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Destaque

“Trabalho é valor, não é mercadoria”

By 15/05/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

O livro chegou discreto, entre outras tantas correspondências, num envelope branco. Ali dentro, uma edição de Adeus ao trabalho?, do sociólogo Ricardo Antunes, com capa nova e conteúdo mais recheado. Enquanto as páginas eram viradas e as novidades que atualizam esta versão eram descobertas, o noticiário midiático destacava a negociação entre partidos da base do governo federal para que o cantado em verso e prosa ajuste fiscal fosse aprovado no Congresso. Na Câmara, mesmo com dificuldades e votação apertada, o Executivo conseguiu impor sua agenda de cortes. Dias antes, quando o livro provavelmente estava sendo postado no Correio, os deputados aprovaram o PL 4330, que dispõe sobre a terceirização das relações de trabalho – que consagra a possibilidade de terceirizar toda a mão de obra, inclusive aquela que desempenha a atividade fim da empresa.

Neste cenário em que os trabalhadores voltam a ver direitos históricos ameaçados e reduzidos por conta de uma narrativa que se impõe como dominante e que defende que flexibilizar conquistas trabalhistas é o caminho da salvação e o início do fim da crise econômica, o livro de Antunes é – ainda mais – leitura obrigatória. Embora tenha sido originalmente escrito em 1995, no auge na política econômica neoliberal que regia o Brasil, Adeus ao trabalho? permanece assustadoramente atual. As teses propostas pelo autor, professor de Sociologia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do universo do trabalho há 40 anos, servem como contraponto àquele discurso fatalista e que representa o mundo dos sonhos para os empresários – e pesadelos para os trabalhadores. Mas não só isso. Antunes joga luzes sobre a ideia de que é preciso refundar o mundo do trabalho, a partir de outros valores e regras, porque, afinal, trabalhar é atividade essencialmente humana e, por isso, deveria estar mais inclinada à criação que ao sofrimento; mais conectada a um projeto de crescimento que à submissão a situações degradantes.

Antunes falou sobre todas essas questões na entrevista que concedeu para a Revista Giz. Os trechos mais relevantes da conversa, o leitor acompanha logo abaixo.

Reprodução

Professor, vamos começar de trás para frente. Adeus ao trabalho?, lançado originalmente pela própria Cortez Editora em 1995, foi um marco na discussão sobre o mundo do trabalho e suas implicações na vida das populações. Por que o senhor acha que ele merece uma reedição revisada, ampliada e comemorativa?

Tristemente temos motivo para isso. Não falo como autor, porque ver seu livro publicado em 16 edições e publicado em vários outros países é muito bom. Mas digo que é triste porque o livro tem uma tese – tem várias, mas vamos começar com essa – que é: as sociedades do capital, das corporações, as sociedades empresariais, se elas seguirem a própria lógica, trarão uma monumental precarização do trabalho em escala global. As terceirizações, as informalidades, os adoecimentos, os assédios morais, mutilações, mortes, bullying, que marca o trabalho dos professores, por exemplo, são todas expressões do trabalho precarizado, de uma sociedade do trabalho adoecido, de uma sociedade do desemprego e da precarização. A segunda tese do Adeus ao trabalho?, e esse nome é uma pergunta e não uma afirmação, é que: embora haja desemprego, precarização, terceirização, falsas cooperativas e tudo isso que povoa o mundo do trabalho – seja do metalúrgico, do enfermeiro, do químico do professor -, o trabalho é algo estruturante na vida da pessoa. Por isso mesmo, o trabalho deveria ser pensado como um valor e não como uma mercadoria. As empresas tratam o trabalho como uma mercadoria, cujos custos devem ser rebaixados, da mesma forma que devem ser rebaixados os custos das matérias primas dos produtos. Só que o trabalho é um valor. Ele é realizado por mãos e cabeças de homens e mulheres, que trabalham porque necessitam dele para sobreviver, mas também porque veem nele uma função social. Veja o trabalho de um professor, por exemplo. Por mais sucateada que esteja sendo a profissão, por mais destroçada, precarizada, proletarizada, pelas escolas e pelo Estado, a função precípua do professor é pedagógica é de, junto com os alunos, avançar no processo de compreensão da vida, do mundo, da civilização e da humanidade.

Professor, junto com essas duas primeiras teses, há uma terceira, que trata de uma nova classe média, ou – ao menos – de uma nova morfologia dessa classe trabalhadora. Parece que a estamos conhecendo melhor atualmente, 20 anos depois da publicação do livro.

São muitas teses no livro, é verdade, e tem essa da nova morfologia da classe trabalhadora, eu usava “classe-que-vive-do-trabalho”, que é a forma como denomino a classe trabalhadora hoje. E esse processo da formação da classe trabalhadora hoje obriga os sindicatos a repensarem como representam uma classe trabalhadora que, em algumas situações, como na Petrobras, tem muito mais trabalhadores terceirizados que estáveis. Em geral, os terceirizados e terceirizadas estão fora dos sindicatos que representam a categoria. Como os sindicatos vão organizar os trabalhadores cooperativados que não têm nem carteira de trabalho? É um desafio que os trabalhadores também vão ter que enfrentar. Temos aí já então três bons motivos para reeditar o Adeus ao trabalho?.

