Por Zoia Prestes*
“Vivo porque amo a vida, amo o dia e a noite, amo a luta, gosto de ver o homem crescer, lutar contra a natureza e, entre outras, contra a sua própria natureza… O homem deve ter uma só especialidade: deve ser um ser humano verdadeiro.”
Anton Semiónovitch Makarenko
Para falar de Anton Semiónovitch Makarenko no Brasil, é preciso voltar um pouco na história e refletir sobre seus métodos elaborados na prática diária de um educador em circunstâncias históricas precisas. Antes de fazê-lo, porém, gostaria de compartilhar com os leitores o conteúdo da carta escrita a um crítico por um grupo de rapazes que passaram pela Comuna Dzerjinski, a segunda instituição dirigida por Makarenko e que serviu de pano de fundo para outro livro seu, Bandeiras nas torres (1938). A revolta com a avaliação leviana feita pelo crítico era tamanha que a carta repelia por completo o exposto pelo autor do artigo e o que ele denominava de “história inverídica, um idílio”.
Em um dos trechos a carta dos rapazes é enfática: “Afirmamos que a vida descrita no livro de A. S. Makarenko existiu e que realmente existiu a Comuna Dzerjinski, denominada no romance de Colónia Primeiro de Maio. Nós somos seus educandos. Lá realmente existia um palácio, uma vida coletiva que estava muito acima da simples convivência de jovens desorganizados. No romance aparece o coletivo que cresceu durante a experiência de dezesseis anos e que absorveu o melhor do que foi realizado na Colónia Gór- ki. E isso está no Poema pedagógicoVP
Em outro ponto, o autor do referido artigo diz que, ao analisar um pouco mais a fundo os personagens do romance, percebe-se que eles não eram menores infratores e que nunca tinham tido desvios que deveriam ser corrigidos. A resposta dos educandos é ainda mais direta: “Interessante. O que o senhor considera um menor infrator? Um Jack, o estripador, que é repleto de todos os vícios, desvios e deformidades e provoca no senhor uma repulsa senhoril e um interesse insano que o senhor nem se esforça para disfarçar? Tendo esta opinião sobre as crianças, o senhor nunca entenderá Makarenko, que foi um verdadeiro humanista e um ardoroso incentivador e defensor do coletivo soviético, considerado por ele insuperável em sua força”.
Para Makarenko, uma criança ou um adolescente de rua ou infrator era antes de tudo uma criança ou um adolescente soviético, pois encontrava-se naquele momento naquela situação. Aquelas meninas e meninos haviam sido expulsos de casa por desgraças ou infortúnios, mas estudaram, se formaram, tinham consciência, entendiam sua situação complicada e sempre procuravam uma saída. Adiante, os educandos mencionam uma das regras de convivência dentro da comuna, referindo-se à decisão tomada pelo coletivo de não ficar perguntando sobre a vida passada. Ninguém sabia nada de ninguém, a vida parecia ter começado ali, o coletivo se formava ali e isso ajudava a esquecer o passado e se sentir criança ou adolescente.
Neste livro, o leitor terá a oportunidade de ver como se deu toda a construção da relação entre os adultos, as crianças e os jovens. De forma alguma ela foi “idílica”, e a decisão de não revelar o passado das crianças e adolescentes foi tomada por causa dos preconceitos existentes à época.
O Poema pedagógico relata em forma de ficção a vida na Colónia Mak- sim Górki entre 1920 e 1928. A Rússia no início do século XX era um dos países mais atrasados da Europa, com uma população basicamente camponesa (90%). No entanto, possuía uma intelectualidade pensante de alto nível, que foi capaz de se organizar e organizar a ainda pequena classe operária e liderá-la na luta contra o tsarismo decadente.
Até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), havia na Rússia mais de 2,5 milhões de crianças abandonadas. Com a vitória da Revolução de Outubro de 1917 a situação se agravou ainda mais. E mesmo com o país arrasado pela guerra civil, deflagrada pelas forças contrárias à Revolução, o novo governo dos Sovietes estabeleceu as prioridades e apontou para a necessidade da formação do novo homem. Em função disso, a atenção da sociedade é voltada para as crianças e adolescentes abandonados, que já chegavam então ao número assustador de 7,5 milhões. A título de exemplo, cito alguns dados que revelam o envolvimento do novo governo com o problema da criança: em 1917, havia 30 mil crianças em abrigos, orfanatos ou colónias; em 1919, já eram 125 mil; em 1921, esse número crescera para 540 mil. Para abrigar as crianças e protegê-las da degradação física e moral, começaram a ser criadas as casas da criança, que, até o início de 1921, já eram 5 mil unidades atendendo a 260 mil crianças órfãs ou abandonadas. No ano seguinte, esse número cresceu para 7.815 casas com 415 mil crianças abrigadas.
