Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Formado em Filosofia, mestre e doutor em Educação, Cipriano Luckesi vem dedicando os últimos 45 anos à pesquisa e às reflexões a respeito da avaliação escolar. Professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, UFBA, é autor de várias obras sobre o tema. Mas foi a partir de 1984, com a publicação do artigo “Avaliação da aprendizagem: para além do autoritarismo”, que Luckesi ocupou definitivamente o posto de especialista e referência nessa área. “Foi um divisor de águas”, comenta, “porque aí o tema passou a constar nos congressos, seminários e outros estudos e foi crescendo no interesse dos professores e dos gestores da educação”.
No final do ano passado, Avaliação da aprendizagem – componente do ato pedagógico, livro mais recente do professor da UFBA, publicado pela Cortez Editora, conquistou o segundo lugar no Prêmio Jabuti, o mais importante louro da Literatura Brasileira, na categoria “Educação”. Nas palavras de Luckesi, o volume reúne tudo que ele sabe sobre avaliação e reflete sobre as práticas e os processos avaliativos, que, alerta, poderiam ser mais bem constituídos, pensados, aplicados. Deveriam ter como objetivo não apenas examinar o estudante, mas sim medir e aferir a aprendizagem, possibilitando igualdade nas condições de todos os alunos da sala, da escola, da cidade, do estado e do país.
A Revista Giz conversou com exclusividade com Cipriano Luckesi a respeito desse componente tão fundamental da educação. Passamos pelo papel do professor, pela importância de amparar os métodos de coleta de dados na ciência e sobre a viabilidade de implantar essas ideias, considerando a realidade dos estudantes, dos professores e das escolas do Brasil.
Os melhores momentos da entrevista, você acompanha a seguir. ►
Revista Giz – Antes de entrarmos exatamente nas ideias defendidas neste livro novo, Avaliação da aprendizagem – componente do ato pedagógico, o senhor poderia contar como foi a sua trajetória até chegar nele?
Cipriano Luckesi – Comecei a trabalhar com avaliação ainda em 1968, na Universidade Federal da Bahia, logo que cheguei lá. Eu vim de São Paulo e já me interessava pelo assunto, mas me debrucei de verdade quando cheguei aqui em Salvador. Fui convidado pelo Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia (IRDEB) para trabalhar na produção de testes e na qualificação de testes que seriam aplicados em alunos e professores da Bahia. Minha tarefa era avaliar e qualificar esses testes. Foi me dedicando a isso que comecei a entender a importância da avaliação de qualidade da aprendizagem, porque ela poderia ser – se bem feita – uma grande auxiliar do processo de equalização social. Foi então que comecei a escrever e publicar artigos e fui, aos poucos, sendo reconhecido pela comunidade de educadores como um especialista em avaliação da aprendizagem.
Mas o que exatamente na questão da avaliação inquietava o senhor?
A questão política. Estávamos no Brasil do final da década de 1960 e início da década de 1970 e já naquele momento era grande a preocupação com a reprovação, a evasão e o fracasso escolar no país. Claro que esse não é um problema só nosso, mas é bem forte aqui. Estudando, me dei conta que a avaliação é um recurso que propicia a equidade social via educação. Veja bem, se todos aprendem o que devem aprender, todos têm condições iguais e melhores para buscar uma vida mais plena, com mais qualidade e com mais chances para todos.
O senhor era um revolucionário, subversivo!
(Risos). Pode se dizer que sim. Naquele momento pensar algo assim era mesmo meio perigoso. Mas consegui seguir adiante nos estudos sem me incomodarem demais, porque como você vai ver, o tema da avaliação era deixado de lado. Em 1984, publiquei o artigo Avaliação da aprendizagem: para além do autoritarismo. E esse foi o que posso chamar de divisor de águas. Nesse texto eu expunha a sistemática de como a desigualdade social se impunha e se mantinha também na educação. E como, no sentido oposto disso, a avaliação poderia subsidiar um caminho para a equalização social. Ou seja, com decisão e adequação política e social, o sistema educacional poderia garantir essa situação de maior igualdade.
E como tudo isso foi recebido na época?
O tema da avaliação da aprendizagem era muito excluído. Até 1970, a lei que regia a educação ainda falava em exames escolares. A lei seguinte, de 1972, já não fala em exames, mas também não fala da avaliação e apenas se refere à aprovação escolar. Também nos anos 1970, chegam ao Brasil os primeiros estudos e reflexões da chamada Tecnologia Escolar, muito em voga nos Estados Unidos, porque o presidente Kennedy queria saber se todo o investimento em educação estava gerando resultados, efeitos esperados. Então o assunto da avaliação ia aparecendo aqui e acolá. Em 1982 houve um congresso para professores no Rio de Janeiro, eram mais de 1000 inscritos. À tarde, fazíamos grupos de trabalho e no meu, sobre Avaliação da Aprendizagem, só se inscreveram três pessoas. De mil. Imagine.
Estudando, me dei conta que a avaliação é um recurso que propicia a equidade social via educação. Veja bem, se todos aprendem o que devem aprender, todos têm condições iguais e melhores para buscar uma vida mais plena, com mais qualidade e com mais chances para todos.
E por que o tema era tão desprestigiado?
Não era falta de prestígio. Era muito desconhecimento e também apego à tradição dos exames. Ninguém questionava muito. Era assim. Ponto. O exame era e é até hoje um instrumento de exclusão e de autoridade. Em 1984, publiquei aquele artigo “Avaliação da aprendizagem: para além do autoritarismo” e o assunto começou a vir à tona. Outras pessoas também estavam pensando nisso, também estavam refletindo sobre avaliação. Nos encontros, cada vez mais professores se interessavam pelo tema. Aí, em 1995, lancei o livro Avaliação da aprendizagem escolar – estudos e proposições, que já está na 22ª edição. E de lá para cá, revisei algumas coisas, acrescentei outras, outros oito capítulos foram escritos e virou o livro que ganhou o Jabuti em 2012. Avaliação da aprendizagem – componente do ato pedagógico é, portanto, mais alentado, abrange outras compreensões que fui tendo nesse período todo e, principalmente, trabalha a questão pedagógica, da prática da educação, a avaliação dentro da pedagogia, portanto. Tem também uma nova abordagem teórica, metodológica, com maior compreensão dos processos.
