Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Dia 18 de julho é, para quem sonha e luta por outros mundos possíveis e pelos ideais dos direitos humanos, dia de comemorar. O sul-africano Nelson Mandela, um dos gigantes líderes políticos do século XX, completaria 100 anos nesta data. A história e o legado deixados por ele parecem longe de estar esgotados – ao contrário, efemérides como essa representam boas oportunidades para resgatar a importância de Madiba, como também era carinhosamente conhecido, e para atualizar o debate sobre os feitos dele e os significados que teve para a África do Sul – e para todo o planeta.
Mandela nasceu em 1918, em Johanesburgo. Na juventude e na vida adulta, desde os tempos de movimento estudantil, destacou-se como um líder de oratória apurada e que não aceitava ver seu povo perseguido e oprimido. Enquanto estudava Direito, iniciou sua formação e participação em organizações políticas e acabou sendo um dos protagonistas na resistência contra o regime segregacionista do Apartheid, implantado oficialmente na África do Sul em 1948.
Ele logo se tornaria uma das lideranças mais influentes do Congresso Nacional Africano (CNA), principal força de combate ao regime racista sul-africano. Mandela chegou a defender, nos anos 1950/60, a luta armada como instrumento legítimo de resistência. Carismático, respeitado por seu povo, influenciado pelas ideias marxistas, ameaça real ao governo dos brancos, foi julgado por traição, condenado e preso, em 1962. Durante 28 anos, em Robben Island, num presídio de segurança máxima, foi o preso político mais famoso do mundo. Sua liberdade só foi conquistada em 1990, com o fim da Guerra Fria. A eleição para a presidência da República sul-africana veio imediatamente depois, em 1994, fato que representou também o fim do Apartheid. Um ano antes, em 93, Mandela já tinha conquistado o prêmio Nobel da Paz.
Olhando para essa biografia, o doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB), Nidi Bueno, defende que tudo, na trajetória de Madiba, representa avanço. Mas que o maior avanço é mesmo institucional. “Há 100 anos, ou há 80, quando Mandela fazia política na universidade, o mundo em que ele vivia não permitia uma expressão real e profunda da cidadania nem dos negros nem dos não-brancos, porque é preciso falar dos indianos também”. Professor da Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, e do Centro Universitário Euroamericano, Unieuro, Bueno prossegue: “É ganho institucional porque a África do Sul sai de um estado colonial e vira um estado independente, democrático e republicano, institucionalmente constituído”, propõe.
Mais que isso, sob a batuta de Madiba, o regime excludente e indefensável do Apartheid – que protegia e concedia privilégios apenas os brancos e segregava os não-brancos politicamente, educacionalmente, socialmente e geograficamente – foi revogado e suas manifestações seriam uma a uma criminalizadas. “Esse foi o segundo grande avanço liderado por Mandela, um avanço de ordem social e dos direitos civis, mas pela via institucional, novamente”, acredita Bueno.
Para ele, o terceiro grande avanço promovido pelas reformas de Madiba está ainda em andamento, porque diz respeito às mudanças culturais. “São muito mais lentas e com uma dinâmica muito própria, difícil de barrar ou de acelerar”. Ele se refere ao preconceito racial propriamente dito. Algumas gerações ainda precisarão ir e vir para que se possa de fato consolidar a noção de que brancos, negros, indianos e amarelos têm os mesmos direitos e devem ser igualmente respeitados.
Prisão
Nelson Mandela, durante a juventude, afinou-se com o socialismo, defendia ideais marxistas e acreditava que uma das saídas possíveis para seu país era a luta armada, a guerrilha. Quase três décadas depois, saindo da prisão, Mandela era um líder equilibrado, democrata e legalista. Algo aconteceu nesse intervalo. Para o pesquisador da UnB, essa mudança garantiu que Mandela continuasse sendo um líder, mas que, em liberdade, pudesse convencer mais gente e mudar o rumo da África do Sul.
O professor da Universidade de Ohio e da Unieuro concorda que a história de Madiba tem um antes, o encarceramento, e um depois, já em liberdade. “Foi um amadurecimento, uma transformação, mas sem jamais balançar o compromisso que ele tinha com a causa”, ensina. O fato é que o sul-africano inicia sua militância política defendendo os direitos dos negros e estava disposto a chegar a esse resultado através de qualquer meio. “Era, então, o líder dos negros, da resistência”, explica Bueno. Naquele momento, início dos anos 1960, a perspectiva da revolução via luta armada era muito forte e sedutora. “Era a época da Guerra Fria e as armas disponíveis eram a guerra de guerrilha, o enfrentamento armado aos governos opressores, a tomada do poder, como o que acontecera no leste europeu, no Vietnã e em outros lugares do mundo”, lembra o professor.
Mas vem a prisão e os 28 anos que se seguiram a ela. O que Mandela fez nesse tempo que garantiu que o líder seguisse nas manchetes dos jornais e no imaginário das pessoas? “Ele leu”, ri Nidi Bueno. Parece brincadeira, mas foi isso mesmo. “Mandela leu muito. Leu outros grandes líderes, como Gandhi, que teve sua formação e o início da trajetória política na África do Sul e de lá partiu para libertar a Índia, de forma não violenta”, conta. Mas Madiba leu mais. “Ele leu o mundo. Esse era um grande talento dele. Ele lia o mundo, o tempo em que estava”, provoca.
