* Por Silvia Barbara, Francisco Bicudo e José Salvador Faro
Ricardo Gebrim, 57 anos, advogado especialista na área trabalhista e sindical, formou-se em Direito na PUC-SP em 1987. Integra a direção nacional da Consulta Popular, organização voltada para a construção de um projeto para o Brasil. Define-se como um marxista mas reconhece a influência do Humanismo Cristão na sua formação filosófica e na sua praxis política. Desde 1991, atua como advogado do SINPRO-SP e na FEPESP desde a fundação da entidade. Na entrevista concedida à GIZ fica evidente sua preocupação em encontrar caminhos para a superação daquilo que define como “uma derrota profunda das forças democráticas e populares em razão da consumação de um golpe de novo tipo”.
Quais as razões que podem ajudar a explicar o atual protagonismo político do Poder Judiciário?
O Poder Judiciário, como operador do Direito, como carreira, sempre foi, durante a primeira metade do século passado, um espaço totalmente ocupado pelas classes dominantes. A partir dos anos 1950, esse cenário muda um pouco, com a chegada das classes médias altas que, ideologicamente, mostraram-se capazes de compor e de fazer acordos, a depender da conjuntura. Nos anos 1990, vivemos a primeira ofensiva neoliberal, que resulta num evidente enfraquecimento da classe trabalhadora, na redução mundial da massa salarial. Foi uma onda ideologicamente muito forte, que se impôs no imaginário, como narrativa, enfraquecendo esperanças e a perspectiva de utopia. E deixou marcas profundas na jurisprudência, como a lei de responsabilidade fiscal e as privatizações, por exemplo, já que, nessa mesma época, uma base conservadora formada também nas universidades começou a chegar às carreiras de Estado e, por consequência, à magistratura. Esse é o início do processo.
Mas essa onda foi interrompida por governos nacionalistas e progressistas de intensidades e matrizes diversas, a partir dos anos 2000.
A questão é que a onda neoliberal dos anos 90 foi forte, contaminou todo o nosso continente. Vários presidentes, do Brasil ao Uruguai, da Argentina ao Paraguai, do Chile ao Peru, passando também pelos países da América Central, realizaram e colocaram em prática o mesmo projeto, o mesmo programa, sustentado pelo tripé superávit primário, metas de inflação e câmbio flutuante. Essa foi a estrutura do Plano Real, que, como disse, apareceu em todos os países. Foi uma estrutura cristalizada nos anos 90, uma legislação de blindagem. A segunda ofensiva, que estamos vivendo, tem certamente naturezas distintas, mas acopla-se, ideologicamente e em termos de mecanismos de funcionamento, à primeira.
O que se fez foi obrigar os governos progressistas a conviver com essa blindagem?
No final dos anos 90, há um profundo desgaste popular do projeto neoliberal. Surge uma janela de oportunidades e hiato para a eleição e atuação de governos progressistas. O PT ganha em 2002, talvez no pior momento, entendam o que estou dizendo, se considerarmos a conjuntura possível para mudanças, já que o movimento sindical vivia um cenário de refluxo, quando poucas greves, por exemplo, termômetro importante da atuação do movimento sindical, foram realizadas. O Lula ganha com um discurso de conciliação, sem maioria parlamentar e enfrentando a blindagem da legislação. Essa vitória só foi efetivamente possível porque foram construídas alianças com parcelas da burguesia, porque houve uma parcela que ganhou muito com as privatizações, mas teve outra que sofreu, que foi alijada desses ganhos, como os setores naval, do agronegócio e das escolas privadas, que são exatamente os que vão alcançar protagonismo nos anos de governo do PT. Só que foi uma aliança tácita, não explícita. O problema é que, com isso, o PT abandonou um projeto de poder. Limitou-se a manter o governo.
Quais foram os resultados dessa acomodação?
