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Cultura

Lá se vai a democracia

By 15/09/2016No Comments

* Entrevista feita por Elisa Marconi e Francisco Bicudo com o autor Jessé Souza

/>Na última semana de agosto, quando o Senado Federal votava definitivamente o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, chegava às prateleiras das livrarias A radiografia do golpe: entenda como e por que você foi enganado, mais recente livro do sociólogo Jessé Souza. É a primeira obra de natureza científica que analisa a saída de Dilma do governo. Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), o autor é taxativo em afirmar que houve uma ruptura institucional, capitaneada pela imprensa, pelo Congresso Nacional e pelo Judiciário, todos trabalhando para atender a exigências e projetos das elites e do capital financeiro.

No livro, o pesquisador conta que o movimento para derrubar a presidenta começou, na verdade, nas jornadas de junho de 2013. Naquele momento, a classe média já estava muito incomodada com a ascensão dos mais pobres e sentia-se ameaçada pelas políticas sociais e de distribuição de renda em curso. Decidiu ir às ruas, mas não sabia bem o que pedir e como pedir, “já que militar contra a melhoria da qualidade de vida dos menos favorecidos não pega bem”, lembra Souza. Já a partir das primeiras páginas do livro, o sociólogo analisa como o discurso do ódio irracional foi rapidamente ressignificado, para transformar-se numa narrativa racional e defensável, mesmo que apoiada em teses e argumentos frágeis. “O discurso da moralização e da limpeza na corrupção se espalhou e respondeu a essa angústia que as classes mais altas sentiam”.

No entanto, Souza acredita que essa etapa da história ainda não terminou. “O que os brasileiros ainda não perceberam, ou começam a perceber agora, é que sofremos um assalto na parte mais valiosa da Democracia: a soberania popular. Sem que a soberania seja reconhecida, não há razão para obedecer o sistema democrático”, provoca.

A Revista Giz conversou com o professor Jessé de Souza na segunda-feira, 05 de setembro, dia seguinte à manifestação que reuniu 100 mil paulistanos sob a bandeira do “Fora Temer” e anunciando o grito das “Diretas Já”. Os melhores trechos dessa conversa, você acompanha a seguir.


Professor, numa conjuntura de ânimos acirrados e de intensa polarização política e ideológica, quais as reações que o livro tem provocado?

As manifestações que tenho recebido me deixam muito contente, porque parece que o livro está sendo bem compreendido. As pessoas leem e, mesmo com a linguagem científica que procurei usar, elas entendem e gostam. Acho importante falar disso. Optei pela linguagem científica porque é ela quem convence as pessoas. Essa maneira de abordar o problema, o objeto, com maior distanciamento, analisando seu contexto e, principalmente, despersonalizando a análise, funciona muito bem. Quando a gente investiga não as pessoas, mas o que há por trás delas, a gente pode tratar não das intenções – porque não se faz ciência com elas –, mas dos comportamentos, esses sim bons objetos de estudo.

E, ao terminar de ler seu ‘Radiografia do golpe’, o leitor se convence mesmo de que houve uma ruptura institucional grave? Como o senhor defende essa ideia na obra?

Ah, eu espero que sim. A gente pode chamar de golpe, porque houve, de fato, inegavelmente, uma articulação de fatores, uma construção não espontânea. E houve, muito fortemente, um incômodo de uma porção expressiva da classe média pela ascensão dos pobres. As piores opiniões dessa parcela da população não mudaram, o que mudou foi o contexto, que agora permite falar abertamente o que antes era dito a boca miúda. O contexto que mudou foi o próprio golpe.

Poderia explicar com mais detalhes essa ideia? O que não era dito e que agora pode ser expressado publicamente, sem constrangimentos?

Antes, detonar publicamente a melhora da qualidade de vida das camadas mais pobres era inaceitável. No entanto, à medida que essa classe média percebeu que os pobres estavam chegando mais perto do que realmente importa, a distribuição da riqueza secularmente concentrada, aí a elite começou a vociferar, a perspectiva tornou-se insuportável a essa classe. Veja que estamos falando de medo irracional de dividir, como se houvesse uma grande ameaça, e partiram para o grito, refutando a melhora da qualidade de vida dos menos favorecidos. Podiam até pensar isso e comentar privadamente. Hoje, essas críticas são públicas, sem nenhum pudor. Isso revelou como nossa classe média é formada por pessoas com a mesma mentalidade dos senhores de escravos, não evoluiu nada, não aceita o diferente, é patriarcal ao extremo e defende a dominação desenfreada.

E por que o senhor afirma que a chave para que a classe média passasse a escancarar seu medo irracional com um discurso da moralização e da limpeza foi o próprio golpe?

Porque esse pensamento contra a melhora mínima nas condições de vida dos mais pobres é socialmente desaconselhável, não pega bem. Assim, assustada com a proximidade dos pobres das suas riquezas, a classe média encontrou um mecanismo para reduzir os benefícios e afastar novamente os pobres. O golpe se dá com a construção de um discurso moralizador e, a partir dele, a chegada a mecanismos efetivos, ainda que pontuais, de suspensão de direitos para retirar um governo legitimamente eleito pelo povo.

Pensando no roteiro… como se deu esse processo?

Começou em 2013, com as manifestações de junho. A primeira coisa que precisamos olhar é que, desde a primeira passeata, aquele foi um movimento com potencial facilmente manipulável. Tinha, desde o início, uma classe média muito incomodada e que já repudiava o povo. Ela ainda não tinha bem a pauta e não sabia bem como pedir o que desejava. No entanto, com a força da mídia – que representa fortemente essa classe – o discurso da moralização e da limpeza na corrupção rapidamente se espalhou e rapidamente respondeu a essa angústia que as classes mais altas sentiam. Colou e caiu como uma luva. E, à medida em que ia sendo repetido, mais adeptos ganhava.

