Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Numa das salas do prédio antigo da Pontifícia Universidade Católica, a PUC-SP, funciona a Brinquedoteca, espaço com grande acervo de jogos, bonecos, bolas e outros objetos que animam as brincadeiras que por lá acontecem. No entanto, diante de tantas opções, a educadora Maria Ângela Barbato Carneiro observa que algumas crianças que frequentam o lugar simplesmente não conseguem brincar com determinadas peças. Coordenadora do Núcleo de Cultura e Pesquisa do Brincar da PUC-SP, Maria Ângela se debruça há anos a estudar questões relacionadas às brincadeiras e o valor que elas têm para a formação da cidadania. E atribui a resistência dos pequenos em escolher alguns brinquedos à absoluta falta de identificação com eles. “Vinha uma garotinha loira que não queria brincar com as Barbie que tínhamos lá, porque, embora os cabelos de ambas fossem da mesma cor, a garota tinha cachos e a boneca, madeixas lisas”, explica a professora.
A pesquisadora é capaz de enumerar muitos outros exemplos que representam situações semelhantes, que foi colhendo ao longo dos últimos anos, como responsável pelo núcleo de estudos. E foi com essa experiência e conhecimento de causa que Maria Ângela encarou uma notável mudança que vem se processando recentemente na indústria de brinquedos. Com diferença de cerca de uma semana, a Matel anunciou que estava lançando bonecas Barbie mais variadas, com possibilidade de escolha entre mais de 20 tipos de cabelo, cores de olhos, curvas e traços étnicos; logo depois, a Lego divulgou seu novo mascote que, além de mexer a cabeça e as mão, vinha perfeitamente encaixado numa cadeira de rodas. Os dois brinquedos são, sem medo de exagerar, ícones da infância mundial, já foram objeto de desejo de boa parte das crianças, já ditaram tendências, já figuraram nas cartinhas para Papai Noel e valem milhões no mercado mundial. E agora, sem muitas explicações, passaram a figurar na lista das cotas, do politicamente correto e das minorias.
A iniciativa, sugere a coordenadora, deve-se a uma aposta das fabricantes num nicho que estava vago e pulsante. É bem verdade que os brinquedos chamados educativos, mais artesanais, já tinham a preocupação de representar grupos e características mais diversas, mas como circulam em menor escala, não alcançavam o grande público. “Agora a indústria começa a massificar esses brinquedos, que certamente chegarão às mãos e ao conhecimento de muito mais gente”, reconhece a professora, fazendo questão de ressaltar que “essa não foi uma descoberta da indústria de brinquedos, que aliás demorou para perceber essa onda”. Ela lembra que a discussão sobre igualdade social e, portanto, econômica, física, racial e relações e representações específicas nos brinquedos ganhou impulsos significativos no final dos anos 1990, com os primeiros Parâmetros Curriculares Nacionais, que defendiam a inclusão de crianças nas escolas e na sociedade, aceitando e cuidando das diversidades, escapando dos preconceitos e dos estereótipos. Cerca de vinte anos depois, esse discurso está mais difundido, defendido e aceito dentro e fora das escolas. Rampas de acesso, cotas, reparação, close caption, audiodescrição são conceitos com os quais a sociedade já lida com muita desenvoltura e, se ainda não apresenta soluções para todos os fatores limitantes, certamente vem discutindo caminhos e alternativas. Com esse grau de maturação, não é difícil entender que a indústria tenha se apropriado da tendência da inclusão para fabricar produtos novos e, assim, atingir um novo público. É a tal lógica de mercado. A vantagem de a inclusão entrar na linha de montagem é que a representação da diferença vai chegar a mais pessoas e a mais crianças em especial e, assim, “a discussão vai ficar mais forte”, aposta a educadora.
Por outro lado, o risco é que as famílias e a escola entendam que o simples fato de brincar com uma boneca gordinha, por si só, será capaz de formar a criança para a cidadania. “O brinquedo é um objeto. Um objeto. O seu uso – dependendo do que for ensinado à criança – é que vai atribuir sentido à brincadeira e a tudo que ela tem a potencialidade de significar”, destaca Maria Ângela. Assim, cabe aos adultos que cuidam daquele menino ou daquela menina mediar a relação da criança com o brinquedo – brincando junto ou ensinando a brincar – para que ele ganhe um novo valor.
A pesquisadora do brincar conta que a criança, via de regra, se identifica e se projeta nos brinquedos e faz dele uma ponte entre o real e o ideal, o que conhece e o até onde pode chegar no conhecimento. O brinquedo chega às mãos dos meninos e meninas com essa potencialidade, mas sozinho, sem a mediação dos cuidadores, ele não alcança essa meta que educa e transforma o sujeito. No entanto, quando – com a ajuda do adulto –, a criança vai sendo convidada a brincar, a experimentar fisicamente, que brinquedos diferentes exigem tratamentos diferentes, que brinquedos especiais exigem tratamento especial, e que – mesmo com essa característica – eles são divertidos, a criança concretiza e absorve essas potencialidades. O brinquedo cumpre sua função e a criança cresce sem fazer grande esforço. Ganha a inclusão, ganha a sociedade.
“Mas não pode exagerar, cair na armadilha da indústria cultural e comprar a coleção toda, entregar e deixar a criança se virar”. Maria Ângela voltou várias vezes a esse mesmo ponto durante a entrevista para a Revista Giz, porque depois de anos observando as brincadeiras, ela conhece bem um movimento comum nas famílias: comprar o brinquedo e todas as suas variações, presentear e imaginar que a criança vai alcançar sozinha suas potencialidades ao brincar. “O papel da família e da escola é orientar e resistir aos excessos. O brinquedo precisa fazer sentido e a brincadeira pode ser ensinada, até que a criança tenha repertório e bagagem para fazer aquilo por si só”, afirma. “Se não for assim, é só consumismo”.
Outro ponto que a pesquisadora considera positivo na chegada dos brinquedos mais reais às prateleiras é aumentar a oferta de modelos com quem se identificar. “A criança, quando brinca, se vê sim no brinquedo e se reconhece ou não se reconhece”, afirma a professora da PUC/SP. “Por isso mesmo, não ter quantidade significativa de bonecas com cabelo cacheado leva várias meninas a tentarem esticar seus cabelos diante do espelho”, alerta. Encontrar um boneco com suas característica pode ser raro e valioso e pode ajudar crianças com traços menos presentes – cadeirantes, cegos, surdos, downs – a se ver, se conhecer, se superar. Novamente, é preciso educar gerações inteiras para brincar naturalmente com as diferenças, até que as famílias e escolas possam deixar essa tarefa nas mãos das próprias crianças. É o que acontece com a bola: ninguém precisa ensinar meninos e meninas a se relacionar com a redonda, já faz parte das habilidades dos pequenos. Quando muito, o adulto responsável pode reforçar uma regra, apresentar uma forma nova de tocar a bola, mas sem muita dificuldade, as crianças sempre encontram o que fazer com esse brinquedo.
Se os professores ajudarem, mais fácil ainda o boneco cadeirante ou a boneca negra podem fazer a diferença. “Se a escola acreditar que o brinquedo na estante da classe vai fazer o trabalho sozinho, vamos precisar de muito tempo. De outra forma, se a tolerância, a inclusão e a diversidade fizerem parte das rodas de conversa, dos livros de leitura, dos exercícios em sala e da lição de casa, aí vamos avançar um bocado”, finaliza a pesquisadora.