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Cultura

A mais triste Nação

By 21/05/2014No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Rio de Janeiro, Guarujá, Foz do Iguaçu, Barueri, Araraquara e Campo Grande são algumas das cidades que registraram recentemente casos de linchamentos, em manifestações violentíssimas de intolerância e de um explosivo desejo de fazer ‘justiça’ com as próprias mãos (melhor escrever justiçamento) que assustaram o Brasil (ao menos sua dimensão civilizada) e ajudam a compor um mosaico social preocupante.

Essa forma de violência, vale reconhecer, não é nova no país e, de tempos em tempos, vem à tona com mais evidência, principalmente em locais onde o Estado e as instituições da Justiça e da polícia não chegam, são frágeis ou não têm a presença percebida pela população.

No entanto, a situação atual traz diferenças fundamentais em relação a outros casos de linchamento já ocorridos no Brasil. “Há dois dados novos que precisam ser avaliados nesses registros mais recentes: o papel da internet na produção e difusão das informações e a manifestação de alguns formadores de opinião legitimando atitudes que desrespeitam os direitos civis mais básicos”, avalia o sociólogo Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, coordenador da Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

A Revista Giz conversou com o professor, que também é integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e a seguir, você acompanha os melhores trechos dessa entrevista.

Nas últimas semanas temos visto uma quantidade espantosa de notícias sobre linchamentos ou tentativas de linchamento em várias cidades do Brasil. Talvez o caso do Guarujá tenha aberto as comportas dessa forma de violência. A pergunta que fazemos é: aumentou a visibilidade midiática ou foram os crimes mesmo que cresceram?

Não temos ainda nenhum estudo quantitativo que mostre se aumentou ou se permanece estável o número de linchamentos. O que temos é uma divulgação maior e, com certeza, uma mudança nas características desses linchamentos. Os linchamentos no Brasil historicamente têm acontecido com destaque – tem um grupo que estuda isso há bastante tempo, no Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo – na grande São Paulo e em Salvador e no entorno da capital baiana. Então isso não é nada novo e acontece com diferentes características, principalmente onde acontecem crimes muito chocantes e as pessoas se mobilizam naquele local, naquele momento; e também em lugares onde há ausência do poder público, especialmente da polícia, que é o órgão do Estado que age diretamente nisso, ou onde as pessoas não confiam na polícia, e essas pessoas acreditam que podem resolver com as próprias mãos.

O desafio colocado, principalmente para professores, é de formar cidadãos que sejam capazes de filtrar informação, porque ninguém vai fazer isso por eles. Então, além da capacidade de leitura e de acesso a essa informação, temos de ter a preocupação que as pessoas tenham reflexão crítica e senso crítico, e julgar valorativamente certas coisas. E isso é papel da escola, me parece.

Mas os casos atuais apresentam algumas novidades, não?

Sim, especialmente nesse do Guarujá, a internet aparece. A mobilização das pessoas em torno da rede a partir de um boato. Essa situação merece estudo, porque hoje o acesso à informação está muito facilitado, democratizado, mas também a produção da informação – muitas vezes sem a checagem, que é a característica dos veículos tradicionais da imprensa. Então temos que ter um cuidado com isso e merece uma reflexão maior. E de outro lado, mais um dado novo no contexto atual, é a manifestação de alguns formadores de opinião incentivando, incitando ou legitimando essas condutas, na medida em que amplificam uma crítica ao Estado, às instituições, à impunidade, que também não é uma coisa nova, já vem de algum tempo, mas subiu o tom a partir de um dado momento. Alguns jornalistas, em especial a [Rachel] Sherazade, que se manifestou favoravelmente à justiça com as próprias mãos naquele caso no Rio de Janeiro, quando amarraram um jovem que havia praticado furtos. E me parece que há aí um elemento novo, que é a facilidade da disseminação de um discurso do ódio contra o crime, contra a diferença, contra o outro, que acaba sendo capitalizado nesses eventos contra pessoas que representam essa ameaça que vem sendo construída simbolicamente.