Anton Semiónovitch Makarenko nasceu em março de 1888 numa pequena cidade chamada Bielopólie, na província de Khárkov, na Ucrânia, de uma família operária que foi a referência para a formação do futuro educador. Os pais de Makarenko não tiveram a oportunidade de estudar e, por isso, não pouparam esforços para que o filho recebesse uma boa formação. Anton Semiónovitch, desde pequeno, dedicava-se não só aos estudos, mas demonstrava interesse por música, literatura, artes plásticas, frequentava teatros e participava de grupos teatrais na escola. Muitas vezes, era ele que substituía o professor nas aulas. Uma de suas atividades preferidas era a leitura; seus escritores favoritos eram Górki e Gógol, muitas vezes citados em seus livros. Os poetas Púchkin, Liérmontov e Nekrássov também faziam parte de suas predileções. No entanto, havia um escritor que, além de ser um dos seus preferidos, tornou-se seu professor e incentivador na arte de escrever. Quando estava estudando no Instituto de Poltava, depois de mais de dez anos de trabalho como professor primário, Makarenko enviou a Maksim Górki um de seus primeiros contos. Assim, teve início a grande amizade que resultou numa longa troca de correspondência entre os dois.
O Instituto de Poltava foi um marco na vida profissional de Makarenko. Ali ele aprofundou seus conhecimentos pedagógicos ao longo de dez anos no exercício da profissão de professor. No verão de 1917, alguns meses antes da Revolução de Outubro, Makarenko terminou os estudos no Instituto com medalha de ouro, recebendo as melhores recomendações do corpo docente. Ele adere ao processo revolucionário e declara que esse acontecimento “transformou a vida de pessoas, a vida do país e a vida do mundo”. De fato, os acontecimentos de Outubro marcaram profundamente a vida de Makarenko, não só como educador, mas como escritor.
Durante os difíceis anos de guerra civil, Makarenko começa a sentir que precisava elaborar novos métodos educacionais que, posteriormente, iria pôr em prática em seu trabalho com crianças e adolescentes abandonados e infratores. E nesse momento que começam a se delinear as ideias sobre a importância do coletivo infantil e do trabalho consciente e produtivo para a formação das novas gerações. Makarenko dedicou dez anos de sua vida ao Poema pedagógico. Os registros diários de tudo o que acontecia na instituição, de suas angústias, perdas e vitórias serviram de pano de fundo para o livro. Mas foi Górki quem, após visitar a Colónia, ressaltou a importância de registrar o trabalho lá desenvolvido. Assim, Makarenko começa a dar corpo e alma a este livro maravilhoso.
O que explica o grande interesse de Górki pelo registro do trabalho pedagógico de Makarenko é a curiosidade do escritor pela formação do novo homem, um homem que deveria ter novas posições diante de um mundo ainda por fazer, trilhando novos caminhos de esperança e de uma disciplina coletiva e criativa. Perspectivas que eram vislumbradas pela Revolução de 1917. Após ler os primeiros capítulos, Górki incentivou Makarenko e o convenceu da importância da obra.
E ele tinha razão. Até hoje o Poema pedagógico é lido e relido por pedagogos no mundo inteiro, e sua atualidade é indiscutível. Um exemplo disso é a experiência narrada pelo educador Antonio Carlos Gomes da Costa em seu livro Aventura pedagógica (1999). Nele, o autor revela como, ao assumir a direção de um abrigo para meninas em Ouro Preto, Minas Gerais, empreendeu buscas teóricas para enfrentar os desafios apresentados pela dura realidade desse tipo de instituição no Brasil. Depois de ouvir falar do livro de Makarenko, procurou, mas não encontrou, versão em português. Encomendou então um exemplar em espanhol e, depois de um longo tempo de espera, deparou-se na leitura dos primeiros capítulos do Poema pedagógico com a chave para suas angústias: “!…] senti que não havia nenhuma ciência, nenhuma teoria que pudesse, de forma imediata, nos ajudar naquela hora. Eu deveria deduzir tudo do conjunto de acontecimentos reais que transcorriam ante meus olhos”.
Agora, após uma primeira edição há muito esgotada, o leitor brasileiro tem novamente acesso ao Poema pedagógico de Makarenko, na bela tradução de Tatiana Belinky. O romance conta o dia a dia de uma colónia para menores infratores na Rússia pós-revolução socialista de 1917. A Colónia Górki foi fundada após a guerra civil, quando estava na ordem do dia da jovem educação soviética a formação do novo homem e, principalmente, a transformação das crianças abandonadas, crianças que haviam cometido furtos e crimes e sofrido as condições desumanas da guerra. Essas crianças teriam a tarefa de construir a nova sociedade justa, fraterna e livre. Pois é exatamente a formação desse novo homem, no novo coletivo (ou, podemos até arriscar dizer, da nova sociedade), com características morais e ideológicas novas, que o Poema pedagógico descreve.
