Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Um movimento que começou com manifestações pontuais contra o aumento do valor das passagens de ônibus e metrô (que passaria de R$3,00 para R$3,20, em São Paulo), no início do mês de junho, acabou se transformando num mar de gente ocupando ruas, avenidas e praças em todo Brasil. Na quinta-feira, 20 de junho, de acordo com dados oficiais, cerca de 1,2 milhão de manifestantes tomaram a avenida Paulista, em São Paulo, a Praça Sete, em Belo Horizonte, a Candelária, no Rio de Janeiro, e a Esplanada dos Ministérios, em Brasília, apenas para citar espaços públicos de algumas das principais capitais do país.
O que a situação tem de superlativa não tem de consensual. É impossível dizer que as pessoas que saíram às ruas com cartazes, bandeiras e vinagre ali estavam pelas mesmas razões ou motivações. Principalmente depois que vários prefeitos e governadores decidiram baixar as passagens para os patamares anteriores e vieram a público para anunciar a mudança, os protestos deixaram de ter uma causa facilmente reconhecida. Os gritos e bandeiras passaram a ser difusos, deixando analistas, sociólogos e autoridades perplexos, atônitos.
Para deixar a situação toda ainda mais complexa, as manifestações tornaram-se violentas. Houve vandalismo, saques e tentativa de invasão a prédios públicos. Dos gritos e canções que clamavam por maior direito à mobilidade urbana do início para os protestos que pediam impeachment da presidente Dilma, fim dos partidos políticos e derrubada da PEC 37, houve uma evidente mudança de agenda. O que se viu foi uma guinada à direita, conservadora. Tanto assim que o Movimento Passe Livre que, de alguma maneira, capitaneava os atos até a última 5ª feira, dia 20/06, achou por bem sair das ruas para um período de reflexão e avalição dos rumos do movimento. Diante dos protestos, na sexta-feira, 21, a presidenta Dilma teve de vir a público e, em seu pronunciamento, lançou as bases do que pode ser o início de um novo pacto federativo em relação à mobilidade urbana. No entanto, no sábado, 22 de junho, grandes manifestações ainda aconteceram.
Nos últimos 20 anos, o filósofo Gilberto Tedeia, professor da Universidade de Brasília (UnB), vem se dedicando a estudar manifestações ligadas à vida nas cidades e está acompanhando de perto as movimentações dos últimos dias. “Os públicos foram mudando, os atos começaram com um perfil e foram ganhando outros desenhos. Precisamos tentar entender o recado que essas populações estão dando”, sugere. Para ele, compreender com mais profundidade o momento histórico que o país está passando pode ser a senha para conhecer melhor o Brasil que virá pelos próximos anos. “Principalmente o cenário político que vai precisar mudar para atender às demandas da população que quer transformações, mas ainda não sabe quais, com clareza”, completa.
A Revista Giz entrevistou o professor em dois momentos: logo após a grande manifestação que começou na Praça da Sé e chegou à Prefeitura de São Paulo, que quase foi invadida, e, dias depois, quando a tarifa já havia sido reduzida, mas as pessoas insistiam em ir para as ruas (dessa vez para hostilizar partidos políticos e pedir o fim da corrupção).
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Revista Giz – Professor, corre pelas redes sociais uma frase que diz que “quem não está confuso é porque não está bem informado”. Olhando o histórico das manifestações que varreram o país nos últimos 15 ou 20 dias é muito difícil entender o que está acontecendo. Na opinião do senhor, que situação é essa que o país está vivendo?
