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Educação

A educação como caminho para a liberdade

By 07/11/2014No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Há cerca de um mês, a Academia Karolinska anunciou os ganhadores do Prêmio Nobel da Paz. Em 2014, uma dupla dividiu a honraria: o indiano Kailash Satyarthi e a paquistanesa Malala Yousafzay, pela “luta deles contra a supressão das crianças e jovens e pelo direito de todos à educação”. Não é a primeira vez que duas pessoas compartilham o Nobel. Mas é a primeira vez que, ao lado de um senhor de 60 anos, ativista dos direitos das crianças na Índia, esteve uma adolescente de 17 anos. Malala é, assim, a ganhadora mais jovem do prêmio e supera o cientista britânico Lawrence Bragg, que compartilhou o Nobel de Física com o pai, em 1915, aos 25 anos.

No entanto, não é somente a tenra idade da ativista paquistanesa que chama a atenção em sua trajetória. Ela ganhou notoriedade mundial depois de tomar um tiro disparado por talibãs contrários à luta da garota pelo direito à educação feminina no Paquistão. O pai de Malala era dono de uma pequena escola para meninas que funcionava no fundo da casa da família e a vencedora do Nobel cresceu cercada por esse ambiente escolar. Por sugestão de um jornalista da BBC, a garota começou a escrever um blog no qual defendia a educação e foi se tornando conhecida como seu pai. À medida que o regime talibã no Vale do Swat, uma região especialmente pobre do Paquistão, foi recrudescendo, a militância de Malala e de seu pai foi ganhando importância e irritando os membros do grupo fundamentalista religioso. Tanto assim, que no dia 09 de outubro de 2012, quando ainda tinha 15 anos e voltava da escola num ônibus para estudantes, a jovem foi alvejada no rosto. Depois de quase morrer e passar por uma cirurgia num hospital na cidade de Peshwar, a estudante foi transferida para Birminghan, na Inglaterra, onde começou a se recuperar. Passados quase dois anos, a menina tem uma vida quase normal. Frequenta uma escola da cidade inglesa e continua atuando na área da educação.

“Paz é muito mais que ausência de guerras, como disse John Kennedy. A paz com a qual a ONU e o Instituto Karolinska trabalham é aquela que se alcança com a segurança humana, ou seja, quando todas as pessoas têm o que comer, onde morar, podem se manifestar e ter o direito de pedir por uma vida melhor”

Educação, um direito humano

A pergunta que cabe fazer, mesmo diante de uma trajetória tão formidável em tão poucos anos de vida é: por que os organizadores do Nobel atribuíram o louro da Paz para quem milita na área da educação? Que sinais a academia queria passar ao mundo quando fez essa escolha? O cientista político Maurício Santoro, assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, considera a escolha muito boa e inspiradora. “Primeiro porque Malala leva a vida escolar tão a sério que avisou aos jornalistas que só se pronunciaria quando o ano letivo terminasse. E foi exatamente o que fez”, brinca. “Segundo, porque a escolha de Satyarthi e principalmente de Malala sinalizam a retomada de um valor que andou meio perdido”, completa. Santoro se refere à ideia de que a educação é um direito humano que precisa ser valorizado por qualquer Estado. “Paz é muito mais que ausência de guerras, como disse John Kennedy. A paz com a qual a ONU e o Instituto Karolinska trabalham é aquela que se alcança com a segurança humana, ou seja, quando todas as pessoas têm o que comer, onde morar, podem se manifestar e ter o direito de pedir por uma vida melhor”, sugere o assessor, que também é professor da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro. A ideia de que a educação está na base de tudo isso não é nova e remete, com mais força, ao pós-Segunda Guerra Mundial, quando a ONU foi criada, por exemplo. Naquele momento, o mundo flertara de mundo perto com a barbárie. Era preciso refundar o ideal civilizatório.

“No caso da Malala, mesmo que ela tenha um pai educador e ativista por trás, é ela, criança ainda, quem sai em defesa da sua educação e da formação das outras meninas. Isso é inovador”

Menos entusiasmado com o resultado do Nobel da Paz, o professor de Filosofia da Educação da Universidade de São Paulo, José Sérgio de Carvalho, chama a atenção para outro aspecto: não é possível prever se a sinalização da Academia Karolinska em direção à educação oferecerá de fato resultados positivos. “Não dá para dizer que necessariamente a escolarização levará à paz. O que a gente vê hoje é que a noção de educação está muito ligada à ideia de progresso, que é a forma pela qual o homem lida com o tempo”, começa a explicar, “E foi do Iluminismo para frente, a partir do século 17, que a educação passou a ser encarada como uma etapa necessária para a construção do futuro”. Na mesma toada, o professor da USP lembra que a grande escolarização de um povo como os alemães não os impediu de protagonizar, nas décadas de 1930 e 1940, situações que são o oposto da paz – em qualquer concepção.

