Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Trançando o desbravamento do sertão, a preservação dos índios e de suas terras e a saga de três irmãos, longa de Cao Hamburger apresenta história desconhecida de Brasil desconhecido
O filme Xingu, dirigido por Cao Hamburger, conseguiu alcançar a marca de 300 mil espectadores, em pouco mais de quatro semanas de exibição. O número é mais elevado que o de outras obras nacionais em cartaz no mesmo período (de acordo com Bruno Carmelo, do portal Adoro Cinema, Heleno teve 87 mil espectadores; Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios, cerca de 23 mil espectadores; e Billi Pig e Reis e Ratos ficaram com algo entre 200 e 300 mil espectadores); ainda assim, o público cativado e conquistado por Xingu ficou abaixo das expectativas dos produtores e da crítica especializada. O longa teve um orçamento de R$ 14 milhões, comparável ao do sucesso de bilheteria Tropa de Elite 2, de José Padilha, e repercutiu muito bem nos festivais internacionais dos quais participou; contudo, não pode ser chamado de sucesso popular. É uma pena, porque significa reconhecer que terá tido alcance limitado mais uma tentativa de tornar mais conhecida a história do Parque Nacional do Xingu e dos trabalhos por lá desenvolvidos pelos irmãos Villas-Bôas.
Razões para o desinteresse não são lá tão fáceis de ser encontradas: trata-se de um filme ambientado num lugar lindo, teoricamente cheio de apelos, ainda mais quando se comemora os 50 anos da demarcação das terras indígenas, e quando os debates sobre o Código Florestal e a Usina de Belo Monte e os impactos nefastos que podem provocar ao meio ambiente fazem parte da agenda nacional e chegam até as conversas cotidianas. Para completar, o filme foge do binômio violência-favela, marca presente em vários longas nacionais dos últimos anos, e (equivocadamente) acusado de ser um espantador de público.
Xingu se dá entre a vegetação rasteira do sertão de cerrados e as árvores colossais da Amazônia. Tem heróis, destemidos e éticos, tem amor – proibido, porque entre branco e índia, e esperado, por unir dois idealistas –, tem guerra e tem História. Uma saga, com tudo que uma saga tem direito. O crítico de cinema Inácio Araújo escreveu em sua coluna no jornal Folha de São Paulo que “ao mesmo tempo, Cao Hamburger invade um território que nos é pouco familiar: o da épica. Dominamos a épica negativa. Mas a aventura dos Villas-Bôas não se encaixa nessa definição”. E essa parece ser uma explicação pertinente.
O cinema brasileiro é marcado pela crítica – a episódios históricos, às condições de vida, ao crime; em Xingu, embora ela esteja ali (no retrato do fazendeiro interessado apenas em seu bolso, nas figuras dos políticos que negociam tudo, na falácia desrespeitosa que foi a Transamazônica, na exploração de índios pelos brancos, nos desmando e truculência da ditadura militar), ela é diluída entre as tramas que correm juntas, em alguns momentos se entrelaçando, em outros se afastando.
Assunto de família
A relação entre os três irmãos Villas-Bôas, sozinha, já valia um filme. A história de Orlando, Cláudio e Leonardo – interpretados por Felipe Camargo, João Miguel e Caio Blat, respectivamente – é narrada de forma muito digna e convincente. Os três, juntos na busca primeiro por aventura e, em seguida, por uma causa, se cuidam, se protegem, se ajudam, se estranham, se acusam, se afastam, se separam, se arrependem, e se reencontram. A crítica Neusa Barbosa, do Cineweb (republicado pelo portal G1), defende que “se fica em primeiro plano a grande afeição entre os três irmãos, também explodem as diferenças que os separam em diversos momentos da vida – como o dramático conflito com Leonardo por seu envolvimento com uma índia que culmina em sua expulsão de volta para São Paulo, no final dos anos 1950. Da mesma forma, Cláudio nem sempre vê com bons olhos as negociações de Orlando junto aos políticos, num jogo que também acarreta diversas concessões”.
E aqui merece atenção o Claudio Villas-Bôas interpretado por João Miguel. Cheio de silêncios, apoiado em seu cigarro e protegido pelos óculos de grau, Culó, como é carinhosamente chamado pelo caçula Leonardo, não à toa ocupa o lugar de protagonista da saga. Sem que precise falar, e apenas num apertar de olhos, é capaz de amar, de odiar o fazendeiro, de cobiçar a mulher do próximo, de discordar de Orlando, de traçar estratégias para proteger os índios do Brasil.