Foi assim, na sua análise, que a elite acuada ganhou seu discurso racional e convincente.

Exatamente. Racional, convincente e liberador de medidas não muito ortodoxas, meio duvidosas, mas que serviriam de atalho para atender à demanda de retirada de um governo que é símbolo do atendimento aos mais pobres. O Brasil já fez isso outras vezes e também funcionou.

Para marcar bem os atores sociais – quando o senhor fala da classe média incomodada, não está falando só dos ricos dos Jardins que se recusam a dividir o aeroporto com suas empregadas domésticas, não é? Há outras engrenagens que moveram essa máquina?

É também dos ricos dos Jardins, mas me refiro ao grande capital, aos homens e mulheres que representam o dinheiro mesmo, o grande dinheiro desse país. O empresariado e o mercado financeiro, que é a linha de frente do grande capital. Essa parcela não suporta a ideia de ter sua riqueza ameaçada. Com o discurso da moralização, de passar o Brasil a limpo, transformam o ódio canalizado, o medo irracional e as falas sem vergonha, num discurso muito bem construído e aceito da corrupção seletiva, cheio de dramatizações que tornam essa conversa em espetáculos reais.

Ou seja, junto com o discurso reverberado pela imprensa e pelas mídias sociais, vêm as prisões, as operações policiais, os julgamentos, as grandes falas nas tribunas.

Exatamente, grandes farsas, teatros burlescos, que assaltam a soberania popular, que é a base da Democracia. Junto com a corrupção seletiva, essa parcela da população fala sempre em saneamento do Estado. No entanto, como os ricos deste país são “intaxáveis”, não se consegue fazer com que paguem mais por suas fortunas, o equilíbrio do Estado é conseguido às custas de ajuste fiscal basicamente na educação e na saúde. A narrativa conservadora da meritocracia explode nesse momento e os mais pobres que precisam desse apoio ficam sem o subsídio do Estado.

O Judiciário e o Parlamento também foram protagonistas do golpe?

Sim. A consolidação do golpe se faz nessas duas instâncias. Elas tornam viável o projeto de derrubada do governo, mas com uma roupagem muito democrática. Exatamente como em outros momentos históricos do Brasil. Aliás, temos grande experiência com isso. E é por isso que afirmo que as pessoas estão sendo feitas de bobas, estão sendo enganadas. O que as pessoas não perceberam ainda nesse processo todo é que se trata de um assalto à soberania popular. A retirada da presidente Dilma como foi feita é um engodo, o povo está sendo ludibriado, foi um pretexto parlamentar. E o fato de terem mantido os direitos da presidente só revela ainda mais o caráter de farsa dessa história toda.

O senhor acha que talvez as pessoas ainda não tenham percebido que o povo brasileiro foi assaltado em seu direito máximo de ser o soberano da Democracia?

Exatamente isso. Talvez agora, depois da saída mesmo da presidente e com os movimentos que estão começando a pipocar [no dia anterior à entrevista com o sociólogo Jessé de Souza à Revista Giz, uma manifestação com cerca de 100 mil pessoas em São Paulo pedia a saída do presidente Temer e a convocação de eleições diretas] fique tudo mais claro. Por que as pessoas aceitam a Democracia? Porque reconhecem ali a soberania popular. Está no poder quem o povo quer que esteja no poder. Sem isso não há obediência e o país entra em colapso, guerra civil. A derrubada da presidente Dilma significou um ataque justamente à soberania popular. O risco é que a população não legitime o governo que se instalou, porque ele não é fruto da soberania popular.

E a participação do Congresso Nacional nesse processo?

Nunca tivemos um Congresso tão vendido para o capital financeiro, para o grande dinheiro. Maior e mais forte que as bancadas da bola, da bíblia, da bala é o grupo comprado pelo dinheiro, que o representa e trabalha para ele. É esse grupo que ver um governo mais popular bem longe e defenestrado. É a economia, portanto, o início de tudo e a chave para entender esse momento que vivemos. A economia não é um fim nela mesma, mas o discurso que vem dela traz a interpretação que vai ser seguida e, portanto, o caminho que se vai adotar. E o que está em jogo agora é justamente essa guerra de narrativas, de discursos. Qual é a versão que vai entrar para a História?

A questão é que, se o capital financeiro tem porta-vozes que o defendem (a Justiça, o Parlamento, a mídia), a sociedade está distante desses canais e dessas estruturas. Então quem vai defendê-la e representá-la quando ela  perceber que foi subtraída?

Aí entram os movimentos de rua e a produção de conhecimento a respeito desse tempo. É o papel dos professores e dos intelectuais produzir subsídios para a reflexão e produzir narrativas para a gente não esquecer.

O senhor acredita que os movimentos sociais organizados, mais ou menos pulverizados pelo Brasil, têm alguma força para reverter a queda da presidenta Dilma? Há alguma possibilidade de resgate da democracia?

Quem se sente ceifado de sua soberania não pode sair das ruas. Se ficar claro que se trata de um governo não confiável, pode ser que haja alguma chance. Um fator inesperado que vem se mostrando é uma certa inabilidade política do presidente Temer, que vem com uma retórica agressiva e reativa, sem ardil político, o que não o ajuda muito. Além disso, o pedido que vem começando a ganhar força, eleições diretas já, surge como opção, como solução, e pode crescer.

O senhor se arrisca a imaginar o que vem por aí?

De tudo, o que é possível dizer é que entramos num tempo de instabilidade. Não era o esperado por quem patrocinou o golpe, mas é o que vem se mostrando. Como as forças da sociedade vão aproveitar essas características, aí só aguardando para ver.

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