Foram quatro. Primeiro, as massas não foram politizadas. A população menos favorecida, mais desorganizada, conheceu significativos avanços e benefícios durante os últimos anos, mas não foi capaz de perceber que essas conquistas, calcadas no consumo, eram resultado de ações políticas. Em segundo lugar, não foram feitos esforços para mudar as condições anteriores. Qual foi a estratégia, por exemplo, para tensionar e romper com aquelas blindagens todas? Em outros países que ousaram radicalizar o processo, como Venezuela e Argentina, tivemos o enfrentamento com o monopólio dos meios de comunicação. Aqui, não. A única vez em que algo dessa natureza apareceu foi em junho de 2013, quando a presidenta Dilma propôs o plebiscito para a Constituinte, ideia que foi implodida e abandonada em poucas horas. Não se concretizou nenhum tipo de enfrentamento. Porque não se tinha estratégia. Em terceiro lugar, e acho que é a mais difícil, tem a questão das doações empresarias para campanhas eleitorais. Quando você aceita esse jogo, fica exposto, mergulha num flanco que dá margem para a atuação do inimigo, que faz a mesma coisa, mas vai jogar a conta nas suas contas. Isso abalou o patrimônio moral do partido. Por fim, temos as classes médias tradicionais, que, de fato, objetivamente, foram as que menos ganharam. Surgiu uma insatisfação difusa, abriram-se condições para que fosse disputada. Mas essa percepção demorou a acontecer. Já era tarde.
Assim chegamos à disputadíssima eleição presidencial de 2014.
Acho que os governos progressistas foram janelas momentâneas. E, sim, as eleições de 2014 foram acirradíssimas, disputas ideológicas e programáticas intensas, decidida por militantes nas ruas. E, depois de eleito, o governo comete o erro do ajuste fiscal. Quando dá essa guinada, é plenamente possível falar em estelionato eleitoral. As bases sociais ficaram perdidas, não se sentiram mais representadas. As bases foram perdidas. Tentar atender o mercado financeiro foi um erro político fatal. Essa foi uma opção da Dilma e do círculo político próximo dela. Havia quem alertasse, quem dissesse que era perigoso, não ia dar certo. Mas ela bancou essa direção. Estavam abertas as brechas para o golpe, que é um golpe de novo tipo, já tinha sido testado em Honduras, no Paraguai, na Ucrânia. Existe um roteiro. Não precisa mais das Forças Armadas, porque resulta de uma harmônica e afinada aliança entre Poder Judiciário, Polícia Federal e Ministério Público, além dos industriais retrógrados e da mídia. Acho que a História ainda vai explicar melhor a participação dos Estados Unidos no processo. O fato é que é muito difícil saber ainda quanto desse golpe é resultado de conspiração e quanto dele é resultado de alinhamento e articulação ideológicas. Agora, é possível afirma que só pudemos entrar nessa aventura porque as carreiras de Estado, incluindo o Judiciário, são hoje carreiras conservadoras.
Como especificamente o STF se envolve nesse roteiro do golpe?
Ideologicamente, é difícil saber se o Supremo foi cooptado. Mas o golpe vai deixando rastros e pistas dessa relação. Liliana Ayalde, que já tinha participado de missões diplomáticas no Paraguai quando o presidente Fernando Lugo foi deposto, tornou-se embaixadora no Brasil em 2013, logo depois das jornadas de junho. É dela a afirmação ‘ter amigos na corte suprema é ouro puro’. Especula-se que ela deva ir agora para a Venezuela. Não é coincidência, não é acaso. Não dá para elucidar ainda a trama completa, mas o fato é que, objetivamente, eles ganharam o Supremo, que começou a ser pautado por essa articulação. É sintomático, evidência dessa associação, que os temas mais recentes julgados e definidos pelo Tribunal, que estavam parados lá já há algum tempo, tenham sido a desaposentação, a proibição do direito de greve e, em breve, a terceirização, justamente porque são fundamentais para essa nova blindagem imposta pelo ajuste fiscal e importantes também para acuar os movimentos sociais. Vale notar que as forças econômicas que patrocinam e sustentam esse golpe são as mesmas que estiveram envolvidas com as rupturas de 1954 e 1964, que recusam qualquer movimento, por mais tímido que seja, em direção ao desenvolvimento nacional soberano e alinham-se fortemente aos interesses estratégicos dos Estados Unidos. E os americanos, além de implodir os BRICS, estão interessadíssimos no petróleo e no setor elétrico brasileiros. Por aqui ainda temos várias empresas que podem ser privatizadas. O Brasil é atualmente uma boia de salvação, um promissor balcão de negócios para a crise do capitalismo.