O senhor acredita que a população que frequenta esses sites, faz comentários favoráveis às respostas violentas está mais permissiva em relação ao desrespeito dos direitos civis?

Não, eu não afirmaria isso. A relação e o impacto das redes sociais com os comportamentos é um assunto muito importante e delicado e tem uma série de pesquisadores estudando isso. Não é minha especialidade, mas me parece que as coisas estão mudando de forma muito rápida nesse âmbito. Temos uma grande ágora de um debate que circula. Antes as pessoas estavam mais isoladas, mais atomizadas e mais submetidas a meios de comunicação que monopolizavam os acessos à informação. Hoje há uma democratização, há redes, que acabam produzindo também o efeito de uma tribalização, porque as pessoas acabam se reunindo com os que acham semelhantes, mesmo através da internet. E a tribalização muitas vezes se dá no discurso contra o outro, contra o diferente. E os órgãos de controle também têm usado a rede como instrumento de controle. São coisas novas e promovem essa possibilidade do discurso contra o outro e temos de ter cuidado diante do fenômeno. O desafio colocado, principalmente para professores, é de formar cidadãos que sejam capazes de filtrar informação, porque ninguém vai fazer isso por eles. Então, além da capacidade de leitura e de acesso a essa informação, temos de ter a preocupação que as pessoas tenham reflexão crítica e senso crítico, e julgar valorativamente certas coisas. E isso é papel da escola, me parece.

Aí a gente entra na discussão do que é possível fazer e como trazer para o campo da cidadania com essa ferramenta maravilhosa que é a internet.

A escola tem um papel fundamental, a família também. Os pais devem acompanhar o que as crianças e jovens estão acessando e comentando. E a escola também precisa discutir isso, trazer para a sala de aula e dos professores. O debate sobre o acesso à informação é fundamental, apesar de novo. A política precisa entender a escola como um formador dessa consciência nesse novo universo.

Historicamente o Estado no Brasil não se construiu para a garantia da cidadania. A trajetória do Estado brasileiro é de clientelismo, patrimonialismo, estar a serviço de interesses particulares e as pessoas ainda percebem desse jeito, embora muita coisa tenha mudado. Os vinte e poucos anos de Democracia permitiram enfrentar algumas dessas mazelas, mas não se criou uma cultura democrática no país que se perceba como participante do processo desse Estado.

Chegamos no segundo aspecto que o senhor levantou: a postura de formadores de opinião incitando ou legitimando atitudes violentas, seja contra homossexuais, nordestinos, etc. Não é inconcebível que num país com garantia dos direitos civis – como o que se está querendo construir – essas atitudes violentas de desrespeito aos direitos mais básicos sejam estimuladas?

Me parece, nesse ponto, por um lado, o discurso da impunidade, a ideia de que o sistema de Segurança Pública e de Justiça Criminal não funcionam, e que os crimes acontecem crescem e não há um acompanhamento disso pelos órgãos responsáveis, é um discurso que há tempos vem sendo disseminado. Há um componente de realidade – há mesmo altas taxas de criminalidade e violência no Brasil –, mas não é novo, houve uma estabilização na última década, algumas coisas até diminuíram. Houve uma melhoria do serviço das polícias, em alguns estados isso é particularmente visível, maior fiscalização e debate sobre a ação das polícias, um aumento da preocupação da sociedade civil em relação às polícias. Tem coisas sendo feitas, mas talvez fosse necessária uma reforma mais estrutural dos mecanismos de controle do crime, da polícia especialmente, mas esse é um debate que deve ser pensado com muita racionalidade, sem emoção e a longo prazo. Mas isso vem gerando um discurso sobre a impunidade que, nos últimos meses ou no último ano, acabou sendo um elemento entre outros para a constituição de um sentimento de que no Brasil as coisas não vão bem. O que não é de todo verdadeiro. Desigualdade social diminuiu, as instituições vêm tentando melhorar, mesmo as polícias, o Ministério Público, o STF. Então se constrói esse discurso de que a violência e a corrupção aumentam e que não se faz nada, que não corresponde à realidade, mas de alguma forma isso foi estimulado por uma série de motivos, inclusive políticos, e acabou chegando à dimensão do cotidiano, dos roubos do delito. O discurso acabou deslegitimando a ação da polícia, do Estado. E o sistema penal precisa da confiança da sociedade. Ele é moroso, difícil de decifrar, mas isso é necessário porque, numa sociedade civilizada, as pessoas não podem resolver as coisas com as próprias mãos. Para isso tem de ter confiança na polícia e na Justiça e me parece que essa confiança foi minada. E, veja, não só por problemas que elas têm mesmo, mas também por uma disputa mais ampla que se dá no Brasil sobre as relações entre sociedade e Estado.

