Por Francisco Bicudo, de Paraty
Se estivesse vivo e pudesse observar as manifestações que acontecem em todo Brasil, Vladimir Lênin, líder da revolução socialista russa de 1917, talvez em algum momento perguntasse: “O que fazer?”. Um outro Vladimir, o filósofo Safatle (brasileiro, por coincidência bem parecido com o xará famoso), responderia sem pestanejar: “camarada, não devemos ter medo do povo”. Em sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, Safatle já havia escrito, em 18 de junho, ainda no calor dos acontecimentos e no dia seguinte à gigantesca manifestação que ocupou a cidade de São Paulo, que “democracia é barulho e quem gosta de silêncio prefere ditaduras”.
Foi essa a mensagem que ele reforçou em sua participação na FLIP, quando não escondeu a satisfação com os tremores populares vividos pelo país e destacou que as recentes passeatas e protestos cumpriram a tarefa de recolocar a política nas ruas, resgatando uma característica de identidade da população brasileira – que, ao contrário do retrato que se pinta dela, não teria nada de submissa ou pacata.
“Esses últimos vinte anos é que representaram exceção. Somos um povo de lutas. O que fizemos agora foi negar a política dos gabinetes e dos bastidores para reconectá-la ao espaço público, a partir de demandas populares que são amplas. Quem acompanhou o que aconteceu no Brasil nos últimos dois anos não se surpreendeu. Não tomou susto. Nem deve temer. É o novo eixo da política funcionando”.
Para ele, as tensões vão existir. A disputa está em curso. “Mas nos impedir de tentar é um crime”, completou.
Safatle lembrou que as duas últimas décadas foram dominadas pela polarização entre PT e PSDB, dois consórcios que sentiam-se confortáveis por achar que controlavam por completo o jogo político nacional. O PT acreditava que tinha o monopólio dos movimentos sociais e a hegemonia das mobilizações de rua, e o PSDB entendia que aglutinava o pensamento conservador e a antiga classe média. “Os dois pólos estão atordoados. Já não representam mais quem imaginavam representar”, definiu.
Ele citou como exemplos dessa crise de identidades as passeatas que se espalham pelo país (à esquerda) e a mais recente marcha para Jesus (à direita). Nos dois casos, PT e PSDB estiveram muito longe de serem protagonistas dos processos e das mobilizações. Ficaram à margem, como meros espectadores, vendo a banda passar. “Havia um descontentamento social crescente no Brasil, criando um caldo de indignações que acabou explodindo”.
Na avaliação que faz, Safatle identifica pelo menos duas pautas que estão definitivamente instaladas na agenda nacional. A primeira diz respeito ao esgotamento das possibilidades de funcionamento da democracia representativa parlamentar, incapaz de dar respostas aos anseios populares. Segundo o filósofo, o Brasil vive uma profunda crise de representação, não só dos políticos, mas também da imprensa, atores que se descolaram por completo do que acontecia nas ruas.
Diante desse estremecimento, e sem um novo modelo institucional, a política não vai funcionar. A melhor resposta para essa crise teria sido a Constituinte, que permitiria à população escapar do papel de mero boneco de ventríloquo. O filósofo ironizou: “A iniciativa era tão boa que durou apenas 24 horas”, em uma capitulação que sugere mais uma evidência da falência do atual sistema. “Não dá mais para reformar. É preciso refundar as nossas instituições”. Veio então o xeque-mate: “o que se quer é que o último mensaleiro petista seja enforcado nas tripas do último mensaleiro tucano, levando com eles os empreiteiros e banqueiros que corromperam o Estado nacional”.
A segunda mensagem que vem das ruas, diz Safatle, exige novo ciclo de combate à desigualdade social e a ampliação dos serviços públicos oferecidos pelo Estado. A era Lula produziu inclusão importante, mas não é mais capaz de dar conta das esperanças do povo, que cobra saúde, educação e transporte gratuitos e de qualidade.
O Estado vai precisar ampliar o seu leque de atuação e de cobertura e terá de ser capaz de ler e entender o que acontece nas ruas. “O lulismo atingiu seu máximo, esgotou-se”, sentenciou.
Com a bola pingando na área e pedindo “me chuta”, o psicanalista Tales Ab’Saber, autor de “Lulismo, carisma pop e cultura anticrítica”, entrou em cena, procurou contextualizar a discussão e retomou as origens do movimento, que começou com um pequeno grupo de militantes que, segundo o especialista, fizeram uma avaliação teórica aprofundada das tensões latentes na sociedade brasileira e do ponto que poderia exatamente revelar o eixo de desequilíbrio da nossa democracia. “Eu me lembro de passar pela avenida doutor Arnaldo em 2006, 2007 e ver os meninos do Movimento Passe Livre protestando contra as passagens de ônibus. Eram poucos, algumas dezenas, mas sempre que a tarifa subia eles estavam lá, com cartazes, chamando a atenção para o tema. Foram minando o sistema”.
Apesar de controversa, ele fez questão de insistir na tese de que o MPL agiu com lucidez política singular e que conseguiu costurar um diagnóstico preciso de onde falhava a máquina da nossa democracia, recusando o cabresto da máquina lulo-petista. Os líderes do Movimento revelaram que há pontos estruturais e nevrálgicos em nossa organização social e que, se bem apontados e apertados, fazem rachar um cristal imaginário. “É a leitura das contradições da sociedade de classes e a aposta nas questões em que a esquerda deve investir para ganhar esse embate. É uma análise marxista da realidade. Por conta dela os meninos souberam conquistar a totalidade”.
O psicanalista afirmou ainda que a consolidação do transporte público e de qualidade como um direito da cidadania e o recuo da Polícia Militar fascista de São Paulo, que foi obrigada a abandonar a postura truculenta e repressora das primeiras manifestações, podem ser consideradas as duas primeiras vitórias – concretas e simbólicas – do movimento. “O que está nas ruas é um evidente questionamento sobre para onde vai a riqueza produzida pelo país, se ela vai servir à eterna concentração ou se vai ser destinada à cidadania. Essa agenda é clara. Só não vê quem não quer. Ou quem tem medo e quer fragmentar e dividir”, avaliou.