Por Carlos Teixeira*
A história a seguir é uma obra de ficção, qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações terá sido mera coincidência. Não levem a sério este conto. Pode ser que eu não resista às críticas e, quem sabe, mude de opinião e de planeta.
A discussão do tema abaixo é uma reflexão sobre o Projeto de Lei 867/2015 do Deputado Federal Izalci Lucas Ferreira (PSDB/DF) chamado de ‘Escola sem Partido’ mais conhecido como ‘Lei da Mordaça’ que tem por teleologia criar na Escola um ambiente de neutralidade política e ideológica.
Sigmund Freud deixou um vasto material que aprofunda o conhecimento acerca da alma humana. O texto Algumas reflexões sobre a psicologia escolar é o ensaio utilizado neste trabalho para explicar a ineficiência da neutralidade política na Escola, pois a formação emocional da criança ocorre nos primeiros anos de sua vida, porém, muito pouco, ou nada, o professor pode influenciar a vida dos jovens após seu ingresso na formação escolar.
A Escola sem Partido é um movimento político caracterizado por afirmar a neutralidade ideológica na escola, mas que não assume sua própria parcialidade e gera uma enorme confusão no conceito de neutralidade.
Era uma vez, uma terra muito distante daqui, conhecida pelo nome de Neutrolândia. Neste lugar habitavam pessoas de várias etnias e com posições políticas distintas, mas lá havia os “neutralizadores”, um grupo de sujeitos muito esquisitos, que possuíam uma ideia fixa da existência de doutrinação política na escola.
Os seres esquisitos temiam as ideias à esquerda por serem revolucionárias e horrendas, mas também temiam os doutrinadores à direita porque eram reacionários demais. Os neutralizadores também não eram de centro porque o centro tem um pouquinho de lá e de cá. Os senhores neutralizadores tinham somente uma missão em Neutrolândia, neutralizar de fato qualquer direcionamento político.
Pois bem, existe em toda cidade uma escola e não podia ser diferente em Neutrolândia, neste caso, é a Neutrolândia School. Obviamente, na cidade tem uma assembleia legislativa, a Casa do Povo, que pensa as leis orgânicas de Neutrolândia.
Desde algum tempo tramita um mirabolante Projeto de Lei, na Casa do Povo que promete passar a limpo a influência doutrinária em Neutrolândia School, a única escola da cidade. A ideia seria brilhante se não houvesse um quadro docente tão poderoso na doutrinação, sim, veja bem, os professores doutrinam. Pois bem, pode se dizer que os neutralizadores sejam de centro, mas como já disse, o centro possui um pouquinho dos dois lados, não obstante há perigo por todos os lados, escondam-se!
A história desse povo é muito engraçada de se ver. Os neutralizadores possuem a ideia fixa de neutralizar, porém, defender a neutralidade para eles sempre será uma posição imparcial, isto é, neutra. A neutralidade é bela, linda, espetacular e, particularmente, em Neutrolândia as coisas são neutras, sempre.
A religião é neutra e nunca procura escolhas políticas, isto é, quando Abraão, Moisés, Jesus, Mohammad, Sidarta Gautama, entre outros iluminados, tomaram uma posição política foram neutros porque senão, em Neutrolândia, eles seriam severamente punidos pelos neutralizadores. As pessoas pertencentes à religião de origem afrodescendente têm a obrigação neutra de extinguir a posição ética das divindades e não haverá nem esquerda e nem direita, nem bem ou mal, pois na Neutrolândia School ninguém poderá tomar posição política.
É nítida a perspicácia dos neutralizadores em relação ao projeto de lei, já que muitos alunos do Neutrolândia School são doutrinados à esquerda e à direita. Os professores dessa escola brigam muito entre si na hora dos intervalos, com certeza a baixaria é grande, pois se falam mal todos os dias e, até mesmo, chegam a se baterem por causa da posição política.
Por ironia do destino, num dia qualquer chegou ao ponto de brigarem sobre a posição política dos membros superiores dos alunos. Neste dia a briga começou no momento em que um neutralizador do governo viu uma professora da educação básica ensinando um menino a escrever com a mão sinistra[1], vejam bem a preocupação dos neutralizadores com a doutrinação política. Assim, esse agente do governo puniu a professora com uma bela demissão por justa causa porque a mão certa para se escrever é a destra. E, ele deixou por escrito uma justificativa, como exemplo, no mural da sala dos professores com os seguintes dizeres, “A mão destra é a representação da destreza, ela é direita, a melhor mão para se escrever, mas a mão sinistra não é”.
Na Neutrolândia School havia um pequeno grupo de professores que preferiam investigar a alma humana com mais acuidade e numa das reuniões de estudos secretos descobriram um ensaio do psicanalista Sigmund Freud chamado Algumas Reflexões Sobre a Psicologia Escolar. O pretenso ensaio foi lido e relido inúmeras vezes por esses professores que puderam notar a importância e o funcionamento da psique humana.
Os professores se aprofundaram na questão levantada por Freud acerca da influência do professor na vida do aluno. E a partir dos estudos secretos, a dúvida existente pairou no ar e se baseou na capacidade de influência que o professor pode exercer em relação aos alunos: é a dimensão da ciência ensinada ou é a dimensão da personalidade transmitida.