Mas já é possível perceber também divisões internas e fraturas nessa grande articulação que sustentou o golpe.
Até aqui, eles foram precisos, cirúrgicos, não cometeram erros. Mas há setores da nossa burguesia interna, que trocaram o crescimento econômico pelos ganhos de curto prazo e pela reforma trabalhista, que começam a perceber que ‘mataram a galinha dos ovos de ouro’. O setor das escolas privadas, por exemplo, cresceu gigantescamente com os financiamentos e as bolsas, que agora começam a rarear, com a consequente evasão e perda de alunos. O golpe não tem narrativa de oportunidades, não tem nada a oferecer como discurso. Nesse sentido, a conjuntura é diferente do neoliberalismo dos 90, quando se prometia a modernidade, o carro importado, o computador de última geração, o celular. Tudo o que se tem agora é o ajuste, são os cortes, é o não investimento em Saúde e Educação durante vinte anos. Além disso, há uma razoável memória lulista, pautada pelos ganhos sociais dos últimos anos, que ainda não se deu conta nem percebeu o que aconteceu, não concretizou ainda essas perdas. É uma massa difusa, desorganizada, não sabe muito bem o que fazer. Por fim, precisamos considerar que em algum momento poderá acontecer a entrada em cena do movimento operário organizado. Esse é o ator político ainda muito forte, decisivo. São setores da produção que ainda não apareceram. Por quê? Estão certamente frustrados e ressabiados com esse ajuste fiscal, mas estão confusos, desconfiados. Pensam ‘mas a Dilma também queria fazer o ajuste’. Esse movimento não está em refluxo, mas está atônito. E só vai entrar em cena por motivações econômicas, quando essas perdas se materializarem de fato.
Não é uma análise otimista? Será mesmo possível, num tempo não muito longo, reverter esse processo?
Exatamente porque tudo o que o golpe tem a oferecer são as perdas é que eles precisam ser rápidos, muito rápidos. É uma ofensiva violenta do neoliberalismo. É exatamente aí que entram em cena o Judiciário e o Supremo. Muitas medidas conservadoras, que não teriam respaldo nas urnas e teriam tramitação mais lenta e arrastada no Legislativo, com possibilidade ampliada de resistência, estão sendo encaminhadas rapidamente pelo Judiciário. Eles precisam dessa agilidade. A ideia é cercear ao máximo as margens de manobra do Executivo. A PEC 241 é isso, vinte anos sem investimentos. Não tenho dúvidas de que vão tentar desmontar a Petrobras e o BNDES, garantir a independência do Banco Central. Tudo isso para que, mesmo que um governo de esquerda seja eleito em 2018, e mesmo com eventual maioria parlamentar, não possa adotar um programa neodesenvolvimentista. De novo, vale a estratégia da blindagem, como aconteceu lá nos 90. Só que agora eles vão tentar fechar todas as portas. Aprenderam. Não vão cometer o mesmo erro de deixar abertas nova janela de oportunidades para o campo progressista. Ao mesmo tempo, esse programa vai potencializar novas contradições. Socialmente, eles estão construindo um barril de pólvora. É por isso que o golpe precisa inviabilizar eleitoralmente o Lula. Hoje, ele é o único que consegue galvanizar as esquerdas desorganizadas e difusas. Estou convencido que uma das tacadas finais do golpe será impedir a candidatura do Lula em 2018, talvez até com a prisão dele. Mas, insisto, o cenário é socialmente explosivo.