O trabalho é algo estruturante na vida da pessoa. Por isso mesmo, o trabalho deveria ser pensado como um valor e não como uma mercadoria. As empresas tratam o trabalho como uma mercadoria, cujos custos devem ser rebaixados, da mesma forma que devem ser rebaixados os custos das matérias primas dos produtos. Só que o trabalho é um valor.

Acontece que o livro foi lançado em 1995, quando a agenda neoliberal estava sendo implantada a todo vapor aqui no Brasil. Aquela cartilha já não rege mais, ao menos oficialmente, a política e a política-econômica brasileira, mas as três teses que o senhor propôs até agora continuam bastante atuais.

De fato, quando o livro foi lançado, a política neoliberal estava entrando de forma devastadora. Chegamos a ter quase 60% da nossa classe trabalhadora na informalidade. Ora, isso significa que podemos encontrar mais ou menos trabalho, melhores ou piores condições de trabalho, em função dos ciclos de expansão ou retração econômica, mas que é muito marcada pelo projeto de dominação societal existente. Se o projeto é neoliberal, a lógica é privatista, financeira e anti-trabalho. A lógica neoliberal, no que diz respeito ao trabalho, é devastá-lo e torná-lo um trabalho sem direitos. Isso é tão verdade que, nos anos 2000, quando tivemos uma criação ampliada de empregos, eram empregos com salário entre 1 salário e 1,5 salário mínimo. Trabalhos de alta rotatividade, bastante precarizados, fundamentalmente nos setores de serviços. O que mostra que o neoliberalismo, no seu sentido mais profundo, se mantém até hoje. Se os governos (Fernando) Collor (de Melo) e Fernando Henrique (Cardoso) praticaram abertamente o neoliberalismo, os governos Lula e Dilma – principalmente esse último – não foram capazes de romper e de certa maneira até incentivaram o liberalismo na sua variante social liberal. Um pouco de verniz assistencialista e social, mas muita pragmática privatista, neoliberal, e fundamentalmente muita dependência do projeto de Brasil, que está, em última instância, sob dominância do capital financeiro. Basta dizer que nossos juros são os maiores do mundo. A taxa de juros do cheque-especial é devastadora. De cada 10 brasileiros, 4 estão endividados em seu cartão de crédito, ou com dívidas que decorrem desses juros extorsivos. O que mostra que a oscilação positiva ou negativa da economia é tratada com um receituário do governo, uma política econômica A ou B, que podem incentivar emprego com ou sem direitos. O PL4330 (que tramita agora no Senado, sob a sigla PC30), que quer eliminar a separação entre atividade meio e atividade fim, é devastador porque permite que todas as atividades possam ser terceirizadas em todas as atividades econômicas privadas. Era tão nefasto que permitia terceirização em todo o setor público, mas houve um acordo que impediu que a extensão da terceirização plena chegasse ao setor público.

O projeto da terceirização é uma regressão ao trabalho escravo no Brasil. Ainda que sob a forma da escravidão moderna. Ele arrebenta a CLT, que se constituiu no Brasil como a verdadeira Constituição do Trabalho no Brasil.

E o curioso é que o aniversário de dez anos e, portanto o relançamento de Adeus ao trabalho?, caem bem no intervalo de tempo de três semanas mais ou menos em que estamos justamente atravessando uma discussão ainda mais intensa sobre a flexibilização de direitos históricos dos trabalhadores. Como seu livro observa esse cenário?

Crédito: Antoninho Perri/Ascom – Unicamp

O livro mostra primeiro que o trabalho é um valor e não pode ser mera força de trabalho usada a serviço do capital para enriquecimento dos proprietários. O trabalho tem o valor embutido dele e deve criar bens socialmente úteis, sejam bens materiais ou imateriais. Essa é a ideia central do livro. O trabalho tem um componente de sonho e de projeto de vida. Ninguém suporta viver só no lar, seria o inferno. Também não suportaríamos viver só trabalhando, embora a gente esteja muito perto disso. Trabalhamos no hospital, no banco, na fábrica e não temos tempo para nada, talvez só para dormir em casa. Se vivêssemos só em casa, sem uma atividade que fizesse sentido, seria infernal. Vamos pensar no professor, que não escolhe essa carreira só por causa do salário, que em geral são degradantes e degradados. Ele escolhe essa profissão, porque lhe permite pensar, estudar, ensinar, educar, conscientizar. São valores fundamentais.

E o projeto da terceirização é uma verdadeira avalanche contra essa ideia.

