Marilise Vaz Bridi*
As efemérides (maneira um bocado antiga de referir-se às datas comemorativas) são sempre uma boa oportunidade para se falar e, portanto, conhecer um pouco melhor alguma pessoa ou algum evento que tenha tido alguma importância para a História de um país, ou melhor, que simplesmente tenha alguma importância para ser lembrado.
Parece-me que é o caso de Jorge Amado. O famoso escritor baiano estaria completando 100 anos no dia 10 de agosto de 2012. Por outro lado, neste ano – 2011 – são 80 os anos da publicação de seu primeiro livro, Pais do Carnaval (1931), e 10 anos de sua morte que se deu a 6 de agosto de 2001, apenas a 4 dias de seu aniversário de 89 anos.
Convenhamos que não é pouca coisa, nos 70 anos de vida literária, ter conseguido, apesar de escrever originalmente em português e ter nascido no Brasil, publicar 32 obras em seu próprio país e ter ainda muitos de seus livros traduzidos para 49 outras línguas, entre as quais para o russo, o basco, o coreano e o japonês. Jorge Amado foi, sem sombra de dúvida, um escritor muitíssimo bem sucedido em vida, tendo sido o primeiro e, à sua época, o único escritor brasileiro a poder viver exclusivamente do fruto de seu trabalho como escritor.
Apenas para que tenhamos alguma noção do que tal fato representa, se considerarmos a História da Literatura Brasileira, praticamente todas as suas figuras mais proeminentes tiveram de, no mínimo, acumular atividades para poder sobreviver, quando não viviam inteiramente de seus salários em outras profissões.
Mas deixemos de lado essas curiosidades para falar um pouco mais de perto de suas obras. Um dos maiores méritos de Jorge Amado como escritor foi saber, como poucos, contar uma história. Esse aspecto, sua qualidade como bom construtor de enredos, lhe garantiu ao longo da vida uma legião de leitores de todas as idades e de todos os lugares, dentro e fora do Brasil.
Ao iniciar, sua literatura inseria-se no regionalismo brasileiro que tinha por principal característica voltar-se para as peculiaridades do Brasil mais profundo e pouco conhecido dos próprios brasileiros, sobretudo dos moradores dos centros urbanos. Foi a época de Cacau (1933), Suor (1934) e Jubiabá (1934) em que as condições de vida e de trabalho num Brasil agrário, mal saído da escravidão e inteiramente submetido à injustiça e à desigualdade social, são vividamente apresentadas e denunciadas. O jovem Jorge Amado estava indignado com as condições de vida do povo brasileiro e as denunciava com o vigor de um militante de esquerda que era e, em certa medida, foi por toda a vida.
Eram tempos complicados. Getúlio Vargas, que tinha atingido o poder com a Revolução de 30, já se manifestava como o ditador que ficaria por 15 anos no poder à frente de um governo com perfil de direita e populista, perseguindo comunistas, fechando partidos e impondo a censura aos meios de comunicação. Mais tarde, em 1954, Jorge Amado publicaria uma obra em dois volumes – Subterrâneos da Liberdade – cujo contexto seria justamente a ditadura Vargas com suas tramas de perseguição política, injustiça social e a presença do imperialismo norte-americano na economia brasileira atuantes na vida das pessoas.
Esse romance teria, posteriormente, para a minha geração, envolvida por outro ciclo ditatorial que se iniciaria com o Golpe de 1964, forte apelo, pois, para nós, constituía-se na revelação dos mecanismos da “verdadeira” História do Brasil, tão pouco mostrada pela cultura oficial: eram evidentes as semelhanças de procedimentos das duas ditaduras o que nos ajudava a ver o que então vivíamos.
Por outro lado, era extremamente instigante ler um romance cujas personagens eram históricas e conhecidas (na altura, quase todas ainda vivas), mas representadas por nomes que não eram os seus. Cabia a nós, os leitores, reconhecer além dos mais óbvios como, por exemplo, Getúlio Vargas ou Luiz Carlos Prestes (que já havia sido o herói de outra obra de Jorge Amado, O Cavaleiro da Esperança – 1942), outros como Carlos Lacerda ou Felinto Muller. Era um romance à Clef, ou seja, uma narrativa que se abre à compreensão pela descoberta de suas chaves, no caso, a verdadeira identidade das figuras públicas envolvidas na trama.
Suas personagens ficcionais não são menos interessantes. Ao contrário, Jorge Amado além de bom narrador, produtor de tramas envolventes, construiu uma galeria de personagens muito significativa que povoa o imaginário brasileiro. Desde seus primeiros romances, suas páginas abrigaram personagens que iam compondo um perfil do homem do povo do Brasil: o nordestino que migra para trabalhar nas plantações de Cacau, o negro na cultura do fumo (Jubiabá), os trabalhadores do mar (Mar Morto – 1936, retomados em Os velhos Marinheiros – 1961), os meninos de rua (Capitães de Areia – 1937) e muitos outros.
