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Educação

Por um espírito brincalhão

By 25/09/2014No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Feito raro quando o assunto é documentário brasileiro, Tarja branca – a revolução que faltava, lançado em junho deste ano, esteve em cartaz durante 11 semanas seguidas em São Paulo. Recém-oferecido no iTunes, plataforma da Apple para adquirir audiovisuais, o filme já está entre os 15 nacionais mais baixados, segundo o jornal Folha de S. Paulo de 9 de setembro. Quando comparado com seus similares, já é possível dizer que o longa metragem dirigido pelo cineasta Cacau Rhoden tem uma carreira relevante e significativa.

No entanto, se o sucesso do filme acontece no presente, o que se espera é que seu impacto possa ser de fato mensurado no futuro. Rhoden brinca dizendo que o sucesso de Tarja Branca se deve ao fato de que “era um filme que já existia, ele só não tinha sido feito ainda”. Tudo isso porque, em linhas gerais, o documentário trata da importância fundamental do brincar. Na visão ali apresentada, brincar é urgente e é a garantia de crianças mais plenas e livres e de adultos mais completos e felizes. “Brincar é, antes de tudo, algo muito sério, porque permite ao ser humano, de qualquer idade, estar inteiro, pleno, experimentando todo o seu fio de vida, como diz uma das entrevistadas”, lembra o diretor.

 width= Construído com o entrelaçamento de depoimentos de adultos de variadas origens e imagens de brincares diversos, a obra vai discorrendo sobre o chamado espírito lúdico, seu papel na formação da criança, sua presença na vida adulta, no mundo do trabalho. “E também sobre a violência que significa não poder brincar”, adianta o documentarista. “A sociedade violenta e nefasta talvez esteja assim porque seus membros foram impedidos de brincar plenamente na infância, por uma série de razões, e na vida adulta por outra série de razões”, completa, justificando um dos slogans do filme: o remédio do futuro. A ideia de boa parte dos personagens do longa é que, resgatando o brincar, pode-se construir seres humanos mais completos, menos destrutivos, já que a brincadeira, ação tão fulcral da natureza humana, estaria intimamente ligada com o comportamento do homem contemporâneo.

“Brincar é, antes de tudo, algo muito sério, porque permite ao ser humano, de qualquer idade, estar inteiro, pleno, experimentando todo o seu fio de vida, como diz uma das entrevistadas”

Rhoden conta que o projeto não nasceu com essa cara e a história que Tarja Branca narra, foi, na verdade, encontrada. O diretor havia sido convidado pela produtora Maria Farinha Filmes para fazer uma peça audiovisual – ainda sem formato definido – sobre os brincantes da cultura popular tradicional do Brasil. “Aqueles homens e mulheres que se auto intitulam brincantes e que brincam o carnaval, o maracatu, o cavalo marinho, e essa brincadeira tem, de alguma maneira, algum impacto social”, relembra.

Qual o significado do brincar?

Envolvido na pesquisa que antecede as filmagens, Rhoden foi assaltado por um lampejo: será que a gente sabe realmente o significado do brincar? E achou essa fagulha uma sorte tremenda, porque se agarrou a ela e mergulhou fundo no universo da brincadeira, com suas significações, implicações e valores. Nesse ponto, o documentário mudou de rota e os especialistas em brincar – de brincantes a educadores, passando por artistas, pais e mães e psicanalistas, – começaram a refletir sobre o tal espírito lúdico, sob variados pontos de vista. “E foi aí também que eu percebi que,como sociedade, subvertemos o significado do brincar, que vai muito mais além dos brincantes – que merecem ser resgatados e estudados, mas que são antecedidos pela questão primordial que é brincar, que é inerente a qualquer ser humano”, explica o diretor.

Tarja Branca / Drops of Joy – Trailer oficial de Maria Farinha Filmes.

