Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Nos últimos 15 anos, o Brasil cresceu de forma desigual. E foi um crescimento que inverteu a mão de direção da dinâmica historicamente consolidada no país, contrariando interesses arraigados e mexendo profundamente com o topo e a base da nossa pirâmide social. Enquanto os mais pobres tiveram um aumento de renda de cerca de 45% no período, a renda dos mais ricos avançou apenas 12%. Esse é um dos cenários revelado pelo livro Um país chamado favela, escrito pelo publicitário Renato Meirelles, presidente do Instituto Data Popular, em parceria com o ativista Celso Athayde, fundador da Central Única de Favelas, a CUFA. De acordo com a obra, entre os brasileiros do primeiro grupo, esse crescimento representou não apenas a possibilidade de trocar a TV de tubo por uma de LCD, ou de conseguir um celular touch screen. “Na verdade, entre os mais pobres, e entre eles, os moradores das favelas, o aumento da renda familiar trouxe um crescimento importante na perspectiva de futuro, coisa que há pouco mais de dez anos era difícil imaginar”, avalia Meirelles, em conversa exclusiva com a Revista Giz.
A obra, publicada em agosto último pela Editora Gente, procura refletir sobre os dados colhidos nos últimos anos pelo Data Popular, especializado em pesquisas sobre a chamada nova classe C. Mais do que uma classe econômica – embora estejamos falando de um estrato bem delimitado da população, que tem renda familiar per capita de R$ 320 a R$ 1.120 – essa parcela de pessoas começa a ter voz ativa, valores próprios e uma presença que já balança as estruturas mais tradicionais da sociedade brasileira.
“Na verdade, entre os mais pobres, e entre eles, os moradores das favelas, o aumento da renda familiar trouxe um crescimento importante na perspectiva de futuro, coisa que há pouco mais de dez anos era difícil imaginar”
Meirelles acredita que tudo isso vem, é claro, a reboque do aumento de renda, que garante algum poder para falar de igual para igual com os estratos superiores da pirâmide. Mas não é só isso: “A cultura, a moda, o lazer, a música que vêm da favela – portanto, aquilo que é próprio e verdadeiro daqueles grupos – já ganhou a mídia e se impõe como tendência da periferia para o centro”, explica. O sociólogo Jessé de Souza, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, em entrevista ao jornal O Globo, ainda em maio de 2012, concorda com essa ideia de que a força da nova classe média não está apenas na renda – embora ele discorde do conceito e prefira classificar esse segmento de nova classe trabalhadora.
“O debate público brasileiro sobre a “nova classe média” é dominado por um debate pobre e superficial, que associa pertencimento de classe à renda. No entanto, a mera classificação econômica e estatística por faixas de renda não explica rigorosamente nada”. Ele completa o raciocínio: “Todas as escolhas da vida dessas pessoas – a não ser a conversa sobre o futebol no domingo – tendem a ser muitíssimo diferentes entre si. O que importa saber para que se conheça uma “classe social” é o “como”, em cada caso, as pessoas são produzidas como seres humanos com capacidades distintas e acesso distinto a todos os bens e recursos sociais escassos em competição na luta social. Não existe questão mais importante que esta, porque é a questão que nos move a todos durante as vinte e quatro horas de cada dia”.
“Estudar serve para garantir um lugar no mercado de trabalho. Cada ano na escola assegura 15,7% de aumento na renda. É um raciocínio simples”
Valor mais caro: educação
E o que move afinal esses brasileiros retratados no livro de Meirelles e Athayde? Animado por estar falando para professores, o presidente do Data Popular afirma que um dos valores mais caros a essa classe em ascensão é a educação. A obra revela que 73% dos jovens da nova classe C já estudaram mais que seus pais. Muitos deles foram os primeiros da família a entrar na universidade. No entanto, de acordo com Meirelles, para essa população, defender a educação como valor pouco tem a ver com um possível discurso iluminista dos educadores.
“Estudar serve para garantir um lugar no mercado de trabalho. Cada ano na escola assegura 15,7% de aumento na renda. É um raciocínio simples”, avalia. Além disso, o governo pode até tirar a bolsa de estudos, o emprego pode até ser perdido, mas a educação fica para sempre, é um patrimônio que não pode ser arrancado. Ir para a escola e para a faculdade é, portanto, visto como garantia de vida e de futuro. “Um investimento mais seguro que a poupança”, esclarece o autor de Um país chamado favela.