Entretanto, o quadro de grandes personagens de Jorge Amado só crescerá ao longo do tempo. São inesquecíveis as personagens de Gabriela, Cravo e Canela (1958), as de Dona Flor e seus dois maridos (1966) e as de Tieta do Agreste (1977). As adaptações para a dramaturgia televisiva e cinematográfica só ampliaram o interesse pelas personagens e pelas obras que as abrigavam.
Pode-se dizer que a primeira dessas obras – Gabriela, Cravo e Canela – é considerada um divisor de águas no conjunto da obra do escritor. Jorge Amado, que havia sido militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), algumas vezes preso e exilado por razões ideológicas e tido muitas de suas obras censuradas e proibidas, em face da conjuntura internacional e das mudanças ocorridas nos partidos comunistas de todo o mundo, aos poucos se afasta, do ponto de vista estético, da perspectiva do realismo socialista que, a rigor, nunca havia seguido à risca. O autor de Gabriela, Cravo e Canela, sem abandonar suas ideias em que a crítica social é a força motriz, encontra uma nova matriz para sua literatura que, se combina elementos anteriormente presentes em sua obra, agora os conjuga de maneira mais leve. Tais elementos talvez possam ser expostos, de maneira simplificada, numa equação ou fórmula que fará grande sucesso: é a somatória de sexualidade liberada, sincretismo religioso e culinária baiana, tomando a última expressão como um convite aos prazeres que a terra pode oferecer. Em Gabriela, Cravo e Canela, por exemplo, há o relacionamento entre Gabriela e Nacib, o Bataclan – cabaré/prostíbulo festivo, fruto de um imaginário masculino idealizado, muito distante da dura realidade da verdadeira prostituição – e a primeira punição por um crime de honra que era habitualmente tolerado e, infelizmente, mesmo sem esse nome, continua a ser praticado no Brasil.
É também desde cedo que Jorge Amado fará representar em suas obras o sincretismo religioso brasileiro. Sempre presente como característica cultural do povo brasileiro, as manifestações da cultura afro-brasileira estão hibridamente colocadas de maneira mais evidente em algumas de suas obras. Nelas há a mistura entre o candomblé e o catolicismo; os babalorixás, as mães-de-santo e as divindades cultivadas pela tradição de origem africana são imbricados com santos e rituais católicos. Além de em Jubiabá, obra já referida anteriormente, em Tenda dos Milagres (1969), O compadre Ogum, segunda parte de Os Pastores da Noite (1964), e O Sumiço da Santa (1988) a questão do sincretismo religioso é central como traço da cultura popular brasileira, em particular, da baiana.
A Bahia em sua cultura própria é, enfim, o ambiente de toda a obra de Jorge Amado. Aos baianos, que claramente reverenciam a cultura local em todos os seus aspectos, não parecerá nada exótico o espaço construído pelo escritor para o andamento de suas tramas e para o desenvolvimento de suas personagens. Entretanto, aos leitores de outras experiências de cidades e culturas, a cor local tão sugestiva e habilidosamente pintada sem dúvida pode parecer como tal, instigando a curiosidade e o interesse pelas coisas baianas que passam, necessariamente, pelo orgulho de sua própria história, de seus costumes e de suas gentes. Constituída desses ingredientes, a Bahia que salta das páginas dos livros para o imaginário de seus leitores constitui-se em muito mais do que um mero espaço, para alçar à condição de uma personagem, uma entidade à qual sua gente pertence, traço identitário que define e propicia aos que a partilham, em alguma medida, um sentimento de comunidade sem fronteiras.
Revisitar a obra de Jorge Amado na proximidade de seu centenário de nascimento é, por todos os esses aspectos, uma oportunidade para rever um país que, se já não é exatamente o mesmo, ainda guarda muitos traços reconhecíveis do mundo criado por seu autor e, sobretudo, possibilita uma reflexão, num só tempo crítica e prazerosa, sobre as realidades que podemos vislumbrar. Cabe a nós, professores das áreas que têm alguma interface com os temas de Jorge Amado, encontrar os meios hábeis para motivar nossos alunos à leitura de sua obra e, através dela, reconhecer alguma de nossas faces como num espelho. Mágico!
* Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor doutor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade de São Paulo.
Nossos agradecimentos à Casa de Jorge Amado, que gentilmente cedeu as belíssimas fotografias – de autoria de Zélia Gattai – publicadas nesta edição
Gostei muito de conhecer um pouco mais sobre Jorge amado ,fez-me lembrar de outros autores que li na faculdade. Foi uma pena meus professores não terem indicado Jorge Amado.
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