Durante os anos em que fez os registros que posteriormente se transformariam em livro, Makarenko passou por sentimentos que qualquer educador comprometido com o seu trabalho transformador de educar experimenta. Os altos e baixos de seus sentimentos podem ser percebidos na narrativa: ora acreditava no sucesso e comemorava com os educandos, ora se sentia impotente, não conseguia perceber os avanços e usava de métodos muitas vezes condenáveis, para que o respeito pelo ser humano prevalecesse no coletivo. A experiência de Anton Makarenko na Colónia Górki para crianças abandonadas na Ucrânia tornou-se referência para os profissionais da educação. Essa “aventura”, como a chamava Makarenko, teve início em 1920, quando aceitou o desafio de lidar com meninos criminosos, socialmente desajustados e humanamente famintos.
O começo não foi fácil, nem para os educadores, nem para os educandos. Os colegas de Anton Makarenko muitas vezes entravam em desespero, assim como ele próprio. Nas recordações sobre esse período, Makarenko confessa que usou de força para impor limites ao receber uma ofensa pessoal, dando uma surra num dos mais temíveis rapazes que recebera na Colónia. Essa atitude foi severamente criticada por todo o coletivo de professores, mas ao mesmo tempo revelou que a prática educativa precisava de uma metodologia que integrasse num só coletivo tanto os educandos como os educadores.
A partir desse episódio, Makarenko teve uma certeza: era impossível usar sua bagagem teórica e aplicá-la de maneira metódica e fria para conseguir o mínimo de disciplina para organizar aquele coletivo de crianças e jovens sofridos e rejeitados pela sociedade. O grande desafio estava em estabelecer um diálogo, romper com a relação de influência e imposição. Isso fez com que Makarenko chegasse à primeira grande descoberta: todos deveriam sentir-se parte fundamental de um todo, com uma disciplina rígida, delegando e assumindo responsabilidades para organizar a convivência do grupo. Todos tinham responsabilidades e respondiam por elas num sistema de revezamento, de tal forma que todos pudessem trocar de papéis e conhecer as responsabilidades de cada situação; enfim, sentirem-se corresponsáveis pelo coletivo.
Para mim, que vivi na U.R.S.S. dos 7 aos 22 anos e absorvi muitos traços daquela cultura, devo dizer que foi marcante em minha formação a relação saudável e prazerosa que estabeleci com o trabalho, seja individual ou em grupo, seja físico ou intelectual. Quando passei a conhecer e a admirar a biografia de Makarenko, notei o quanto havia de sua contribuição na constituição das principais linhas da pedagogia soviética, baseada na filosofia marxista sobre o trabalho. Nosso trabalho não era estimulado pelo consumo, como ocorre na sociedade capitalista. Ali o trabalho fazia parte do nosso cotidiano, ajudava a estabelecer relações, a trocar informações e participar das decisões. Além disso, o trabalho nos educava para a responsabilidade diante do coletivo. Makarenko dizia que a nova sociedade deveria se preocupar não com a formação de força de trabalho jovem, mas sim com a formação de pessoas com iniciativa e, sobretudo, com criatividade. Esta ideia certamente baseia-se em um dos postulados mais importantes da filosofia marxista que, além de dizer que o trabalho criou o homem, afirma também que “ao mudarem as relações de vida entre os homens, suas relações sociais, sua existência social, mudam também suas representações, suas opiniões e suas ideias, em suma, sua consciência…”.
Makarenko assimilou a educação social soviética como uma das mais maravilhosas ideias da humanidade. Porém, dizia desde o início: “Nós construímos a nossa linha num plano experimental, sem dogmas previamente estabelecidos”. E isso levou à revisão da educação soviética.
No verão de 1928, nos últimos anos de Makarenko como diretor da Colónia Górki, tema do Poema pedagógico, o educador afirmava que lá na Colónia “havia sido realizada a verdadeira educação soviética”. Segundo ele, nessa nova educação deveriam estar juntos: o Estado, a nova família e o “totalmente novo ativista — o coletivo infanto-juvenil social e produtivo”.
Três dias antes de morrer, Makarenko reafirmou em sua última palestra pública, realizada num fórum de professores da Estrada de Ferro Iaroslav- skaia: “eu insisto, a questão da educação e a da metodologia da educação devem ser separadas da questão do ensino. Devem ser separadas, principalmente, porque o processo educacional não acontece somente dentro da escola”.
Makarenko nunca desprezou a importância do papel do ensino na educação. Ao contrário, em seus estudos pedagógicos sempre reconheceu o valor do ensino e na prática o colocava em primeiro lugar. Ele simplesmente considerava que essa questão já estava em pauta e existiam muitos estudos sobre o assunto; o que se fazia necessário era estudar os problemas da educação.