Outro pilar de sustentação dessa nova classe média (ou classe trabalhadora) é a certeza de que cada um melhora por esforço próprio. “O governo pode até ajudar, mas quem acorda 5 horas da manhã, pega ônibus lotado, vai até o trabalho e rala o dia inteiro sou eu, portanto, meu crescimento é fruto do meu empenho”, explica Meirelles, tomando a voz do típico cidadão das favelas brasileiras. Jessé vai na mesma toada em sua entrevista no Globo: “A vida dos ‘batalhadores’ é completamente outra. Ela é marcada pela ausência dos ‘privilégios de nascimento’ que caracterizam as classes médias e altas. Como lhes faltam tanto o capital cultural altamente valorizado das classes médias ‘verdadeiras’, quanto o capital econômico das classes altas, eles compensam essa falta com extraordinário esforço pessoal, dupla jornada de trabalho e aceitação de todo tipo de super exploração da mão de obra. Essa é uma condução de vida típica das classes trabalhadoras”.
Não será estranho se o leitor associar essa última característica da nova classe média ao discurso das igrejas neopentecostais. “Está totalmente ligado à teologia da prosperidade”, afirma o autor, lembrando do discurso multiplicado e amplificado pelas igrejas evangélicas que povoam intensamente as comunidades periféricas do Brasil. É uma pregação que combina e retroalimenta o valor do esforço pessoal, da meritocracia para crescer na vida. Cabe lembrar que o adolescente e o jovem adulto dessa faixa da população, além de estudarem mais que os pais, estão mais conectados ao mundo das comunicações e das redes sociais que seus pais na mesma idade. Além disso, eles também trabalham e contribuem com a renda familiar, “o que faz desses garotos e garotas os formadores de opinião do futuro ´dessa comunidade”, sugere Meirelles. Trocando em miúdos, eles são ouvidos e levados em conta em casa e, em geral, reproduzem os discursos mencionados acima, o que reforça essa perspectiva de vida.
“A vida dos ‘batalhadores’ é completamente outra. Ela é marcada pela ausência dos ‘privilégios de nascimento’ que caracterizam as classes médias e altas. Como lhes faltam tanto o capital cultural altamente valorizado das classes médias ‘verdadeiras’, quanto o capital econômico das classes altas, eles compensam essa falta com extraordinário esforço pessoal, dupla jornada de trabalho e aceitação de todo tipo de super exploração da mão de obra. Essa é uma condução de vida típica das classes trabalhadoras”.
Talvez tudo isso ajude a explicar por que os governos ligados ao PT e aos presidente Lula e Dilma não conquistem automaticamente a maioria esmagadora dos votos – ou ao menos das intenções de votos dessa camada. Pensando de forma simplificada, seria natural que a classe que ultrapassou a linha da miséria e da pobreza atribuísse o feito aos últimos governos e retribuísse a colaboração depositando votos nas urnas. “Eles não querem nem saber quem os trouxe até ali. Não olham para o passado, não estão interessados. Querem saber para onde a vida vai no futuro e quem pode ajudá-los nessa perspectiva para frente”, alerta o autor.
O Brasil não é só isso. As aulas de história, geografia – favela é geografia pura, pensada como um todo – e música, literatura, só para citar algumas, ganhariam muito se apresentassem outras realidades aos estudantes
Do ponto de vista da escola e dos professores, há dois desafios que podem ser encarados, segundo Meirelles. O primeiro é geral, diz respeito a todo o sistema educacional e requer alguma coragem: é preciso repensar e propor ideias para reduzir o abismo, ou criar pontes de contato, entre a razão de ser da educação pregada pelas escolas e professores e a razão de ser da educação desejada pelos estudantes de classe C e suas famílias. “Não sei apontar o que tem de mudar, mas as concepções são realmente distantes e isso não é desejável”, provoca. E o segundo é mais específico para as instituições particulares de ensino. É muito comum o aluno da classe média tradicional viver, estudar e só circular por dois ou três bairros nobres da cidade em que mora. “O Brasil não é só isso. As aulas de história, geografia – favela é geografia pura, pensada como um todo – e música, literatura, só para citar algumas, ganhariam muito se apresentassem outras realidades aos estudantes”, conclui.