Na chegada à prisão, o mundo vivia o auge da Guerra Fria. Mandela entendia isso e aproveitava esse tempo, essa onda. Leu e decodificou tudo que chegava a ele, mesmo atrás das grades. “Por isso é que a gente diz que dentro da prisão ele estava tão ou mais ligado ao mundo do que quando estava solto”, defende Bueno.
Num exercício rápido, volte ao ano de 1989: queda do muro de Berlim, na Alemanha; abertura política e econômica, na União Soviética; massacre da Praça da Paz Celestial, na China; eleições diretas no Brasil e por aí vai. “A Guerra Fria estava terminando, a União Soviética estava se desmantelando, a sensação era de que o ocidente vencera aquela batalha ideológica do século XX”, propõe o professor da Universidade de Ohio. A África do Sul atravessava sinais de uma guerra civil e o nome de Mandela ia sendo lembrado como solução para unificar brancos e não brancos e ainda os negros de todas as etnias.
Uma campanha pela libertação do líder vai ganhando corpo, conquista ecos internacionais e, em 1990, Mandela é, finalmente, libertado. Um senhor de 70 anos, firme, equilibrado e, principalmente, moderado. “Quando ele sai da cadeia, já não era mais o líder dos negros, mas sim o líder de todos os sul-africanos que defendiam a democracia e o fim do regime separatista para brancos e não-brancos”, afirma Bueno. Isso foi possível, acredita o professor, não por um afastamento dos ideais ou dos compromissos com a causa que o inquietavam na juventude. “Ele topa desideologizar o discurso e a prática em nome do resultado. Ele propõe um governo de coalizão, chama o antigo presidente do país para ser um dos vice-presidentes de seu governo e defende uma África do Sul multirracial, ou seja, para todos”, analisa o professor.
A África do Sul do presidente Nelson Mandela estava absolutamente sintonizada com o contexto das democracias ocidentais – exatamente como aconteceu na América Latina, também recém-saída de ditaduras civis-militares. “Estar absolutamente afinado com seu tempo, novamente, foi o que garantiu que líder convencesse parte da elite branca tão refratária e outros grupos dispostos a rever o sistema de segregação e refundar o estado sul-africano”, analisa.
Mandela hoje
O professor Nidi, além de ser pesquisador em relações internacionais, tem uma aproximação com ex-presidente por ter trabalhado na organização do Mandela Day – 18 de julho é assim determinado pela Organização das Nações Unidas (ONU) – e ainda por ter trabalhado no Departamento de África Austral do escritório mundial da Anistia Internacional, em Londres. Mas ele mesmo admite que não é um caminho frequente. “Diferente da Europa e dos Estados Unidos, onde há varias centros de ‘estudos da África’, as universidades brasileiras, públicas e privadas, não possuem muitos recursos, financeiros e humanos, dedicados ao estudo do continente-mãe”, lamenta.
Ainda segundo Bueno, a aproximação com a África como um todo e com a África do Sul, em especial, seria muito interessante para o Brasil. Não só do ponto de vista acadêmico, com produção de pesquisas e conhecimento, mas também do ponto de vista histórico e das inspirações. “O modelo de liberdades individuais garantidas a qualquer custo que o ocidente impôs no fim da Guerra Fria está sendo superado. Até os Estados Unidos sucumbiram a esse modelo, foi uma fronteira derrubada”, afirma o professor.
Segundo ele, ter líderes políticos que, do ponto de vista institucional, soubessem ler esse tempo e propor saídas políticas para manter e aprofundar a democracia seria importante. “Lula da Silva foi o mais perto que o Brasil chegou desse padrão Mandela de fazer política, mas ele foi envolvido em questões de corrupção – algo bem do tempo em que estamos – e configura uma decepção, nesse sentido”, analisa Nidi. Mas, novamente, é preciso lembrar que Madiba terminou sua trajetória ainda nos anos 2000, quando a terceira onda democrática ainda era o padrão ouro do mundo. Depois dela – e é bem o tempo em que estamos, na opinião de Bueno – veio a terceira onda anti-democrática que, pela primeira vez na história recente, atinge os países centrais, como Estados Unidos, Inglaterra e França.
Um dos diferenciais de Mandela foi, de acordo com o professor de Ohio, ter transitado pelo lado mais liberal e pelas alas mais conservadoras de forma incólume, digna, democrática, sem acusações, sem decepcionar ou trais seus seguidores e seu povo. Pela grandeza de suas ideias, pela firmeza de suas convicções, pela liderança que exerceu nos duros tempos de lutas contra o nefasto Apartheid e depois, já na presidência, ao determinar o fim do regime racista, Nelson Mandela é um sujeito político de muitos tempos – que continua a inspirar as lutas por outros mundos possíveis.