Ele quer transformar todos os trabalhadores, homens e mulheres, em seres descartáveis, substituíveis, sem direitos, integralmente disponíveis para o trabalho. Mesmo que não tenha trabalho. Os professores substitutos de São Paulo, por exemplo, não têm trabalho. Eles vão para a escola e esperam para ver se algum efetivo faltou. Se faltou, ele entra lá e dá aula de qualquer disciplina. É a precarização da precariedade. Se nenhum efetivo faltar, o substituto vai para casa e não faz nada. O projeto quer permitir que essa aberração, que em certa medida ainda é exceção, se torne a regra. Se todos nós pudermos ser terceirizados, inclusive no setor público, que seria a aberração completa, todos nós poderíamos ser terceirizados. Sem direitos e com alta rotatividade. Temos depoimentos para outro livro que mostram terceirizados que não tiram férias há três ou quatros anos, porque quem não trabalha, não ganha. E se o trabalho dele acaba hoje, amanhã já vai correndo buscar um novo. E se amanhã a empresa a que ele estava ligado, fecha? Ele fica sem nada, sem direitos. Essas práticas têm que ser impedidas e é imperioso que todos entendam que o projeto da terceirização é uma regressão ao trabalho escravo no Brasil. Ainda que sob a forma da escravidão moderna. Ele arrebenta a CLT, que se constituiu no Brasil como a verdadeira Constituição do Trabalho no Brasil. Não é possível que a constituição seja rasgada na calada da noite, por um Congresso, em particular por uma Câmara dos Deputados que o aprovou, numa sessão que mais parece um golpe. É inadmissível que um projeto dessa envergadura tenha passado por razões certamente escusas, sem debate público, numa questão que atinge 100 milhões de homens e mulheres, que é a nossa População Economicamente Ativa do Brasil. É inaceitável, porque não tem um ponto positivo. O que os empresários dizem? Que é para regulamentar os terceirizados. É mentira. Ela existe para desregulamentar os regulamentados. Para regulamentar os terceirizados, você teria de ter certeza de que a Justiça do Trabalho é ágil, que os sindicatos vão representá-los, que eles terão advogados.

Vamos pensar no professor, que não escolhe essa carreira só por causa do salário, que em geral são degradantes e degradados. Ele escolhe essa profissão, porque lhe permite pensar, estudar, ensinar, educar, conscientizar. São valores fundamentais.

Que as forças são equânimes…

E não são. E isso mostra a tragédia em que estamos.

Professor, me parece que falta um entendimento geral do que é o mundo do trabalho. E, já que estamos falando para professores, é possível trazer essa formação cidadã para o mundo do trabalho para a sala de aula? Eu não estou falando de ensino técnico, estou falando de formação para o cidadão trabalhador.

A primeira ideia é que a educação não deve formar para o mundo do trabalho especificamente. Deve formar o cidadão para o mundo. Um jovem humanista, que pense como o mundo é, e como deve ser, e como deveria ser. Um cidadão que não seja administrador, sociólogo, químico, historiador, matemático. Mas que, sendo matemático, conhecer artes e filosofia. Sendo filósofo, possa ter formação que lhe permita sobreviver com conhecimentos básicos para que seu dia a dia possa ser enfrentado. Essa educação multifacetada, em detrimento da lateral ou bilateral, é decisiva. Então a escola básica, fundamental, média e de ensino superior, com suas especificidades, deveriam ter esse objetivo. E o ato de educar é o ato de entender o mundo civilizado que queremos ter e que não é o que temos. O que temos tem sido mais bárbaro que civilizado, com verniz de civilização e madeira forte de barbárie. Então é claro que, ao tratar do ato pedagógico do mundo, da vida, temos que entender o trabalho. É verdade que uma escola deve formar só técnicos para o mundo do trabalho? Jamais. Pobre do país que quer formar técnicos do trabalho, que quer destruir seus direitos e não forma pedagogos que não são capazes de compreender a vida e de lutar para que a vida seja construção coletiva entre humanidade, entre indivíduos e não uma construção destrutiva entre corporações. São 400 ou 600 corporações que enriquecem-se destruindo e incivilizando o mundo. O ato pedagógico deve ter esse sentido que esteve presente, de certo modo, como coágulos, na polis grega antiga, ou no Renascimento. Michelangelo é um bom exemplo: o trabalho é arte e a arte é trabalho. A arte pode ser trabalho e o trabalho pode e deve ser arte. Ao ser multifuncional, esse indivíduo se humaniza. Esse é o caminho da nossa escola e é o desafio do professor. E isso não pode ser possível numa sociedade que destrói o direito dos trabalhadores, que mercadoriza o trabalho e que remunera pessimamente o trabalho. Discutir e mudar isso é um imperativo social para o século 21 e os professores têm seu papel, porque seu trabalho por si também é o trabalho do intelecto, da reflexão, da ciência e da humanidade. E isso tudo é vital para o século 21.

*Crédito da imagem de abertura: Divulgação/Editora Boitempo

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