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Beatriz Sarlo, crítica literária e escritora argentina, que conversou sobre seu mais recente livro (e-book “Viagens – Da Amazônia às Malvinas”), memórias de aventuras vividas em vários países da América do Sul, durante os anos 1960 e mais recentemente

“Para as viagens que estão nesse livro, eu não me preparei. Outros me prepararam. Nos países em que há grande impacto de imigração, e falo mais especificamente do litoral brasileiro, do litoral atlântico argentino, onde está Buenos Aires, muitos de nós descendemos de imigrantes de várias nacionalidades. Somos o produto das viagens dos outros. Nosso solo cultural é esse, sociedades urbanas muito misturadas. Fomos preparados nos outros. Isso fez com que meu livro fosse possível. Eu sou a viagem das pessoas que me fizeram. Fui transportada e perpassada pela ideologia da época, a referência de uma América Latina utópica e revolucionária que precisava ser descoberta. O Brasil era uma espécie de Meca da estética. Foi uma viagem para aprender. Quando faço minhas coberturas jornalísticas, é diferente, eu leio, pesquiso. É um tipo de viagem completamente diferente das feitas na juventude, quando é perfeitamente admissível que sejam realizadas com base numa espécie de ignorância. Se não for perito, especialista, você pode sentir mais fundo os impactos diretos dessas vivências. Vou me ater a uma perspectiva mais democrática, estar aberta a conhecer, para me deixar tocar e impactar. Eu nem sabia quem era Lucio Costa, mas me tornei modernista para sempre. É uma doença da qual jamais me curei. Fiquem tranquilos. Tudo vale. Eu fazia poucas anotações, dias e lugares por onde passávamos. Mas perdi tudo isso. Os negativos das fotos estavam se desfazendo. E um amigo resolveu digitalizar todo aquele material. De repente, aquelas fotos começaram a entrar no meu computador. Por que estão aparecendo aqui?, pensei. Não queria voltar, era um passado remoto. Mas foi algo mágico rever as fotos. A mais recente delas chegou quando eu já estava em Paraty, falando sobre esse livro. Meu amigo nem sabia disso. Senti que estava sendo transferida para mim a responsabilidade da escrita. Aquelas histórias pediam para ser narradas. No livro, somos sempre nós, o grupo, o plural, nunca falo de mim. Foi um mandato narrativo que acebei recebendo de um amigo muito querido”.

Alexandra Lucas Coelho, jornalista e escritora portuguesa, autora de “Vai, Brasil”, crônicas que narram experiências dela quando morou no Brasil, entre 2010 e 2014.

“Fui preparada durante toda a vida para morar no Brasil. Minha geração cresceu com o Brasil muito perto. Lia livros de autores brasileiros, ouvia músicas brasileiras. Um dos primeiros vinis de que me lembro era do João Gilberto. Caetano Veloso e Chico Buarque fazem parte da minha história, tinha com eles convívio íntimo. Foram muitos, a lista é imensa. Fazem parte daquilo que sou. A imagem que formei do Brasil guarda relação com todas essas memórias e referências. Foi uma preparação contínua. A decisão de morar no Brasil aconteceu em 2010, quando estive no México para cobrir o narcotráfico e tive o encontro com o mundo indígena da América. Nas minhas viagens para cobrir guerras e conflitos, já tinha conhecido a colonização inglesa, a francesa, a otomana, agora a espanhola. Faltava a portuguesa. Foi uma decisão política, lidar com o resultado desse encontro e da colonização produzida pelo lugar de onde venho. Nossa identidade não é fixa nem está pronta. Minha chegada ao Brasil depois dos 40 anos me permitiu trazer comigo todos os lugares por onde já tinha passado, como chaves para ver o que está à minha frente. Por ser jornalista, tenho cadernos e cadernos de anotações, muitas notas. Cada palavra é importante, captar a forma como dizem. Morar no Brasil foi também a decisão de querer ser atravessada pelas muitas variantes da Língua Portuguesa. O repórter é um corpo que se coloca entre um lugar e o leitor. A palavra transporta. Atravessa. Por isso, no meu caso, os cadernos de anotações são essenciais”.

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