O senso comum sugere que brincar é ensaiar situações que poderão ser vividas na vida adulta, é uma espécie de experimentação para aquilo que o futuro vai cobrar de cada ser humano. Mas Rhoden, mesmo não sendo educador nem especialista no assunto, entendeu que brincar é, em primeiro lugar, estar vinculado. “A si mesmo, ao outro, ao coletivo. E é estar vinculado às duas dimensões que determinam nossa existência: o tempo e o espaço”. E liga essa ideia ao que diz uma das personagens do filme, Lydia Hortélio, especialista em cultura na infância. “Brincar é viver em plenitude e liberdade”.

“Subvertemos o significado do brincar, que vai muito mais além dos brincantes – que merecem ser resgatados e estudados, mas que são antecedidos pela questão primordial que é brincar, que é inerente a qualquer ser humano”

Ele explica que quando somos novos, ainda crianças, o brincar está nesse universo do lúdico, da brincadeira, mas a gente leva isso para a vida inteira. E o brincador leva aquilo muito a sério, fica completamente envolvido. Por isso é que brincadeira não é sinônimo de zombaria. “E não é algo menor, como o sistema tenta colocar para ter controle sobre o outro. Viver em liberdade e plenitude coloca a pessoa em contato com a grandeza do que é ser humano”, completa o documentarista.

Por essa perspectiva, gente grande também brinca, porque o tal espírito lúdico pode estar nas coisas mais banais, como as escolhas que a gente faz para a vida. “Brincar pode estar em qualquer ofício, porque quando a gente faz o que gosta, a gente está brincando”, defende o documentarista. “Essa é uma das bandeiras que o filme levanta, porque não tinha como não defender essa tese, que leva o espectador a, talvez, rever suas escolhas, dar sentido a elas”. Rhoden exemplifica: um engenheiro que gosta do que faz, quando está debruçado sobre uma planta, envolvido naquilo que dá prazer, está brincando, mesmo que esteja levando aquilo muito a sério.

Brincar, aqui, nada tem a ver com ócio, ou com matar o tempo. “Engenheiro que não brinca levando a sério, derruba o viaduto”, provoca. E faz coro com os personagens quando propõe que muitas pessoas fazem suas escolhas não baseadas nesse brincar que absorve, mas em conceitos externos de o que é ser sério e bem sucedido. Ou seja, pode-se redefinir o que é sério – que não é ser sisudo ou austeridade – mas viver intensamente, colocar corpo, alma, inteligência e verdade em tudo que se faz e a raiz disso tudo estaria lá na brincadeira séria da criança, acredita.

“Brincar pode estar em qualquer ofício, porque quando a gente faz o que gosta, a gente está brincando”

Na opinião da equipe de Tarja Branca, a razão pela qual o filme comunicou-se com tanta gente é que o tema já estava latente há tempos, e as pessoas – principalmente as que vivem nas grandes cidades, com escassez de tempo e de espaço – começam a perceber que é preciso resgatar o espírito lúdico, para que as escolhas e a vida façam mais sentido. Ainda pela visão dos autores, resgatar, dar um passo atrás, não é retroceder, voltar para o passado, é antes se afastar um pouco para enxergar melhor o todo e, assim, “ter uma noção mais ampla do que significa contar com o espírito lúdico”, sugere o diretor. “Para mim, é necessário sim quebrar paradigmas, pegar o que não presta na família, em casa, na escola – que é uma catástrofe – e jogar fora, no cotidiano, na cidade, na política”.

Rhoden explica que não é um filme para crianças. É para adultos. “E se são adultos que trabalham com crianças, melhor ainda”, porque ao se deparar com tantas reflexões, eles podem repensar as próprias escolhas – que podem ter levado, por exemplo, a escolher serem educadores – e repensar ainda como estão lidando com seu brincar e com o brincar das crianças com quem se relacionam. A partir daí, se forem professores, podem levar para suas escolas essas discussões e, com sorte, oferecer aos alunos essa oportunidade de brincar seriamente, respeitando o espírito lúdico, que proporciona a mágica de viver plenamente e em liberdade.

 

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