A pouca fala de Cláudio parece reverberar ainda mais no silêncio da floresta. A vastidão de vazios desabitados pelos brancos convida os ouvidos a partilhar os sons da Amazônia, e os olhos a enxergar mais além. Em 1971, 10 anos depois da conquista da demarcação das terras, os sertanistas foram indicados ao Nobel da Paz. Não ganharam, perderam para o chanceler alemão Willy Brandt, mas abriram mais uma picada em direção ao lugar que as lutas de preservação ambiental merecem. Para amparar bem esse lado, o filme foi todo feito em locações em Tocantins, no Pará e em Mato Grosso, e nenhuma cena foi rodada em locação.
Mas a bandeira da preservação do meio ambiente felizmente não é panfletária na obra de Cao Hamburger, e a mata é tratada como casa e como personagem, sem a pieguice que seria bem fácil de alcançar. Em momento algum o espectador se sente seduzido espetacularmente a lutar por essa causa, ao mesmo tempo, é impossível assistir a tudo aquilo e não torcer pelos sertanistas, pelos índios e pela manutenção da floresta em pé. Ou, nas palavras de Araújo, “a primeira [armadilha fácil de cair] delas, claro, a macumba pra turista: o filme entupido de exotismos. Foi evitado: não se vê uma cobra no filme inteiro. A segunda, o “boy meets girl” que o filme de massa brasileiro parece achar, até hoje, que era a finalidade dos Lumière quando inventaram o cinema. Também foi evitada”.
Os amores propostos também dançam uma música suave, compondo a trança da narrativa. Há o casal por quem se torce: Orlando Villas-Boas, o irmão mais velho e líder nato, e a enfermeira Marina, que adota a causa de cuidar dos índios para preservar aquelas culturas. Há o casal amor proibido: Leonardo se apaixona por uma índia, a engravida e, por romper um acordo tácito, ser alvo de críticas e abalar o respeito invocado pelos irmãos, acaba expulso do Xingu. E o amor que resvala, mas não se concretiza, para desespero dos românticos da plateia: Claudio também se apaixona por uma índia, chega a se envolver com ela, mas desiste do romance para não colocar a causa em risco. No entanto, a índia aparece grávida e o curumim filho dela é todo amores por Cláudio, deixando certa dúvida no ar.
O país na tela
Da mesma forma, a História de Brasil apresentada em Xingu tem heróis e vilões, o lado certo e o lado errado de estar (que muitas vezes se encontram e se misturam, compondo personagens e cenários múltiplos), mas também essa visão se encaixa harmoniosamente à trama, de forma que chega a ser natural escolher a posição do narrador, a versão do narrador. Pegando um desvio por uma via paralela, cabe lembrar que Cao Hamburger é mestre nessa arte de contar sem expor demais, de se posicionar sem soar ridículo e de oferecer as dores mais lancinantes com uma delicadeza que desliza entre o sublime e o amargo.
Esses elementos estão bem presentes em Xingu, mas ainda mais em O ano em que meus pais saíram de férias, lançado em 2006, que conta a história de um garotinho deixado uns tempos com o avô (que morre, obrigando o guri a ficar com um vizinho velho e judeu), enquanto os pais militam nos movimentos de esquerda e de resistência à ditadura militar instalada no Brasil. Se em O ano quem dança com a questão política é o fim da infância do menino e o futebol, no filme de 2012 é a saga dos irmãos e a proteção dos índios e das terras deles no Xingu. Neusa Borges prossegue assim: “Estas boas intenções por parte dos Villas-Boas não bastam para preservar as populações nativas da cobiça econômica e de uma vasta agenda política, que leva especialmente Orlando a tornar-se uma espécie de negociador permanente com os sucessivos governos do país: Getúlio Vargas, Eurico Gaspar Dutra, Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros (no governo de quem se criou o Parque do Xingu), João Goulart e os presidentes militares pós-golpe de 1964”.
Novamente aqui a amargura abre pequenos veios e escorre. As imagens reais da Rodovia Transamazônica, delírio de grandeza dos militares tupiniquins, deixam o espectador incomodado. Envergonhado, na verdade. Não apenas a mata vai sendo rasgada, mas também um tanto assim da dignidade dos povos da floresta e dos brasileiros. Contudo, sempre comedidamente. E pode ser que essa sutileza também afaste certo público, mais afeito a arroubos e exageros, a soluções finais e definitivas. O fato é que se deparar com os limites – porque não há boa vontade, ou boa intenção, ou causa nobre que não seja cerceada por fronteiras, interesses, fraquezas humanas – talvez não faça muito o gosto do espectador nacional, mas é uma escolha delicada e acertada do diretor.
A frase que finaliza o filme – evidentemente não a publicaremos aqui para não estragar a surpresa – é bastante indicativa disso tudo: o valor das ações, das escolhas e dos gestos pode não ser o impedimento total de um mal-feito, mas a força que elas representaram pode ajudar para que o mal inevitável seja, ao menos, menor.