Por isso, Makarenko é um inovador no que se refere a estudos e práticas pedagógicas, no sentido de unir a educação e o ensino com o trabalho produtivo, elaborando estudos sobre o papel educativo do trabalho, da autogestão, da coletividade e do desenvolvimento livre da personalidade. Basta lembrar que o trabalho de ensino e educação na Colônia Górki ultrapassava o desenvolvimento da educação no país. Na Colônia, Makarenko utilizou, como em todas as escolas do país na época, o sistema de ensino com a abordagem plural, mas a complementou com a criação de cursos de preparação para o ingresso nas faculdades de trabalhadores.
A lógica makarenkiana estabelece que a prática permite, na vida real, educar o organizador e criar com isso o sistema normativo de relações. A forte ligação com a vida real se faz por meio da formação do “coletivo educativo”, o mesmo para pedagogos e educandos, todos trabalhadores da instituição (um tipo de “comunidade de trabalho”), que deve tornar-se a “célula de direito da sociedade” e incluir os componentes da vida “adulta”: sistema de direitos, de administração e financeiros, de gestão, de relações.
Assim foi na Colónia Górki. No Poema pedagógico, o leitor tem a oportunidade de ler e conhecer o magnífico trabalho desenvolvido com crianças e jovens que haviam perdido qualquer referência comunitária. Acredito que hoje, quando vivemos num mundo tão injusto e desigual, tão egoísta e con- sumista, este livro poderá contribuir de modo decisivo para a formação de muitos educadores, que têm a difícil tarefa de conflitar com as ideias estabelecidas e formar pessoas críticas, com um senso de coletivo que se afirme acima do individualismo, numa perspectiva de valorização da história cultural e social do ser humano.
Por tudo isso, a experiência de Makarenko deve e precisa ser revisita- da e aprofundada, assim como seus princípios de educação: educação no trabalho, percebendo em cada ser humano suas capacidades e individualidades; percebendo a interação entre a personalidade e a sociedade numa relação dialética constante, pois, na perspectiva de Makarenko, “a personalidade não pode ser pensada fora da sociedade”. Nosso debate atual, de educadores e de professores, deve levar em conta a importância de educar no e pelo coletivo.
A opção de deter-me aqui em alguns pontos de vista de Makarenko sobre a educação se deve à minha crença de que o Brasil precisa refletir sobre a escola brasileira, real, de hoje. Temos que nos ocupar mais com as questões relativas à escola como espaço institucional oferecido a nossas crianças. Quem são os professores que nelas trabalham, formam e ensinam milhões de cidadãos? Para que temos formado as crianças e os jovens? Para a vida, como cidadãos, ou para o selvagem mercado de trabalho?
Temos falado muito na necessidade de articulação entre as diferentes áreas para a formação do ser humano, pois não podemos mais pensar em ações isoladas para garantir direitos. A experiência de Makarenko pode apontar caminhos para novas propostas nas políticas públicas brasileiras, já que ele foi um pioneiro no trabalho com crianças que perderam seus vínculos familiares, e acreditava firmemente que a transformação do ser humano se dá pelo coletivo educacional e pelo trabalho.
E não só acreditou, como provou. O mundo capitalista está muito longe de conseguir equacionar o problema da criança na rua. A criança e o adolescente não estão entre as prioridades das políticas públicas. Não só a Rússia de hoje, mas muitos países vivem com milhões de crianças abandonadas, em situação de risco, cometendo crimes e sendo exploradas pelos adultos. Esse número cresce assustadoramente no mundo inteiro, a cada dia.
Por isso, o professor ou educador comprometido com sua prática não pode deixar de lê-lo. Mesmo tratando de um país e de um período tão diferentes do nosso, o Poema pedagógico permanece atual. É um livro que merece a nossa
reflexão crítica, sem transposição mecanicista, mas como ponto de partida para a prática de transformar as relações de vida entre os homens, para a prática de organizar o coletivo infanto-juvenil social e produtivo, para a compreensão da relação dialética que existe entre a educação e o coletivo, e para fazer, enfim, com que o ser humano exerça a sua especialidade de “ser um ser humano verdadeiro”.
* Zoia Prestes é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminenes, formada em Pedagogia e Psicologia pela Universidade Lenin de Pedagogia de Moscou. Residiu exilada 15 anos na União Soviética. Traduziu para o português obras de escritores como Pasternak, Bulgakov, Maiakovski, Bukharin, Gumiliov. Atualmente, dedica-se à tradução para o português da obra de Lev Vigotski, um dos maiores expoentes da teoria histórico-cultural que nasceu com o advento da Revolução de Outubro.