A tese principal do livro é que a avaliação subsidia o ensino de qualidade. Será que o senhor pode explicar essa relação?
Primeiro é importante ressaltar que a avaliação não faz, nem garante sozinha, o ensino de qualidade. Ela subsidia, apoia, favorece. E também que a educação de qualidade prescinde de gestores que cuidem dessa qualidade e entendam o professor como parceiro dessa busca pela qualidade. Muito bem. Isso posto, vamos ao que defendo no livro. Primeiro, se a avaliação é usada de forma adequada – e já vamos falar disso –, ela deve ter o norte de qualificar a educação de qualidade. Segundo, politicamente, a avaliação subsidia a gestão da educação, portanto, se for satisfatória, aponta para a equalização social. Terceiro, a avaliação tem de estar integrada com as práticas pedagógicas. Ela não é, portanto, finalidade, mas sim instrumento de mensuração dessas práticas. E, por último, não basta avaliar a aprendizagem, é preciso avaliar todo o sistema de ensino. Passa pelo professor, pela escola, pelo município, pelo estado e pelo país.
O senhor poderia explicar a diferença entre avaliação e examinação, um dos conceitos seminais do livro?
Metodologicamente, as duas práticas são bem parecidas, quase iguais. Ambos são instrumentos de coleta de dados necessários para a atribuição de uma nota no final de um processo de ensino-aprendizagem. Mas, o que devemos perguntar é: e a qualidade desse instrumento? A qualidade nasce da leitura desse instrumento, da finalidade com que ele é aplicado. No exame, o resultado é uma nota, um lugar de classificação. Na avaliação, o resultado é um diagnóstico. O aluno aprendeu o suficiente ou não? Ao final da avaliação tem-se a possibilidade de certificação desse estudante. Se, ao final do processo, a coleta de dados revelar que ele aprendeu o suficiente, o professor testemunha e atesta – porque acompanhou todo o processo – que aquele estudante atingiu o nível necessário de aprendizado. O professor é, portanto, parceiro de todo o processo e o certifica no final. Caso o aluno não tenha aprendido o suficiente, se o diagnóstico mostrar isso, o gestor terá subsídios na mão para melhorar a atividade educativa daquela escola. A avaliação não é, então, excludente.
E a realidade das escolas hoje está mais para examinação ou avaliação?
Muitas, mas muitas escolas mesmo, examinam os alunos. Não se preocupam com a qualidade do ensino e nem com a qualidade da avaliação. As provas e os outros instrumentos têm como base a pegadinha, ou são feitos de forma aleatória. Uma questão para cada capítulo estudado, sem se importar muito com o que deveria ser aprendido de fato desses quatro capítulos.
E, por último, não basta avaliar a aprendizagem, é preciso avaliar todo o sistema de ensino. Passa pelo professor, pela escola, pelo município, pelo estado e pelo país.
Então como seria uma avaliação de qualidade, professor? Na prática, como se faz?
O principal é adequar o instrumento de coleta de dados à metodologia científica. Ou seja, tem de ser coerente com a forma de ensinar, deve ter linguagem clara, precisão na pergunta, e estar coerente com o sistema pedagógico. Atribuir valores aos dados coletados também não pode ser uma tarefa aleatória. Por que uma questão vale mais do que a outra?
Mas isso é factível, professor?
Perfeitamente factível se o professor for preparado para isso, se a escola adotar essa filosofia, se o sistema de ensino decidir por isso. Mas é realmente possível. É preciso repensar a aplicação do instrumento de coleta de dados (feito com base científica), depois entender que dali sai um diagnóstico que afere se o estudante aprendeu o que precisava ter aprendido. Antes disso, é preciso uma formação universitária de melhor qualidade para o professor, que ensine e discuta o lugar e o papel do professor na avaliação da aprendizagem. A educação continuada dos professores também precisa muito ser melhorada. E o instrumento precisa ser melhor constituído. Ou seja, não pode ser aleatório, nasce de um mapa do saber (o que tem de ser aprendido? Em que grau de importância?) e se traduz em questões bem construídas, claras, precisas.
Mesmo para um professor que ensina em duas escolas, para 10 classes diferentes, tendo de avaliar 500 alunos? É possível ainda assim?
Se esse professor está atento à avaliação de qualidade e constrói seus instrumentos de coleta de dados amparado nisso tudo, pode inclusive aplicar o mesmo instrumento para os 500 alunos. Esse é o ponto, o instrumento precisa ser bom o suficiente para medir o que deve ser aprendido. Baseado na metodologia científica, sem pegadinha, sem escolhas aleatórias. Os instrumentos podem ser muito parecidos, com pequenas variações de uma classe para outra. Agora, o que não pode é o sistema de ensino continuar como está. No Canadá, se o professor diagnostica que ensina com qualidade se tiver uma classe com até 15 alunos, então a sala tem de ter até 15 alunos. E a escola tem que garantir isso. Aqui no Brasil, o pensamento é o oposto: se uma sala com 50 alunos dá lucro, vamos colocar 60 e não se fala mais nisso. É muito perverso com o professor, que tem de se posicionar, pedir ajuda aos sindicatos e às associações de educadores para garantir melhores condições de ensino e alcançar uma educação de qualidade.