Por Francisco Bicudo e Elisa Marconi*
O ano era 1917. As tensões tinham começado bem antes, inspiradas pelas revoluções burguesas que varriam a Europa. A Rússia era ainda uma monarquia absolutista de economia majoritariamente rural, mas já começava a experimentar algum surto de industrialização, sobretudo nas grandes cidades. Graças às profundas contradições sociais (enquanto boa parte da população morria de fome e frio, abandonada nas ruas, as elites bailavam em festas e banquetes nos palacetes), conhecera os primeiros sinais de uma insurreição popular em 1905, quando o Czar viu-se obrigado a instituir a Assembleia Constituinte e os sovietes (conselhos populares). As seguidas derrotas para a Alemanha na Primeira Guerra Mundial (1914-18) fizeram com que a insatisfação social atingisse níveis insustentáveis e abriram espaço político para que os bolcheviques organizassem e liderassem uma aliança entre camponeses e operários que, em outubro de 1917, derrubou definitivamente a monarquia e o governo reformista dos mencheviques e instalou a primeira experiência de socialismo – aquele teorizado pelos filósofos alemães Karl Marx e Friedrich Engels – da História.
Dali até 1989, com a queda do Muro de Berlim e a derrocada do sistema soviético, o mundo viveu o que o historiador britânico Eric Hobsbawm chamou de “o breve século 20”, ou a “Era dos Extremos”, um período que só foi como foi – com seus avanços e retrocessos, tensões e disputas com o capitalismo – por conta da Revolução Russa de 1917. “A gente só pode entender o mundo de hoje, algumas bandeiras, alguns direitos e valores que temos em pleno século 21, se entendermos o que foi a Revolução Russa”, defende o historiador Wagner Pereira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ele, a Revolução foi profundamente transformadora dos parâmetros políticos, econômicos, culturais e sociais. Pela primeira vez, o proletariado assumia o poder diretamente – não através de um rei, ou das burguesias – e o povo passa a ser o agente central da história.
Para contar essa história inédita à pessoas, os russos se valeram da imprensa, claro, mas também das artes. A literatura e o cinema da época merecem destaque nas vésperas do centenário, porque, por um lado, contam a história a partir do olhar dos soviéticos e, por outro, seguem trazendo questões atuais que ainda merecem ser debatidas. Daniel Puglia, professor do departamento de Letras Modernas da Universidade de São Paulo (USP) lembra que a bibliografia contemporânea à Revolução foi esquecida muito rapidamente pela academia, mas que, quando revisitada, ainda oferece muitos aspectos para entender a profundidade do movimento.
León Trotsky, por exemplo, um dos teóricos e líderes do movimento e do governo revolucionário (depois perseguido e assassinado a mando de Stálin), era também escritor e ensaísta. “As Lições de Outubro, ou A Revolução de Outubro, de Trotsky, por exemplo, podem ser revisitadas e lidas com tranquilidade. O autor não queria ser escritor, queria contar o que houve”, propõe Puglia. A leitura é fácil e até didática, o que facilita a compreensão do contexto, do passo a passo e dos acontecimentos mais significativos do movimento revolucionário e suas contradições. “Como foram escritos durante o processo, os livros têm um calor e clareza”.
Um pouco depois, o escritor britânico George Orwell lançou A revolução dos bichos, que trata, em tom de fábula, dos acontecimentos numa fazenda quando os animais resolvem tomar o poder. Mais que isso, Orwell “critica sem pudores o que acontece quando alguns concentram poder em excesso”, lembra o professor da USP. Ele alerta, no entanto, para o uso pernicioso que se fez da obra do britânico, sugerindo que seus livros seriam críticas ao regime socialista. “Ao contrário. Ninguém mais que Orwell acreditou e defendeu os princípios socialistas e a revolução. No entanto, ele aponta as mazelas da concentração desmedida de poder que pode acontecer em situações assim”, ensina Puglia. A crítica seria aos totalitarismos, não especificamente ao socialismo, reforça o especialista.
