Elisa Marconi e Francisco Bicudo
No início de 2009, o engenheiro ambiental Ricardo Manca decidiu encarar o mestrado (emendaria com o doutorado) na Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp. Naquele momento, embora estivesse atento e preocupado com a gestão da água no estado de São Paulo e a situação dos reservatórios já não fosse exatamente confortável, o sinal amarelo ainda não tinha sido aceso. “O Cantareira, por exemplo, contava com 60% ou pelo menos metade de sua capacidade. Um número bastante administrável”, lembra Manca. Mesmo assim, ressabiado, ele achou por bem problematizar o cenário e lançar algumas questões incômodas. “E se acontecesse um problemão? E se tivéssemos uma situação muito difícil com a água? O que fazer? Como poderíamos usar a água em situações adversas?”, lembra, ainda que não imaginasse, reforça, que suas preocupações muito em breve sairiam do campo das suposições e entrariam com força na vida cotidiana dos paulistas.
Não demorou muito e, à medida que o mestrado dele, orientado pelo professor José Gilberto Dalfré Filho e co-orientado pelo professor Antonio Carlo Zuffo, avançava, os reservatórios do estado iam, paulatinamente, minguando. E então, em 2011, a Agência Nacional de Águas, ANA, divulgou seu Atlas da Água. O documento deixava muito claro que se até 2015 não fossem tomadas medidas importantes de infraestrutura, iria faltar água em São Paulo. “Até aquele momento, as discussões estavam focadas na gestão de riscos, porque São Paulo historicamente perde muita água tratada e polui demais suas fontes de água”, explica o engenheiro ambiental, “mas a chegada do Atlas da ANA mostrou que o momento da crise não era mais hipotético, estava de fato acontecendo”. A divulgação da situação real não chegou a mudar o objeto de estudo da pesquisa de Manca, mas cobrou um novo posicionamento. “Se antes estávamos discutindo só a gestão de risco, agora precisávamos discutir e propor ideias para enfrentar a situação a que o estado chegara. É exatamente a diferença entre risco e crise”.
E, nesse ponto, o pesquisador da Unicamp, com apoio dos orientadores, voltou-se mais a um conceito que explica bem a crise hídrica que São Paulo atravessa e que traz algumas sementes para a solução da questão. “Por que o estado chegou a esse ponto? Porque historicamente trabalhamos com a gestão de oferta. A economia de mercado faz a sociedade trabalhar assim”. Em outras palavras, retiramos tudo o que precisamos da natureza, usamos e devolvemos estragado ou poluído, contando com a capacidade que o meio ambiente tem para recuperar o que sobrou. “De fato, a natureza tem esse poder, mas ultrapassamos esse limite e, sozinho, o meio ambiente não consegue mais resolver”, alerta Manca. A ideia dele é, portanto, começar a difundir o conceito da economia de espaçonave, em substituição à economia de mercado. “Quando a gente pensa num ambiente fechado, que não tem acesso a água, como uma espaçonave em órbita, temos que começar a encontrar soluções factíveis para usar com inteligência, não desperdiçar e reaproveitar toda a água. É o que acontece com os astronautas no espaço sideral. Reaproveitam cada gota de água”, defende.
Manca garante que conhecimento e tecnologia para gerir assim os recursos hídricos existem de sobra no Brasil. “Tem muita pesquisa, com ideias bem razoáveis, fáceis de aplicar, com respostas em curto, médio ou longo prazo. Na Unicamp e fora dela também. Nós encontramos várias no levantamento bibliográfico para o mestrado e o doutorado”, afirma. Se não é inteligência o que falta? Por que essas ações não são implantadas? Na tese de doutoramento de Manca, são apontadas duas razões graves. A primeira é o ideário simbólico que continua sendo reproduzido no Brasil: temos água de sobra, somos um país de rios caudalosos, o Amazonas é o maior rio do mundo, nossas usinas hidrelétricas são obras primas da engenharia e só existem porque temos água, água que nunca vai se acabar. Se as afirmações anteriores não são de todo incorretas, fazem as autoridades não entenderem que a água é – sem margem para discussão – um recurso finito. Água tratada e potável então é um recurso finito e raro. Assim, tanto para o engenheiro ambiental como para qualquer outro especialista em recursos hídricos, é inadmissível que o estado de São Paulo, por exemplo, desperdice entre 35% e 40% da água tratada que produz. “Da mesma forma que não dá para aprovar que os gestores continuem focando na oferta, quando todos os estudos indicam a gestão da demanda. Ou seja: tratar o que já retiramos e entregar recuperado para a natureza, para que sempre tenhamos acesso ao recurso em boas condições”, propõe Manca.
O segundo aspecto é que, de forma geral, os especialistas até fazem parte dos governos, mas não tomam as decisões finais. “Na pesquisa do doutorado, perguntamos a vários especialistas que trabalham com a gestão da água no estado de São Paulo o que eles fariam para mitigar a crise hídrica em São Paulo”, conta o pesquisador. Ele revela o que ouviu: “e todos os especialistas responderam que conhecem e utilizariam as ideias de reuso e despoluição. Eles também sabem que trabalhar com a gestão de demanda – em vez de gestão da oferta – é mais barato e que o retorno é rápido”, aponta Manca. No entanto, a constatação mais desanimadora do levantamento é que “apesar de tudo isso, não são os pesquisadores do tema os detentores da palavra final”, lamenta.
Nas conclusões da sua pesquisa, Manca optou por não apontar soluções definitivas. Para ele, as saídas já são conhecidas pelos gestores. Carecem apenas de implantação. Entretanto, para mostrar que a virada pode ser mais simples do que se imagina, o pesquisador retoma o que aconteceu com o rio Reno, na Alemanha. Conhecido como a “cloaca do mundo”, devido à poluição em que se encontrava, o Reno foi alvo de um processo de despoluição moderno – com técnicas usadas e conhecidas no Brasil. Em 20 anos, estava invejável. Em 30 anos, as águas foram consideradas despoluídas. Mas não parou aí. “A despoluição no trecho de Berlim levou os municípios que despejam água antes da cidade a serem cobradas quando enviam poluentes. E o mesmo vale para as cidades que recebem água limpa depois de Berlim. Ela tem de pagar pela água limpa”, conta. É assim, quando respinga no orçamento, que os gestores começam a se mexer com a velocidade que o problema pede, aposta o engenheiro ambiental.