Por Elisa Marconi e Francisco Bicudo*
Em março passado, sem qualquer debate com a sociedade e usada como peça de marketing pelo governo Temer, que a defendia como mais uma medida para “gerar empregos”, foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei da Terceirização, que passou a permitir a contratação de trabalhadores terceirizados também para as chamadas atividades-fim (professores em escolas, por exemplo). Com a novidade, a socióloga Ludmila Costhek Abílio viu-se obrigada a aprofundar suas reflexões sobre o que chama de uberização do trabalho. “Esse processo, que vem caminhando rapidamente, oferece uma vitrine de profissionais que podem ser chamados apenas no momento de necessidade e, quando terminam as tarefas, vão embora, sem vínculo, sem continuidade”, explica, em entrevista à GIZ, para marcar bem a ideia. Como o exemplo mais emblemático dessa relação é o dos motoristas particulares temporários ligados à empresa multinacional Uber, uberização virou conceito, carregando consigo uma boa lista de desdobramentos e desafios.
Depois de aprovada e instituída a Reforma Trabalhista, em novembro último, de novo de forma açodada e a toque de caixa, a pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho da Faculdade de Economia da Universidade Estadual de Campinas (CESIT/UNICAMP) viu seu universo de investigações dobrar. “Está em curso um ataque refinado aos direitos do trabalho e do trabalhador. É, sem dúvida, uma modernização capitalista apoiada em políticas de austeridade. Esse propósito está escancarado e as consequências já começam a ser sentidas”, defende. O momento que passamos, de acordo com Ludmila, promove uma informalização formalizada do trabalho, que nasce dentro do mundo do trabalho, mas que beneficia um único lado, o dos donos de empresas.
Como evidente consequência desse processo, destaca-se, ela insiste, a uberização do trabalho, atingindo profissionais de todas as áreas, inclusive os trabalhadores mais qualificados, que se imaginavam a salvo das políticas de desmonte da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT. Em artigo originalmente publicado no site PassaPalavra, a pesquisadora explica que “a uberização consolida a passagem do estatuto de trabalhador para o de um nanoempresário-de-si permanentemente disponível ao trabalho; retira-lhe garantias mínimas ao mesmo tempo que mantém sua subordinação; ainda, se apropria, de modo administrado e produtivo, de uma perda de formas publicamente estabelecidas e reguladas do trabalho”. Ou seja, vai além da terceirização praticada por empresas e chega a concorrer com ela. Muda, sem apoio ou amparo para o prestador de serviço, o que se entendia por vínculo no trabalho e alcança áreas que, inicialmente, não eram atingidas.
No mesmo artigo, Ludmila reforça que “essa apropriação e subordinação podem operar sob novas lógicas. Podemos entender a uberização como um futuro possível para empresas em geral, que se tornam responsáveis por prover a infraestrutura para que seus “parceiros” executem seu trabalho; não é difícil imaginar que hospitais, universidades, empresas dos mais diversos ramos adotem esse modelo, utilizando-se do trabalho de seus “colaboradores just-in-time”, de acordo com sua necessidade”. O modelo chegou para ficar e já preocupa e atormenta o trabalhador que, antes, ainda era capaz de sentir alguma ligação com o contratante e, de alguma maneira, era protegido por direitos e garantias historicamente conquistados. Agora, começa a se perceber absolutamente abandonado, à mercê dos luxos e das ordens e necessidades do capital.
Países que adotaram as políticas de austeridade em relação ao trabalho, como Espanha e Alemanha, são bons exemplos de que – em maior ou menor grau – as medidas não contribuem para o aumento do emprego, da geração de renda ou da segurança social para o trabalhador. Ao contrário, a instabilidade para os funcionários passou a ser parte da rotina. No Brasil, aposta a pesquisadora, não será diferente, até porque, por aqui, a velocidade e a selvageria foram tão abruptas que poucas margens ou instâncias restaram para o trabalhador recorrer e nelas se apoiar.
A pergunta que não cala é por que, diante desse cenário, os trabalhadores não estão ocupando as ruas e pressionando os parlamentares, como os vizinhos argentinos fizeram no dia 14 de dezembro? Os portenhos tomaram a Avenida de Mayo, em frente à sede do governo, e impediram os parlamentares de votar a reforma previdenciária, principal plataforma do presidente Mauricio Macri. Os manifestantes foram recebidos com violência pela polícia, mas tiveram o apoio de deputados da oposição – que abandonaram o plenário e marcharam ao lado dos trabalhadores. O debate e a votação foram suspensos e ainda não há data certa para serem retomados. Um dos gritos que a multidão brandia era: “Aqui não é o Brasil!”, em alusão ao silêncio em relação às reformas que acontecem por aqui.
Ludmila explica que há algumas diferenças que devem ser levadas em conta. Em primeiro lugar, na Argentina, o governo pretende mexer primeiro na Previdência e, também por aqui, esse desmonte só está em fase de proposição. “O governo ainda não conseguiu os votos, mesmo distribuindo milhões de reais entre os parlamentares, para fazer passar seu projeto”. No vizinho, essa possibilidade está mais avançada. Além disso, é significativo destacar que a falta de entendimento e de informação que orbita a Reforma Trabalhista não se repete na Reforma Previdenciária. “As notícias e as consequências da informalização do trabalho não ficaram claras para o trabalhador logo de cara, só agora as fichas estão começando a cair. Em relação à aposentadoria, a conta é mais fácil e o trabalhador sabe sim que essas reformas não podem passar, porque ele vai morrer à míngua”, garante a pesquisadora da Unicamp.
