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Educação

Uma era de gelo

By 16/02/2017No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

A percepção de que o mundo vive tempos sombrios e com inclinações visíveis para o embrutecimento e a desumanização tem cada vez mais incomodado e preocupado pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, sobretudo das chamadas Humanidades. O que ainda é complexo entender com mais precisão – daí a necessidade de aprofundar as reflexões e os debates sobre o tema – são as raízes desse processo cruel, que leva as sociedades a querer expulsar os estrangeiros, construir muros, perseguir minorias sociais e inviabilizar ajudas humanitárias, dentre outras tantas intolerâncias. Como, afinal, chegamos a esse estágio e até onde essa dinâmica pode nos conduzir? O sociólogo Giovanni Alves, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) no campus de Marília, interior do estado de São Paulo, dedica-se já de longa data a estudar exatamente esse cenário, que ele chama ironicamente de “Era de gelo”. Alves é também pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e ainda autor de O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo e de Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório, ambos editados pela Boitempo. Nas obras, e no artigo A longa depressão do século 21 e a era da barbárie social – I, publicado recentemente no blog da editora, ele defende que a conjuntura que estamos enfrentando não corresponde apenas a uma crise temporária, que logo será superada. “Trata-se de um longo tempo mesmo, de uma era, em que a economia não consegue se recuperar e não volta a crescer como em momentos anteriores. E as pessoas são pressionadas a tal ponto que passam a buscar soluções individuais, em detrimento do coletivo”, analisa. Os conceitos centrais do raciocínio dele, expressos no título do artigo, são o de ‘longa depressão’ e de ‘barbárie social’, que ele explica e discute em entrevista exclusiva à Revista Giz.


Professor, o senhor defende que, ao contrário do que os jornais alardeiam, não estamos vivendo uma crise econômica em vias de ser superada. Na verdade, estaríamos enfrentando uma longa depressão. O senhor pode identificar quais são os sintomas mais perceptíveis desse cenário?

O conceito de longa depressão surge da releitura de alguns autores americanos e chega até Karl Marx com a Teoria das crises. Para entender o conceito, a gente precisa diferenciar recessão de depressão. Há dois anos o Brasil vive uma recessão. A economia não cresce e as consequências são conhecidas: desemprego, por exemplo. No final de 2014, ainda sob o governo Dilma, o desemprego era de 6% e hoje é de 12%. Em dois anos, dobrou. Fora que se você pesquisar o subemprego e o desemprego oculto, chega a 25% da população economicamente ativa. Agora a depressão é diferente. Para você ter ideia, no capitalismo só vivemos três ciclos de longas depressões. Isso está no artigo, não vou entrar em detalhes sobre os ciclos passados. Nas depressões, o ciclo da economia continua existindo, com períodos de recessão e crescimento, mas a o crescimento nunca consegue ser superior ao período anterior. Essa que vivemos agora se iniciou em na recessão de 2008. A economia norte-americana cresceu apenas 2% naquele ano. Voltou a crescer, mas não superou a recessão. Agora volta a desacelerar, então não vai se recuperar. O Brasil deve crescer em 2017, se formos otimistas, algo em torno de 0,5%, então também não vai dar para recuperar. Em 2018 também deve seguir assim. E não vamos conseguir crescer o que alcançamos no início da década de 2000. O que a gente vive agora não vai superar o que crescemos antes. Existem elementos mais profundos nos indicadores mundiais e tem a dinâmica de um país para o outro, mas, de forma geral, todos os países estão se comportando assim.

E enquanto isso, há pressões de todos os lados, em países diferentes, para cortar gastos e segurar investimentos.

Se a gente falar só da economia do Brasil, teremos um futuro difícil, porque em plena recessão, o governo coloca teto para gastos públicos, corta investimentos e não dá sinais de refresco para a economia. É uma loucura. Em 2017, o Brasil corta 17 bilhões num país em recessão. Isso não sinaliza positivamente para os capitalistas, que ficam sem expectativas de consumo e, portanto, não investem. Outro elemento é a taxa de juros que não ajuda e não cai como deveria para garantir investimentos. Dentro desse consórcio mafioso que tomou de assalto o Palácio do Planalto, tem uma disputa sobre a velocidade de queda da taxa de juros, então as perspectivas não ajudam. Há também elementos como o endividamento das famílias e das empresas, que minam a economia por dentro. Por outro lado, depois que derrubaram a Dilma, a mídia mudou o discurso, está otimista e vende que estamos avançando. Tudo indo bem e perspectivas otimistas. Com este governo e com esta política neoliberal vai ser muito mais difícil que retomemos o crescimento que tivemos na década de 2000. As condições mundiais são muito diferentes agora: protecionismos, crise na Europa. O fato é que não estamos vivendo tempos promissores.