O debate sobre o acesso à informação é fundamental, apesar de novo. A política precisa entender a escola como um formador dessa consciência nesse novo universo.

É possível a gente dizer que, por conta desse discurso crescente, está acontecendo uma descrença nas instituições republicanas e democráticas do país?

Sim e esse é o ponto chave. A confiança na Democracia vem, em grande parte, das pessoas perceberem que com a Democracia elas vivem melhor e as coisas funcionam melhor com a participação de todos. Isso se constrói num processo histórico que não é curto e o Brasil tem uma pequena experiência democrática. A polarização política, governo versus oposição, nos últimos tempos, fez subir muito o tom das críticas e acabou produzindo esse fenômeno. Em vez de desgastar o governo, o tom das críticas por alguns órgãos, especialmente da grande imprensa, acabou por deslegitimar a confiança das pessoas na Democracia, nos órgãos do Estado. E, por mais que se diga que as coisas não estão tão ruins, pelo contrário, houve melhorias e precisamos continuar construindo uma Democracia que alcance também a vida cotidiana das pessoas, me parece que isso vem sendo minado por esse discurso que é muito perigoso.

E que rapidamente encontra reverberação na sociedade, não é? Os brasileiros são muito abertos a esse discurso, professor?

São sim, porque historicamente o Estado no Brasil não se construiu para a garantia da cidadania. A trajetória do Estado brasileiro é de clientelismo, patrimonialismo, estar a serviço de interesses particulares e as pessoas ainda percebem desse jeito, embora muita coisa tenha mudado. Os vinte e poucos anos de Democracia permitiram enfrentar algumas dessas mazelas, mas não se criou uma cultura democrática no país que se perceba como participante do processo desse Estado. Junto com isso tem a nossa impaciência e, junto com ela, ou alimentando ela, a demora do Brasil em produzir determinadas reformas. As pessoas acreditavam que com a volta da Democracia as coisas iam mudar, depois acreditavam que com a estabilização da moeda as coisas iam mudar e depois com a ascensão da esquerda ao poder as coisas iam mudar. As coisas até vêm mudando, mas muito mais lentamente do que as pessoas gostariam. Isso pode provocar uma desconexão entre o que as pessoas esperam e o que o Estado pode oferecer em relação a vários temas. Mas para a segurança pública talvez seja mais grave, porque gera essa sensação de insatisfação, de medo e insegurança e isso abre espaço para esses linchamentos que têm ocorrido.

Professor, e como se combate, em curto prazo, uma cultura de violência?

Primeiro que todos nós, formadores de opinião, pesquisadores, professores, gente que atua de alguma maneira nesse campo, que tenhamos responsabilidade ao discutir esse tema para repudiar as manifestações que estimulam alternativas violentas de resolução com as próprias mãos. Isso não é justiça, portanto não se pode falar justiça com as próprias mãos. É um comportamento de turba que age sem se preocupar se a pessoa é culpada, se houve defesa, se a acusação é verdadeira. Temos de ter claro que é um discurso perigoso e que há a responsabilidade dessas pessoas sobre esses fatos. Outra coisa é que devemos apoiar de alguma maneira as instituições democráticas, mas num sentido crítico. E, depois, é preciso fazer as reformas que fazem a democracia operar na vida cotidiana das pessoas.

 

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