Mas como é possível o trabalhador não saber, ou não entender, o impacto que a Reforma Trabalhista traria e trará para a sua vida? “A informação não chegou. A imprensa não se preocupou em explicar para o trabalhador o que estava acontecendo. Não se preocupou porque não lhe era interessante. O discurso contra a burocratização do trabalho ganhou muita força e se alastrou rapidamente. A votação foi a toque de caixa e a reforma passou sem que se pudesse discutir muito o assunto”, responde. Junto com isso, a pesquisadora completa, a falta de exemplos concretos jogou a favor das reformas. As consequências não eram palpáveis, ou concretas. “Mas também isso já mudou”, assegura Ludmila. “Casos na Justiça do Trabalho, em que o trabalhador é levado a indenizar o patrão, ou a demissão em massa de professores na Estácio de Sá começam a abrir os olhos da população”. Some-se a isso a percepção de que o desemprego está aí e não há perspectiva de crescimento econômico e das taxas de empregabilidade. Agora, está ficando mais evidente o que pode acontecer com quem não é empresário.
Volta à cena também a memória de dez anos atrás, quando o país vivia quase no pleno emprego, as políticas sociais estavam a todo vapor e a sensação de amparo era companhia constante do trabalhador. As classes médias que ascenderam sob os governos anteriores fazem comparações – e já sentem saudades, como revelam recentes pesquisas de opinião. A bandeira do consumo como porta de entrada para a cidadania, já se nota, está fortemente ameaçada. A sensação de instabilidade já começou a ser percebida. “Eu concordo com Marcio Pochmann [economista especialista no mundo do trabalho e também professor da Unicamp] quando ele diz que os brasileiros não estão apáticos. Estão, antes, perplexos. E a perplexidade não imobiliza como a apatia. É uma tomada de consciência para a ação”, propõe Ludmila.
Talvez essa ideia explique por que os motoristas de Uber de outros países, como a Inglaterra, estão se unindo e exigindo determinadas condições de trabalho e até criando sindicatos. Também aqui no Brasil, trabalhadores que são chamados por aplicativos têm se organizado, procurado algum amparo com os iguais. No caso dos professores, o modelo de aplicativos para conseguir aulas ainda não se popularizou, mas não deve demorar muito, porque plataformas de aulas particulares – presenciais ou à distância – já existem e daí para a consolidação de um serviço “disk-educador” é um pulo. As escolas e universidades poderiam, segundo a pesquisadora do CESIT, aproveitar essa onda para substituir professores que faltaram, ou estão em licença. Os planos de aula, ela lembra, já estão prontos. O professor viraria um repetidor que entrega o serviço. Acabada a aula, viola no saco e rumo de casa. O docente ganha pelas horas trabalhadas e não constrói vínculo nem com a instituição de ensino e nem com o aluno. Teríamos a consolidação ampla e irrestrita de um ensino meramente mercadológico e tecnicista, sem qualquer compromisso social ou com a formação crítica e cidadã.
“Algo parecido já acontece com os substitutos precários da rede pública. Só são chamados quando um colega vai se ausentar. No fim do ano, despede-se daquela escola e procura outra”, compara a pesquisadora. Na rede particular certamente vai acontecer algo muito parecido. “Imagino um banco de professores aptos a substituir um colega doente ou em licença-maternidade”, antecipa. E completa: “Estudar, preparar aula, construir um plano de ensino alinhado com o projeto da escola serão tarefas descartadas por não caberem no modelo da uberização do trabalho”. E tudo isso amparado por lei.
A instituição de ensino resolveria seus problemas mais imediatos: corte de custos e entrega do serviço ofertado para os alunos/clientes. Ao professor caberá aumentar as aulas, estar disponível para vários contratantes e se deslocar furiosamente pela cidade para conseguir trabalhar e perfazer sua renda. “Impede, portanto, a pesquisa, os projetos, o estudo e as atividades clássicas do trabalho de um professor, como a gente conhece classicamente. Imagine viver assim?”, provoca a pesquisadora da Unicamp. Sociologicamente falando, viver nessa instabilidade é algo muito sério, sustenta Ludmila. A rotina e a vida ficarão extremamente cansativas e em nome, apenas, da subsistência. A saúde física e mental são afetadas e a busca por realização no mundo do trabalho fica comprometida.
O que a pesquisadora vê de positivo é que o tempo do entendimento do que é e do que será a Reforma Trabalhista chegou. Não há mais a pausa da dúvida e o trabalhador já sente na pele as mudanças. Para ela, os próprios sindicatos estão sendo desafiados a acompanhar o ritmo das transformações do mundo do trabalho, pensando nas estratégias de resistência. As entidades têm de enfrentar essas novas formas de organização e controle sobre o trabalho, que tornam mais difícil de localizar materialmente as relações de dominação. “E já estamos vendo novos caminhos de resistência, que se apropriam de alguma forma destes mesmos meios”, garante. Se o professor entender que é trabalhador e de que lado está, rapidamente “vai encontrar formas de se organizar e de resistir ao aperto dos parafusos e às pressões”. Ela lembra, aliás, que os alunos também estão apontando alguns caminhos e se manifestando em relação à qualidade da educação e do respeito ao professor. “O momento, portanto, é agora”, conclui Ludmila.