O senhor trata também da barbárie social. Antes de a gente entrar mais a fundo nos impactos da longa depressão na sociedade, gostaria que o senhor também detalhasse o que é esse conceito e qual é a cara da barbárie social.

Vou tratar desse conceito em mais dois artigos, porque o assunto é longo e complicado, mas barbárie social é um conceito bem específico. Se caracteriza por um processo de manipulação social extrema, que provoca a degradação da pessoa humana que trabalha. Nesse cenário econômico, a gente aprofunda a questão do estranhamento, que é um conceito marxista e lukacsiano e que diz respeito à deformação da personalidade humana, da capacidade de lidar consigo mesmo e com o mundo, dando respostas ao mundo exterior, ao que ocorre. A gente que estuda o trabalho, percebe, por exemplo, o adoecimento, o adoecimento laboral. Entre as pessoas que trabalham, os professores sofrem muito isso há muito tempo, sofrem com a desvalorização do trabalho e das perspectivas. Tudo isso tem a ver com as respostas que as pessoas dão, com a falta de perspectivas e com uma sociedade mais anestesiada – as ruas poderiam estar mais cheias contra os projetos que tomam de assalto os direitos e a previdência e contra a corrupção. O governo Temer é um consórcio de corruptos. Isso passa pelos mais ricos e pelos mais pobres. Estão todos perplexos e anestesiados. Os mais pobres, o proletariado, têm uma dinâmica específica. Eles nunca foram organizados. Nem Lula e nem o PT conseguiram isso. Mas Lula sabia, quando o PT se tornou o partido dos pobres, que era preciso dar subsídios sociais para tirar as pessoas da miséria, valorizar salário mínimo, elevar as pessoas à dignidade, levar os filhos dos pobres à universidade. Tudo isso para garantir que as pessoas tenham um mínimo de consciência de si e do mundo. Mas numa situação de desemprego, crise social e etc, elas buscam saídas individuais e é muito difícil que se organizem e saiam às ruas para buscar soluções. E o Brasil é um pais de miseráveis. 70% da população vive com até 1,5 salário mínimo. E essas pessoas precisam, antes de tudo, enfrentar o dia-a-dia e sobreviver. E elas é que consomem as informações da TV Globo. Estão perplexas, ficando desempregadas e não sabem o que está acontecendo no país, são desinformadas. A classe média já tem uma parte mais instruída, mas não desenvolveu um pensamento coletivo, crescemos a cidadania pelo consumo, mas não pelo pensamento de classe. Podemos dizer que, mesmo nos sindicatos, o déficit de consciência de classe em relação aos anos 1980 é bem grande. O Brasil vive uma situação curiosa. No governo Collor, mesmo com uma crise social, havia maior reconhecimento da institucionalidade política. Hoje não.

Então para a gente não perder de vista e aprofundar, as características da barbárie social são adoecimento, perda da consciência de classe…

Saídas individuais e manipulação extrema por parte dos meios de comunicação. Temos uma luta cotidiana de contra-informação. Nossa mídia não existe para informar. A grande mídia que pertence a poucas famílias não informa, desinforma. Essa pouca informação com pouca consciência de si e do mundo deforma a pessoa humana, degrada. Nos locais de trabalho, a pressão laboral cresce a olhos vistos. O modelo de pressão aliado à tecnologia que toma o lugar das pessoas, a gente chama de modelo toyotista, busca metas individuais e desempenho individual, mesmo que o trabalho seja um processo de grupo. É uma cultura organizacional que se caracteriza pela gestão por stress do trabalhador. É uma lógica presente nas escolas, repartições públicas, empresas, etc. Uma forma de pressão e manipulação extrema da subjetividade. A própria política sofre com essa falta de consciência. Ela perde a razão de ser, porque ela seria a saída via coletivo.

A consequência são as explosões e revoltas sociais difusas?

Como as que acontecem agora no Espírito Santo. Um grupo se revolta e busca resolver seus próprios problemas. A sociedade fica acuada, com medo. A saída individual é o próprio caos social. E ela está no trabalho, nas situações cotidianas, no assédio moral, as organizações gerenciam isso. A violência se dá nas relações cotidianas, nas escolas, na competitividade, com cultura neoliberal muito arraigada. E os governos Lula e Dilma não conseguiram combater essa dinâmica. Já estamos na era da barbárie social. E é importante identificarmos esses fenômenos sociais nos quais já estamos para nomear e saber o que vamos fazer com isso, como vamos enfrentar.

Se uma das características da barbárie social é a solução individual para problemas sociais, a opção por usar a política para mediar projetos de futuro está descartada, ou então muito tímida e escondida. Diante disso, como devem agir as entidades de classe, os sindicatos, já que as pessoas nem se consideram como parte de uma categoria?

