista nas escolas”, pontua. O roteiro para desamarrar esse nó, na opinião de Freire, é alfabetizar os futuros professores – ainda na graduação – para lidar bem com audiovisuais – ficcionais ou não – na sala de aula. “E há muita gente estudando essa relação da comunicação com a educação no Brasil. Não seria difícil incluir esse aspecto na formação dos professores”. Depois de alfabetizar, seria o tempo de sensibilizar os educadores para essa forma de narrativa.
“É uma experiência tocante conhecer o outro, penetrar na realidade do outro”, convida. Um educador que não se sente confortável frente a um documentário e que não se identifica com essa forma de expressão, dificilmente vai convencer os estudantes a desbravar os filmes documentais. “Parece muito com gostar de ler. Se o professor não gosta, o aluno não vai se sentir mobilizado a buscar o livro, a entrar naquela experiência”. Se essas etapas forem vencidas, o passo seguinte é tão simples quanto prazeroso. É ainda Freire quem sugere: “A gente não é ensinado a ler, interpretar e analisar obras da literatura? Vale o mesmo para os filmes não-ficionais. E, uma vez a lição aprendida, apreendida e apropriada, o estudante sozinho pode navegar nessas possibilidades”. E dessa experiência, Freire garante, não se sai igual. O olhar fica crítico e a capacidade de penetrar em profundidade no que é mostrado se amplia. “Até assistir TV passa a ser diferente quando o aluno domina os códigos do documentário e da narrativa documental. E isso é extremamente recompensador para quem experimenta”, convida o especialista.
Comentário excelente no seu contexto absoluto. Temos problemas de aprendizado, desde o início do aparecimento da Escola. Temos que aprender a levar a sério propostas que são colocadas para pesquisas de educadores. Tenho certo conhecimento nesta linha de pesquisas de documentos e sei das dificuldades que é: ler, escrever, interpretar e falar. Alunos são sempre pessoas, que são colocadas a disposição do educador, para que sejam encaminhados ao mundo do conhecimento intelectual. Na totalidade do texto o documentário é observado como um meio de conhecimento que na realidade das nossas instituições não são observados com bons olhos por alguns educadores. Quando chegamos a uma sala de aula e alunos solicitam um filme para “matar o tempo”, como educador sinto uma mal estar profundo, sei perfeitamente que é para passar o tempo. O desafio é de todos, temos que mudar radicalmente o sistema, aplicando normas educacionais, que devem ser observadas com responsabilidade por todos os envolvidos, se não estamos fadados a falência do sistema. Agradeço a oportunidade e aceito sugestões para que possamos melhorar com afinco aulas e palestras em todos o níveis da educação. Brasil de todos? Merece mais respeito, e com educação, teremos mais oportunidades de progresso, moral, intelectual preenchendo nossa memória com léxico e aprendendo o que é cognitivo. (zaragiuseppe@yahoo.com.br) Professor zaragiuseppe.