Junto com a literatura, o cinema soviético desabrochou. “Os russos logo perceberam que o cinema, uma arte que nascia, tinha um poder mobilizador intenso e passaram a usar essa força para narrar a revolução e marcar bem o homem novo”, conta Pereira. A percepção era tão gritante que, logo nos primeiros anos do governo revolucionário, foi fundada uma escola de cinema soviético, estatal e gratuita. Especialista na relação entre História e Audiovisual, o professor propõe entender o movimento dos trabalhadores russos. Segundo ele, enquanto os norte-americanos se interessavam e desenvolviam técnicas relacionadas à projeção do espectador na história, ao melodrama e às narrativas com causa e consequência, artistas soviéticos da década de 1910 e 1920 atentavam para a montagem, a edição do filme.
“A ideia não era alienar, como faziam os norte-americanos. A ideia era mesmo chocar o espectador e, com esse choque, chamar para a consciência revolucionária”, conta Pereira. Os intelectuais revolucionários estudaram e aplicaram as teorias da psicologia de massas. Havia um pensamento e uma prática em relação aos efeitos da arte na construção da narrativa histórica. O resultado foi sentido mundialmente. Artistas como Sergei Eisenstein, Vsevolod Pudovkin e Dziga Vertov fizeram avançar a arte e a linguagem cinematográficas, fundaram escolas de cinema e, de quebra, contaram para o mundo quem era o soviético comum, o que foi a Revolução Russa e o que virou o mundo soviético.
No entanto, a arte revolucionária dificilmente chegava ao ocidente, porque era proibida e censurada por aqui. Durante a 2ª Guerra Mundial e depois dela, na Guerra Fria, a contrapropaganda trabalhou duro e usou as mesmas armas: cinema e literatura. “Havia um empenho dos Estados Unidos e dos países alinhados com os capitalistas em esconder, desmontar e desmitificar a Revolução Russa. O cinema e a literatura ocidental trabalharam pesado nisso e ainda trabalham”, lembra Puglia.
Primeiro, explica, procuram esconder a Revolução. Pouquíssimos filmes e livros da época tratam do tema. Depois, os que se atrevem a tratar, minimizam, por exemplo, que “a Revolução Russa salvou o mundo duas vezes: na Primeira e na Segunda Guerras Mundiais”, levanta Puglia. No final da 1ª Guerra Mundial, por exemplo, “foi a saída dos soldados russos (que voltavam para casa para combater a sua guerra) que freou, de alguma maneira, a ação das grandes potências que pareciam não ter limites. A saída da Rússia determina o fim da Guerra”, propõe. Poucos anos mais tarde, foi o exército soviético que, trabalhando no pesado inverno Europeu, enfrentou ferozmente os nazistas e impediu a vitória das tropas de Adolf Hitler. “Não foram os americanos nos B-52, como contam centenas de filmes dos anos 1950 até hoje. Foram os soldados soviéticos, talhados pela revolução”, completa. Os dois exemplos acima podem ser conferidos em dois livros que viraram filmes: Dr. Jivago, romance de Boris Pasternak (1957) e longa dirigido por David Lean, em 1965; e Reds, grande reportagem do jornalista John Reed, que virou blockbuster e ganhou o Oscar em 1981, dirigido por Warren Beatty.
Obras ensaísticas mais modernas, ou que pretendem contar a história mundial de forma mais leve e pasteurizada, continuam se prestando ao papel de esconder, minimizar e desmoralizar a Revolução Russa, alertam os especialistas. “O problema é que essas obras, e não os clássicos, é que chegam ao grande público e esse imaginário segue se imortalizando”, queixa-se o professor de Letras da USP. No entanto, é farta a oferta de livros mais recentes, com menos de 20 anos que tratam as causas e as consequências da revolução de forma mais correta e abrangente.
“A obra de Noam Chomsky, linguista e filósofo, crítico à Revolução, trata da questão da concentração de poder e sem ser leviano compara as mortes provocadas pelos Estados Unidos e aliados no mesmo período e na Guerra Fria e aponta como o horror foi aplicado pelas potências ocidentais”, sugere. O já citado historiador Eric Hobsbawm – outra leitura fácil e acessível para professores e não professores – também é mais profundo e analítico com a Revolução Russa e pode ser encontrado facilmente. Seu “A Era dos Extremos” é leitura obrigatória sobre o século XX. O capítulo específico sobre a Rússia de 1917 chama-se “A revolução mundial”. Para o historiador, “a Revolução de Outubro produziu de longe o mais formidável movimento organizado na história moderna. (…) Em suma, a Revolução de Outubro foi universalmente reconhecida como um acontecimento que abalou o mundo”.
