Elisa Marconi e Francisco Bicudo
As vendas de livros digitais saltaram de 1%, em 2012, para 3% do total registrado pelo mercado editorial nacional, em 2013. Na França e Alemanha, esse percentual atinge 5%; nos Estados Unidos e na Inglaterra, pioneiros no setor, o número estabilizou-se em 20%. Por aqui, o avanço percentual resultou num faturamento com as obras eletrônicas próximo de 13 milhões de reais no ano passado (contra quase 4 milhões em 2012). São números promissores, a animar editores e livreiros. Esses profissionais admitem, no entanto, que ainda estamos apenas engatinhando e que há certamente muito espaço a ser ocupado pelos livros eletrônicos no cotidiano dos brasileiros. Olhando para esse cenário, aconteceu na capital paulista, na semana passada, nos dias que antecederam a abertura da Bienal, o 5o Congresso Internacional do Livro Digital de São Paulo. O evento, promovido pela Câmara Brasileira do Livro, discutiu os temas mais candentes ligados ao universo das histórias e autores que cada vez mais podem ser desfrutados em e-readers, tablets e celulares.
Pedro Puntoni, professor de História da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Núcleo de Cultura Digital do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), foi um dos mediadores de mesas no Congresso. Em entrevista exclusiva à Revista Giz, ele fez questão de reforçar que algumas das acaloradas discussões que cercaram o universo dos e-books num passado recente, como a falta de fluência na leitura ou o empobrecimento do vínculo do leitor com a obra, já não fazem mais tanto sentido. Estão superadas. Ocupando essa brecha de reflexões, temas como democratização do acesso aos livros, uso de e-readers na educação e maior liberdade de publicação para autores são alguns dos focos prioritários dos debates mais atuais.
“A gente precisa deixar claro, em primeiro lugar, que são formas diferentes de leitura, com diferentes maneiras de percepção do texto. Portanto a contraposição entre leitura no papel e no e-reader é uma falsa questão”
É preciso reconhecer que as placas tectônicas ainda estão se chocando, não se acomodaram, como acontece quando qualquer transformação mais profunda se anuncia. Os horizontes sugeridos pela incipiente popularização dos e-books não tiram essa novidade da prateleira das polêmicas. Não faltam críticos e insatisfeitos com as mudanças. Escritores norte-americanos, por exemplo, publicaram manifesto numa página inteira do jornal The New York Times, em 9 de agosto, queixando-se das práticas desleais de venda da gigante Amazon, que levariam editoras e autores à falência e prejudicariam os hábitos dos leitores. Não é mesmo sensato aceitar a canibalização do mercado.
Não há como negar, no entanto, que os livros digitais já estão provocando alguns impactos que podem ser vistos como positivos nas relações do leitor com seu livro, do escritor com sua obra, do professor com sua bibliografia e do editor com seu produto. “Claro que a gente está sempre dividido entre essas duas formas de leitura que estão disponíveis, porque o papel continua sendo agradável, temos uma relação com as bibliotecas, as fotografias, que o digital não oferece”, explica Puntoni. Para ele, na outra ponta, o ano de 2014 pode representar um grande avanço na difusão das obras digitais, porque cada vez mais chegam novos conteúdos – e ainda mais baratos. “E isso é bom”, completa.
O especialista também lembra que é fundamental aprofundar as reflexões sobre os sentidos do livro e os significados da leitura nesses tempos de plataformas digitais. “A gente precisa deixar claro, em primeiro lugar, que são formas diferentes de leitura, com diferentes maneiras de percepção do texto. Portanto a contraposição entre leitura no papel e no e-reader é uma falsa questão”, sugere o pesquisador do Cebrap. Ele garante: essas formas de leitura coexistem e vão continuar coexistindo nos próximos anos. Se o digital tem como vantagens a praticidade e a oferta de áudios e de vídeos, além das palavras, o papel continua carregando o charme insubstituível do contato com a capa, o projeto gráfico, a sensação única de virar as páginas e de organizar as coleções nas prateleiras. O ponto central da questão, na visão dele, é como vamos nos aproveitar das distintas vantagens. O ideal é que elas se complementem.
O professor avalia que a educação tem muito a ganhar com a chegada mais efetiva dos livros digitais. Em 2015, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) deve adquirir 80 milhões de obras – incluindo produtos digitais. Já são também discutidas políticas públicas, envolvendo órgãos como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), de barateamento dos e-readers, para que se tornem mais acessíveis aos estudantes, sobretudo os de mais baixa renda. A iniciativa serviria como mais uma estratégia para tentar fomentar e ampliar a prática da leitura por aqui.
E-reader é para ler. Ponto. E essa imersão, esse arrebatamento que o livro de papel propicia pode sim ser experimentado com o digital. E isso é muito importante para formar leitores e ensinar na escola”
De acordo com dados da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2012), apenas cerca de 90 milhões dos brasileiros se declaram leitores (metade da população). Eles leem, em média, quatro obras por ano, sendo que apenas duas delas são lidas na íntegra. São números que preocupam – e muito. Longe de representar panaceia ou solução mágica, os e-books aparecem como mais um aliado importante para aqueles que brigam para reverter essa situação. “A tela oferece uma possibilidade de leitura absurda e, quando veio a internet com mais força, em 1995, a humanidade começou a ter acesso a um mundo de informação, principalmente lendo, e isso é maravilhoso. Todo mundo lê muito na tela”, afirma o professor.
Segundo ele, mesmo a parte difícil de ler numa tela tradicional (computador, por exemplo), exercício que é extremamente cansativo e acaba forçando os olhos, já foi superada. O e-reader, especialmente pensado para a prática da leitura, além de poder ser tranquilamente carregado para qualquer lugar, quase sem peso, com centenas de obras nele, “é uma grande sacada, uma tecnologia genial, porque tem uma tela diferente, que não cansa o olho”. Luminosidade e tamanho da letra, por exemplo, podem ser controlados pelo leitor, de acordo com o ambiente onde se encontra.
Além disso – e essa é uma discussão que interessa aos professores em especial – o e-reader, ao contrário dos celulares e tablets, não têm outros apelos que convidam à distração, como acesso às redes sociais e múltiplas tarefas. “E-reader é para ler. Ponto. E essa imersão, esse arrebatamento que o livro de papel propicia pode sim ser experimentado com o digital. E isso é muito importante para formar leitores e ensinar na escola”, avalia. Outro atrativo para lá de sedutor é o preço. “E dou um exemplo que aconteceu recentemente comigo. Tenho em papel o primeiro volume da biografia do Getúlio escrita pelo Lira Neto. Estava querendo comprar o segundo volume. Já vi que o e-book está em promoção, de 38 reais por 14 reais. Então acho que vou optar pelo digital. Como leitor que sou, tenho muito me dividido entre as leituras no meu kindle e as obras em papel, que continuo comprando também, para minha biblioteca tradicional”.
Ainda no sentido de melhorar a relação do leitor com as obras, há mais dois pontos que merecem atenção e discussão, segundo o coordenador do Cebrap. O primeiro é a percepção, por parte do mercado livreiro, que não apenas os best-sellers devem ter a versão digital. Existem acervos inteiros, inclusive de obras raras, que seriam muito bem vindos nesse novo mundo. Simultaneamente, a tecnologia precisa evoluir para acolher grandes avanços da humanidade que ainda não cabem nos e-readers. “É o caso das imagens e das fotografias que encontraram grande acolhimento nas páginas de papel e contam um pouco da nossa trajetória”, conclui.