O pensamento investigado por àqueles professores gera um espírito crítico em Neutrolândia School e uma nova perspectiva sobre a psique, pois Freud apresenta no ensaio o conceito de Ambivalência e, desse ponto em diante, os professores problematizam a concepção dos neutralizadores sobre a possível inclinação sentida pelos alunos em relação aos professores. Eles aprenderam com Freud que tal sentimento pode ser variado tanto de amor quanto de ódio e podem se convergirem ou se divergirem, pois os jovens não controlam suas funções psíquicas mais profundas.
A grande surpresa dos professores foi aprender sobre a existência do um conteúdo inconsciente na alma humana. Eles assistiram a um filme para complementar a recente formação freudiana. A concepção apresentada no início do filme Freud Além da Alma, “Os homens não são senhores em sua própria casa”, deixa clara a imensidão do mistério acerca da psique humana, ou seja, a história da filosofia sempre colocou a razão humana em evidência, mas Freud refaz o percurso e investiga o poder do inconsciente sobre as ações humanas.
Os professores discutiram um trecho do ensaio a respeito da Psicologia Escolar, no qual, Freud aponta às projeções feitas por ele próprio e seus colegas sobre o professor quando se virava de costas ou quando saia da sala de aula. O maior sentimento fundamentava-se mais na personalidade do professor do que no conteúdo ensinado. Os colegas admiravam, ou desdenhavam, as ideias do professor. Em todas as aulas surgiam novas contradições e tais contradições são processos psicológicos nos quais os jovens não controlam.
A formação do indivíduo, segundo Freud, se dá nos primeiros anos de sua vida, pois a formação emocional da criança, ou do jovem, já está formada quando chega Neutrolândia School e, por assim dizer, muito pouco há por fazer para modificar suas estruturas psíquicas, então, os professores concluíram que a imposição da neutralidade na Escola não passa de uma falácia, ou é uma ação maliciosa dos agentes neutralizadores de Neutrolândia.
Na Constituição Federal[2] de Neutrolândia, na parte da Educação, está escrito que todos têm a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber, também, o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; mas o projeto de lei proposto pelos neutralizadores distorce a Constituição e concebe uma interpretação unilateral da lei. Lá em Neutrolândia School, os alunos geralmente dão audiência cativa na aula, depois que entram em sala de aula, se sentam, colocam o material sobre a mesa, ficam quietos, guardam os equipamentos eletrônico-audiovisuais, acordam após uma agradável soneca, aí o professor realiza a chamada dos presentes, registra os conteúdos no diário de classe, verifica-se o plano de aula e… Ufa! Entenderam?
Outra coisa percebida pelo grupo de professores de Neutrolândia School quando leram a justificativa do Projeto de Lei ‘Escola sem Partido’ é a parte da história que parece não serem contados nos últimos 30 anos no qual o capitalismo venceu o socialismo, certamente, todos os alunos do Ensino Médio já estudaram a bancarrota dos regimes ditos socialistas.
Não há o que temer pelos neutralizadores, pois o capitalismo venceu, pois esta parte da história já está contada e muitos jovens amam o consumo e o status das marcas que ostentam. Ouçam bem críticos de plantão, por favor, não invadam a minha querida Neutrolândia para me insultarem, tenho medo de violência.
Os professores da Neutrolândia School a partir dos estudos freudianos sobre a Ambivalência tomaram consciência da insuficiência da neutralidade política das aulas e, certamente, daquele momento em diante lutariam para barrar o projeto de lei e convencer os demais professores na inútil beleza da neutralidade.
Fim
Atualmente, no Brasil, as discussões à respeito da educação parecem se inflamar diante de tantas questões políticas problemáticas que se arrastam há alguns anos.
A intenção de aprovar uma Lei limitadora do trabalho docente parece absurda, porém, uma onda conservadora afronta os limites do Estado de Direito para atacar um dos maiores bens da humanidade, a saber, a Educação.
Vale lembrar que a mídia é avassaladora na difusão de ideias falaciosas, embora, haja diversos discursos sobre a relevância da escola e o assunto sobre a valorização do professor seja amplamente difundido, geralmente, as argumentações são ambíguas. Primeiro, os meios de comunicação afirmam que o professor é desvalorizado e tem condições desfavoráveis de trabalho, mas quando se inicia uma greve a palavra de ordem é contra o professor grevista.
Por fim, o congresso nacional deveria se preocupar com políticas públicas adequadas à valorização do trabalho docente e da escola e pouco se debate uma meta de valorização do professor. A palavra educação se assemelha a uma sacolinha solta no meio da rua sem uma direção ou uma diretriz comprometida com a Educação.
[1] Mão canhota, esquerda.
[2] No artigo 206, inciso II.
Referências Bibliográficas
FREUD, S. (1914). Sobre a psicologia do colegial. Obras completas. Trad. Paulo César Souza. São Paulo: Cia. Das Letras, 2012, pp.418-423. (Vol. 11)
Brasil. Projeto de Lei 867/2015 do Deputado Federal Izalci Lucas Ferreira (PSDB/DF) ‘Escola sem Partido’.
Brasil. Projeto de Lei 1.411/2015 do Deputado Federal Rogério Marinho (PSDB/RN) ‘Assédio Ideológico e dá outras providências’.
Brasil. Projeto de Lei do Senado 193/2015 do Senador Magno Malta (PR/ES) ‘Escola sem Partido’.
*Carlos Teixeira é professor de Filosofia e diretor do Sinpro-SP