Gilberto Tedeia – É exatamente isso. Quem achar que sabe com toda certeza o que está acontecendo, ou está desinformado, ou está enganado. A verdade é que não sabemos o que está se passando. O que temos são indícios e é sobre isso que podemos conversar. Entendo como um chamamento para pensar sobre tudo o que está havendo. Um momento privilegiado para pensar sobre tudo, mas principalmente sobre pensar o que é política e o que é fazer política em tempos atuais. A primeira reflexão é: o que aconteceu no início das manifestações aqui no Brasil é muito parecido com o que tem acontecido em vários outros lugares do mundo, principalmente no que diz respeito à ação da polícia sobre os manifestantes. Uma das mensagens do nosso tempo é: por que os Estados, inclusive os democráticos, têm respondido às manifestações populares enviando a polícia e com ordem para reprimir com violência? Na Espanha é assim, em Paris, em Londres, na Turquia, no Egito… A política vem sendo tratada como um modo de gestão de populações num território em que essa população é tida como inimiga. Esse modo de lidar com a população começa a mostrar que a política não é mais a busca por negociação de consensos. E o que está virando então? Temos muita dificuldade de entender isso.
E, ao mesmo tempo, as pessoas na rua pedem outra forma de fazer política, porque a que temos não atende mais…
Exatamente. Por outro lado, temos um esgotamento dessa forma de fazer política. Um modelo muito pautado em partidos, em movimentos sociais, em grupos com uma atuação bem conhecida nas casas parlamentares. Podemos dizer que esse modelo é o resultado de uma atuação muito forte do PT, foi por isso que o Partido dos Trabalhadores lutou desde que nasceu, em 1980. É, portanto, uma conquista. Ao mesmo tempo, batalhar por tudo isso tinha como objetivo, chegar ao poder para disputar modelos, projetos. E, em 2002, quando finalmente o partido alcança o governo federal, toma uma série de medidas que faz avançar o país em uma série de aspectos. No entanto, para conseguir tudo isso, o partido se desliga um pouco das práticas políticas clássicas e opta por um modelo gerencial, técnico.
A polarização PT-PSDB ajudou a empobrecer o debate e a desgastar a relação que as pessoas têm com a política?
Exatamente. As novas gerações não se veem refletidas no “Fla X Flu” da política brasileira mais recente, que é a batalha do PT contra o PSDB. E se não se identificam nem se projetam nessa situação, abre-se um espaço vazio a ser preenchido. Um espaço simbólico, que ainda não encontrou quem o represente. Por isso as manifestações contam com pessoas da esquerda mais radical e da ultradireita na mesma praça. Gente que quer transporte de graça e gente que quer a ditadura de volta. Quando existe um vazio simbólico, as pessoas apelam para ideias variadas.
E por que agora, professor? Por que nesse momento? O país vai bem, as pessoas têm emprego…
Pois é. Parece que a gente não quer só comida, não é? O Movimento Passe Livre, que de alguma maneira encabeçou os protestos – ao menos no início –, pode agradecer à polícia. Não porque seja bom ser reprimido e ainda mais com violência. Mas foi a ação truculenta da polícia que permitiu que outras pessoas se aproximassem e passassem a defender a legitimidade do movimento. É curioso mesmo que tenha ganhado a simpatia das pessoas, inclusive de gente que jamais concordaria com isso. Basta pensar que a última grande manifestação em São Paulo, a dos professores da rede oficial de ensino, também foi reprimida pela polícia e – até aquele momento – o discurso é de que manifestante é vagabundo, que protesto atrapalha o trânsito, que é coisa de baderneiro e arruaceiro do PT e da CUT. Foi a ação da polícia, somada a um momento raro em termos social, que fez as pessoas aderirem. Veja que não estou dizendo que as pessoas aderiram à causa, ou ao MPL. Começaram a defender o direito de os outros se manifestarem sem apanhar covardemente por isso. O fato de a mídia ter sido atacada contribui também. O discurso dos meios de comunicação mudou no dia seguinte e a população comprou essa versão de que a violência da polícia havia sido desmedida e covarde.
Até a manifestação em que a polícia foi violenta, o público era um. Depois daquele dia, mudou a cara dos manifestantes. Quem era esse segundo grupo?