A crise do sindicalismo vem de um certo tempo, não é de agora, e os governos Lula e Dilma só aprofundaram isso. É diferente dos anos 1980, quando os sindicatos eram referência de lutas sociais, entravam na briga por questões que iam além dos interesses daquela classe especificamente. Lutavam sim por melhores salários e condições de trabalho, mas se envolviam em causas maiores. Tinha um valor moral naquilo. Dos anos 1990, os sindicatos perderam muito, pense no sindicato dos bancários, ou dos metalúrgicos. O de professores do ensino público até cresceu, mas de forma geral, a base mudou muito, porque o governo age para fragmentar. Tem estratégias para dividir, na forma da contratação, avaliação, remuneração, etc, que dificultam a mobilização. Os sindicatos têm um valor fundamental, por ser uma representação da classe. Mas na era da barbárie social, é importante nominar a natureza do nosso tempo histórico. A luta de classes vai determinar as condições históricas, é o que Marx fala: o homem faz a história, mas sob determinadas condições. Não dá para achar que vamos fazer história como em 1985. Estamos em 2017, sob uma longa depressão do capitalismo mundial, economia global e sob uma era de barbárie social. E qual é a questão central agora? A questão da formação.

O papel dos sindicatos, nesse cenário, seria então formar o trabalhador?

É uma coisa que os sindicatos nunca levaram muito a sério. Não só formação para o mundo do trabalho, mas formação política no sentido humano. Formar o ser humano que trabalha, que pertence a uma classe social, a dos proletários, que tem vínculo com um processo histórico de emancipação humana. É preciso resgatar esses valores que dizem respeito às pessoas. Temos que mudar o modo da formação, que não é doutrinação política e ideológica. Os sindicatos têm que ser mais criativos, que nunca foi uma característica forte dos sindicatos. A formação de classe, da consciência de classe, é um elemento político e humano. A luta do trabalhador é pela emancipação humana, porque a barbárie é a desumanização. A sociedade está mais competitiva, menos empática, mais violenta. Precisamos resgatar o valor humano e a emancipação, que se dá pela reflexão nos sindicatos, mas via cultura, arte, associação com outros movimentos sociais. Sei das dificuldades financeiras, mas é preciso envolver outras categorias e renovar o pensamento. A juventude nem sabe que existe o sindicato e muito menos que ele é contraponto à cultura neoliberal, que faz adoecer os jovens. Vivem na cultura da barbárie social. O antídoto é a criação da consciência de classe, com formação política e sindical, para escapar dessa que chamamos de “era de gelo”. Mas não vá pensar que vamos voltar à era dourada dos anos 2000.

Então qual seria uma agenda progressista e preocupada com a dignidade do trabalhador para o futuro próximo?

Além da formação da consciência de classe, é lutarmos pela democracia. A democracia brasileira. O Brasil vive uma ditadura e precisamos buscar o Estado Democrático de Direito. Isso passa por uma profunda reforma das instituições e dos poderes. Acho que pode até ter eleição em 2018, mas o próximo governo estará sob uma República deformada. O golpe corrompeu a República. Nesse momento, o próprio Lula chegou a falar isso, só uma assembleia constituinte específica para realmente resgatar o que perdemos em 2016. O Congresso Nacional traz um sistema político deformado e os que estão lá não vão mudar isso. O Congresso de 2018 pode não ser mais à esquerda, pode ser pior que esse que está aí. As pessoas não entendem que era é uma temporalidade mais longa, mais extensa. Temos que ativar esse medo. O começo é resgatar os poderes da República. Depois, de forma mais imediata, é fazer em forma de cartilha mesmo, cartilhas sobre o que é a reforma da previdência, o que é a perda de direitos, a terceirização, etc. quem vai sofrer com isso não somos nós, são os jovens de 18, 20 anos, que vão herdar um Brasil dominado pela barbárie social institucionalizada. Os sindicatos têm que chegar nesse jovem. E têm que falar com a sociedade. Hoje falam para as suas bases, mas precisam ampliar isso, fazer trabalho intersindical, e fazer uma formação política. O conhecimento melhora as condições da luta. A gente tem direito a ter sonhos e não ilusões. Sonho leva para frente, ilusão só deprime. Não tem outra saída senão o esclarecimento. Se não investir na consciência vai investir em quê? Temos o pessimismo da razão, nessa era de gelo que vivemos, mas tem que ter o otimismo da vontade.


Leitura ampliada:

► A burguesia brasileira jamais admitiu a CLT (Ruy Braga, da USP, em Carta Capital)

► A longa depressão do século XXI e a era da barbárie social, parte I (Giovanni Alves, Blog da Boitempo)

► A PEC 241, a contrareforma neoliberal e a tragédia de Prometeu (Giovanni Alves, Blog da Boitempo)

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