De qualquer forma, reconhece Carvalho, o Nobel tem um forte significado simbólico e inovador, porque talvez acene para a emersão de uma nova sociedade, “na qual a própria criança reivindica para si o direito à educação”, defende. Tradicionalmente, é o adulto quem toma esse tipo de atitude, quem sai em defesa da criança, apostando que sem a educação ela não terá direito de se constituir plenamente como ser humano. “No caso da Malala, mesmo que ela tenha um pai educador e ativista por trás, é ela, criança ainda, quem sai em defesa da sua educação e da formação das outras meninas. Isso é inovador”, explica o professor.

Educação libertadora, emancipadora

A criança que a paquistanesa representa rompe com a condição de objeto que a sociedade adulta impõe aos petizes e assume um lugar de sujeito, de protagonista da sua trajetória e, desse lugar, cobra para si e para os demais meninos e meninas o direito à educação. “A criança estuda e é educada para que seja um adulto pleno. Na situação desse Nobel, o que vemos é um paradoxo, porque Malala é uma menina e já alcançou o lugar de um humano pleno – a ponto de discursar na ONU, ser reconhecida mundialmente e ganhar um Nobel –, é um lugar ao qual ela só deveria chegar quando se tornasse adulta e terminasse sua educação”. Em outras palavras: se uma criança com a formação incompleta pode reconhecidamente alcançar uma posição que, teoricamente, só a educação completada ao longo dos anos concederia, para que educar então? “Uma criança chegou no mesmo ponto previsto pelos adultos sem completar o caminho previsto pela sociedade. Acho que precisamos então pensar essa formação e o papel da criança nesse caminhar”, provoca Carvalho.

“Não temos guerras declaradas no Brasil, mas muitos de nossos alunos vivem próximos a situações de violência muito parecidas com aquelas que temos nas guerras clássicas”

Já o cientista político aposta em bons ventos que soprarão após a conquista do Nobel por Malala. “Ela é uma apaixonada pela educação. Ela, o pai e a família toda. E, nós, como educadores, claro que ficamos emocionados. Impossível não se identificar com quem dedica a vida e enfrenta a morte por defender o direito à educação”, comemora. No entanto, Santoro acredita que nem todos os professores se deram conta de que o Nobel da Paz de Malala foi também um pouco para cada um deles. Para ele, o Nobel está apostando na força de cada educador como agente de transformação do mundo que temos hoje para um mundo mais pacífico. “Não temos guerras declaradas no Brasil, mas muitos de nossos alunos vivem próximos a situações de violência muito parecidas com aquelas que temos nas guerras clássicas”, defende. “A Anistia Internacional trabalhou de perto com estudantes da Favela da Maré, no Rio de Janeiro, e vários deles contam que às vezes não têm aula, porque os chefes locais proíbem, ou por conta dos tiroteios, ou porque mataram algum colega ou professor”, reforça. Aliás, o professor da Candido Mendes lembra que várias cenas de bombardeio e tiroteio descritas por Malala em sua biografia (Eu sou Malala, editado pela Cia das Letras) parecem muito com a realidade de várias comunidades das periferias das grandes cidades.

“Sempre que bater um desânimo, os professores deveriam assistir ao discurso que a garota fez na ONU, é curto, simples, mas dotado de uma força incrível, um poder de oratória impressionante”.

Por que será que professores não entenderam o recado dessa maneira, ou ao menos não se manifestaram claramente a respeito disso? “Apatia. Uma apatia que mata de inanição a paixão por educação”, lamenta Santoro. As razões, segundo ele, são várias, porque a condição da educação, das escolas e dos professores no país é mesmo precária e os motivos para desanimar não são poucos. No entanto, um prêmio Nobel como o que Malala recebeu pode ser uma inspiração, um fator motivador, “porque ela é uma estudante como tantas outras com quem encontramos nos corredores do colégio. Mas é uma jovem cheia de sonhos, que volta sua artilharia e suas realizações para a escola”. Ele dá mais uma dica: “Sempre que bater um desânimo, os professores deveriam assistir ao discurso que a garota fez na ONU, é curto, simples, mas dotado de uma força incrível, um poder de oratória impressionante”.

O professor da USP concorda. Há algo de muito bonito nisso tudo. “Além do protagonismo da criança e do jovem, Malala traz para o primeiro plano a beleza que é acreditar na emancipação pela via da educação escolar”, aponta. Desde os anos 1960 e 1970, a escola vem sendo vista como um lugar de repressão, reprodução e castração. As consequências disso são, via de regra, muito negativas para o indivíduo e para a sociedade. Há várias discussões em âmbito acadêmico em relação a essa percepção do que há de negativo na formação escolar. O próprio Carvalho defende que a função econômica da escola, como pedágio necessário para uma vida bem sucedida, não emancipa ninguém, porque leva a uma captação do estudante e de sua família pelo discurso corporativo como o único passaporte para a realização. “Esse caminho não leva para a libertação dos dogmas, não se contrapõe à cultura vigente. O que Malala traz de novo para a gente é que ela acredita e trabalha para que a educação seja de fato libertadora, emancipadora, dialogue com a cultura vigente e liberte os humanos dos dogmas”, conclui.

Crédito da foto: Malala Fund

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