Isso. Começa com o MPL, mas depois escapa ao controle. E aí entra uma disputa pela pauta. As pessoas começam a se sentir impelidas a dizer o que pensam. Mas não tem grupos organizados. Tem o MPL e mais um grupo de indivíduos dispersos. Podemos dizer que uma das questões de fundo – e que se mostra muito promissora – é a percepção de que a vida na cidade não está boa, de que as pessoas querem ter mobilidade e acesso à cidade, coisa que não tem hoje. Podemos dizer, em termos sociais e econômicos, que a apropriação da cidade pelo capital, pelos grandes grupos econômicos, não tem deixado a população muito satisfeita. É um sentimento de que “como está, não dá”, satura. Aí, qualquer pretexto serve. E esse era o cenário, ao menos até quinta-feira, dia 20.
Antes de falarmos o que mudou no dia 20, o senhor pode falar um pouquinho sobre a relação entre as manifestações e as redes sociais? Parece que, se por um lado ela ajuda a aglutinar, por outro não é mais suficiente.
As pessoas saíram do Facebook. Os cartazes também diziam isso. Acho que é inegável. Foram impelidas a isso. A capa da Veja, a agressão da polícia, a justeza do pedido por redução da tarifa e tal levaram as pessoas a vencer as dificuldades de ocupar as ruas e pedir o que acham certo. Estar na rua traz uma série de implicações. Mais ou menos promissoras. A primeira é que as pessoas começam a se dar conta que ideias existem para ser trocadas. Que o embate de ideias faz parte do jogo democrático, para além dos “likes e blocks”. A parte complicada é que esse mesmo embate pode se voltar para algo mais violento, mais intolerante entre os próprios manifestantes. Outra coisa que os manifestantes perceberam é que atrapalhar a vida na cidade é legal e não um estorvo. Talvez esse discurso, tão comum em São Paulo, mude um pouco. Vamos aguardar.
Então vamos à mudança do perfil dos manifestantes depois do dia 20. Quem eram aquelas pessoas que quiseram continuar na rua mesmo depois da redução da tarifa? Que não admitiam partidos políticos, que mudaram totalmente a pauta de reivindicações?
Emergiu a generalização do sentimento de descontentamento e de modo difuso. Como a ocasião faz o ladrão, tal descontentamento foi apropriado rapidamente pelas forças políticas que, desde o mensalão, tentam torpedear o PT, as esquerdas, as conquistas sociais. A generalização da pauta acabou atropelada por esse modo pré-político de querer tudo-aqui-agora sem cuidar de pensar as mediações ou as instâncias, interlocutores ou lugares com quem dialogar ou a quem pressionar. Deu no que deu: além de descobrirmos que ainda existe cartolina à venda nos bazares, só faltou quem quisesse revogar a lei da gravidade por ser totalitária e corrupta…
Então a sensação que muitos relatam de que tudo mudou, que o clima mudou, que a pauta popular foi engolida e que o clamor pelo novo foi engolido pelo velho discurso moralista ganhou espaço faz sentido?
Ah sim. Quando falamos de tudo, não estamos falando de nada. Sabemos que a direita aqui, ao contrário das dos países de língua espanhola, não é muito boa em concentrações populares. Tentou de tudo, com o mensalão, desde 2005 até a cobertura em tempo integral do julgamento feito para coincidir com as eleições de 2012. Sem sucesso. Agora, finalmente as forças de direita conseguiram sair do estado de coma em que vivia respirando por aparelhos (dois deles mais importantes são o STF e os cinco grandes grupos midiáticos). De novo, é positivo, isso não é motivo para escândalo, e é melhor que seja assim, pois podemos discernir com maior clareza de que lado cada grupo está. Se é lamentável a somatória de equívocos e autoenganos que observamos, é justamente esse conjunto de desenganos que fazem da luta política algo coletivo, a ser tecido com consciência, crítica e de modo coeso. É quando chegamos naquele ponto que te falei: temos de nos sentar, discutir, ir às bases, levantar dados. É o estágio em que nos encontramos.
Crédito da foto: Marcelo Carmargo/ABr