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Destaque

Histórias de fracassos

Por Francisco Bicudo, de Paraty

“Formas da derrota” foi o tema da conversa que reuniu os romancistas pernambucano José Luiz Passos, autor de “O sonâmbulo amador” (2012), e o gaúcho Paulo Scott, que escreveu “Habitante irreal” (2011) e acaba de lançar “Ithaca road”. Como fio condutor do papo, a constatação de que há histórias, antigas e contemporâneas, marcadas por tons pessimistas e que, de antemão, anunciam a impossibilidade de enredos felizes e harmônicos. Os personagens dessas narrativas são sujeitos que buscam permanentemente realizar seus sonhos, sem jamais conseguir concretizá-los. Flertam com o fracasso. Em sua provocação inicial, e como exemplo categórico dessa forma de enredo, o mediador João Gabriel de Lima, da revista Época, citou o romance “Madame Bovary” (1857), de Gustave Flaubert, que, segundo ele, pode ser considerado um dos livros fundadores do romance ocidental – e que compartilha exatamente a história de uma mulher derrotada, que almeja o grande e perfeito amor, mas não é dona de seus próprios desejos. “De certa forma, todos nós que escrevemos a partir de então somos filhos dessa derrota original”, completou Lima.

O mediador lembrou então que Jurandir, o personagem principal da mais recente obra de Passos, é um homem de 60 anos, que contabiliza perdas ao longo da vida – de sua paixão, do filho, do melhor amigo. Narelle, protagonista de “Ithaca road”, é uma índia neozelandesa, maori, que vê o irmão desaparecer, herda dívidas e se envolve com criminosos. Lima questionou: “como acontece para vocês essa aventura da criação?”.

Passos contou que, como desdobramento de seu primeiro romance, queria narrar a história de alguém que manifestasse profundo desencanto com a realidade, sem que tivesse essa clareza ou percepção, e sem também precisar explicar objetivamente essa característica para o leitor. Decidiu apostar em alguém que sonha. Mirou-se em Dom Quixote, desenvolvendo a ideia de que as amizades que compartilhamos nos levam muitas vezes a investir em ações que não nos são apenas sugeridas, mas impostas. “O Jurandir é alguém de quem se espera um relatório sobre erros cometidos durante a vida que ele próprio não compreende”. O autor levou seis anos para escrever o livro – e inspirou-se ainda em episódios muito, muito próximos. Enquanto escrevia, decidiu visitar uma usina química de cana-de-açúcar onde o avô havia trabalhado nos anos 1930. Depois de apresentar-se com evasivas e algumas mentiras, a pessoa que o recebeu lembrou-se do avô. E ainda foi capaz de encontrar na clínica da usina o médico que tinha feito o parto de Passos. “Um clima de profunda nostalgia nos envolveu. Era uma história extraordinária, do ponto de vista afetivo”. Segundo o escritor pernambucano, foi a chave para engatar a história de pessoas que ficam imobilizadas pelas lembranças. “Era alguém que ficara, mas que ainda sonhava e tinha esperanças. O Jurandir também nasceu dessa maneira”.

“Queríamos construir um futuro acima de qualquer suspeita. Mas o sonho foi perdido. De alguma maneira, meus livros promovem esse acerto de contas” (Paulo Scott)

Scott preferiu revelar o nascimento da índia Maína, uma das figuras importantes de “Habitante irreal”. Ele lembrou que estava viajando pela BR-116, no trecho que liga Porto Alegre a Pelotas, quando se deparou com um acampamento indígena à beira da estrada. Eram índios que já não conseguiam sequer espaço em aldeias, e lá estavam, abandonados à própria sorte. Àquele cenário, somou informações de altas taxas de suicídio entre adolescentes indígenas, em distintas aldeias e etnias. “Eles não conseguem entrar no nosso mundo. O diálogo com os nativos é sempre muito difícil, em qualquer lugar. E eles continuam sendo exterminados, dizimados. Poucos são os que prestam atenção a essa tragédia. Maína nasceu dessas inquietações”. A obra tem ainda como trama de fundo as desilusões políticas, marcadas pela chegada, pela primeira vez, de um partido de esquerda à administração da capital. No entanto, no exato momento em que o governo se constitui, bandeiras de luta são abandonadas e a barganha por cargos se impõe, deixando para trás os sonhos de uma geração. “Foi por isso até chamado de romance profético”, lamentou.

O mediador sugeriu nova provocação: “a crítica diz que trabalham com pequenas realidades e que falta a vocês ambição para escrever o romance de uma geração…”.

O autor pernambucano sorriu de leve. Disse que não saberia como escrever algo que representasse a geração dele, até porque a literatura brasileira atual é múltipla, plural, a lidar até mesmo com realidades que não são nacionais. Reforçou que procura desenvolver histórias nas quais há pequenos canais que nos conectam a um passado que irrompe e de onde algumas questões voltam para nos atormentar. O que ele almeja é entender a complexidade dessa relação temporal, que não raro nos cobra preço alto. “É a minha questão. Não sei se é a da minha geração”. Scott aproveitou a deixa e, num desabafo, reforçou que o fato de a geração dele ter falhado em suas experiências políticas e de ter prometido uma democracia que jamais foi capaz de colocar em prática é algo que o incomoda profundamente“Queríamos construir um futuro acima de qualquer suspeita. Mas o sonho foi perdido. De alguma maneira, meus livros promovem esse acerto de contas”, reconheceu.

“Escrevo para contar histórias de pessoas que arcam com consequências de escolhas e decisões que elas não tomaram. Para mim, imaginar essas narrativas significa chamar a atenção para o atual estado das coisas” (José Luiz Passos)

Foi inevitável: “vocês acham que uma geração será sempre responsabilizada pelos erros cometidos pelas anteriores?”, Lima insistiu e cutucou. Passos foi mais do que rápido no raciocínio: “Escrevo para contar histórias de pessoas que arcam com consequências de escolhas e decisões que elas não tomaram. Para mim, imaginar essas narrativas significa chamar a atenção para o atual estado das coisas”. Scott foi sucinto. E perspicaz: “Acompanho o senhor relator!”.

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