Da mesma forma, nos filmes mais contemporâneos, lembra Wagner Pereira, da UFRJ, os russos ainda são os vilões, os terroristas e os espiões. “Não dá para confiar nos russos dos filmes e séries e até Marte, de onde vinham e continuam vindo os potenciais inimigos marcianos, é retratado como o planeta vermelho, em alusão ao socialismo”, lembra com bom humor. Ainda hoje, filmes com exércitos, ameaças mundiais e terrorismo apontam de alguma forma para a Revolução Russa e para o regime socialista – ditadura do proletariado, como preferir – que se instalou em seguida e durou até o final dos anos 1980.
Segundo Pereira, “o modelo que a Revolução instala – e nisso é vitoriosa – é do coletivo sobre o individual. Os filmes de Eisenstein, Pudovkin e Vertov mostram bem isso. Retratam a Revolução, exaltam Stálin – um tirano e ditador sanguinário, importante ressaltar –, mas o herói da narrativa é sempre o povo. As obras mostram que o grupo é o vencedor”. E Puglia completa: “Os conselhos, os sovietes, esse modelo em que o povo é quem determina os caminhos – e não um ou outro mandatário, ou a classe mais rica, mas em menor número – isso é muito avançado e preocupante para o ocidente”, provoca. E sugere que até hoje essa noção de que outro caminho é possível, outra alternativa é viável – mesmo que depois tenha perdido seu sentido inicial e se transformado num projeto personalista, messiânico, autoritário, que torturou e perseguiu, – é muito revolucionário e perigoso para o capitalismo, que aposta sempre no individual, no poder de quem tem mais capital.
Em tempos de projetos como o Escola Sem Partido, Pereira ressalta que discussões como essas, em sala de aula, ficam até perigosas. “Mas a gente tem de ensinar os grandes movimentos históricos sim, apesar da patrulha. Os professores devem reforçar a noção de processo, nada acontece ao acaso, porque o tempo passou, ou porque chegou a hora. A História é fruto dos embates humanos e não há dúvidas de que a Revolução Russa fez avançar a história em marcos nunca antes vistos politicamente, economicamente, socialmente e culturalmente”. Tirar esse conteúdo histórico dos livros e das aulas seria, segundo ele, uma violência contra os alunos.
“A gente pode dizer”, vai concluindo Puglia, “que a Revolução Russa ainda pode salvar o mundo uma terceira vez. Nesses tempos de compressão, de perseguição, de falta de alternativas, conhecer um movimento que teorizou e aplicou outra forma de viver é muito prodigioso. Saber que ele foi possível e viável, apesar de tudo, pode ser muito perigoso (e inspirador, claro)”.
Revolução Russa, um balanço necessário – livros recentemente lançados
- “História da guerra civil russa: 1917-1922” – Jean-Jaques Marie. Editora Contexto.
- “Outubro – História da Revolução Russa” – China Miéville. Editora Boitempo.
- “Guerra e revolução – O mundo um século após outubro de 1917”. Domenico Losurdo. Editora Boitempo.
- “Do czarismo ao comunismo: As revoluções russas do início do século XX”. Marcel Novaes. Editora Três Estrelas.
- “A Revolução Russa”. Sheila Fitzpatrick. Editora Todavia.
- “A revolução que mudou o mundo: Rússia, 1917”. Daniel Aarão Reis. Editora Companhia das Letras (relançamento).
- “Escritos de outubro”. Bruno Barreto Gomide (org.). Editora Boitempo (relançamento).
Clássicos do cinema para entender a Revolução
- Sergei Eisenstein
1924 – A Greve
1925 – O encouraçado Poteemkin
1927 – Outubro
1944 – Ivan, o terrível
- Vsevolod Pudovkin
1926 – A mãe
1927 – O fim de São Petesburgo
1933 – O desertor
- Dziga Vertov
1919 – Aniversário Da Revolução
1922 – História da Guerra Civil
1924 – Cinema Olho
1929 – O homem com uma câmera
1934 – Três canções para Lênin
- Andrei Tarkovsky
1971 – Solaris
- Sergei Popov
2015 – O caminho para Berlim
- Anatole Litvak
1956 – Anastasia, a princesa esquecida
- Franklin Schaffner
1971 – Nicholas e Alexandra
- Don Bluth, Gary Goldman
1997 – Anastasia (Animação)
- Uli Edel
1996 – Rasputin