Elisa Marconi e Francisco Bicudo
No final de fevereiro último, a Anistia Internacional, organização não governamental atuante em mais de 160 países, divulgou seu tradicional relatório anual – “O Estado dos Direitos Humanos no mundo”. O documento é sempre aguardado com ansiedade, porque traz dados atualizados, sistematizados com rigor e oferece análises sobre temas como segurança pública e violência policial. Este ano não foi diferente. Com números e informações coletados em 2014, os pesquisadores apontaram um cenário nebuloso e preocupante, com agravamento de diferentes situações de violações dos direitos e da dignidade humana, no Brasil e em outras nações.
O trabalho da Anistia Internacional acontece em duas frentes. A primeira diz respeito a uma agenda de campanhas permanentes pelos direitos de minorias étnicas, LGBTs, mulheres etc. E a segunda, de onde resultam seus relatórios, são as pesquisas propriamente ditas. Nesse sentido, em termos globais, o que mais preocupa é o crescimento de grupos armados que disputam o poder em vários países e, como estratégia de imposição, violam os direitos humanos sistematicamente.
“Quando a Anistia Internacional afirma que houve um caso de desrespeito aos direitos humanos é porque certamente houve mesmo e aconteceu de maneira muito próxima ao que está nos registros da entidade”
“São os casos do Estado Islâmico e do Boko Haram, por exemplo”, explica o advogado brasileiro Alexandre Ciconello, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional e um dos pesquisadores que ajudou a redigir o relatório anual. As guerras civis que não arrefeceram, ou que se agravaram, também chamaram a atenção no ano passado. A situação da Síria, por exemplo, assusta. “São milhares de refugiados que perdem não só a terra natal, mas também todas as condições de dignidade humana”, lembra o advogado. “Mas assusta mais a resposta tímida que as autoridades internacionais, como o Conselho de Segurança da ONU, estão dando ao conflito”, completa. Outros grupos de refugiados da África e Oriente Médio também figuram no documento, que destaca ainda a migração acelerada e a recepção complicada e muitas vezes desastrosa desses migrantes em países europeus, o que agrava ainda mais a situação. O fato, sentencia Ciconello, é que em relação aos relatórios anteriores, houve de fato uma piora nas condições dos direitos humanos para diferentes populações.
Ele garante: “Nós temos um método já bem conhecido e respeitado. Vamos a campo, falamos com as fontes primárias em mais de 160 países e assim estamos bem perto de onde as violações acontecem, onde as vítimas estão”, explica o assessor. Por isso, defende Ciconello, “quando a Anistia Internacional afirma que houve um caso de desrespeito aos direitos humanos é porque certamente houve mesmo e aconteceu de maneira muito próxima ao que está nos registros da entidade”.
Foi o que aconteceu no caso da morte do dançarino DG, que trabalhava com Regina Casé, na TV Globo. A Anistia Internacional foi rapidamente ao local onde se deu o suposto assassinato e também ao Instituto Médico Legal e com os métodos de pesquisa, conversando com testemunhas e com moradores da comunidade em que o dançarino vivia, pôde atestar, quase sem margem de erro, que a cena do crime tinha sido violada. “Agora, na semana passada, saiu o laudo da polícia criminal, um ano depois, afirmando que a camisa entregue pelos policiais nem possuía marca de tiro, ou seja, mostrando que houve adulteração”, reforça o advogado.
Ter dados confiáveis em mãos favorece a atuação nas campanhas encabeçadas pela organização. No assassinato de DG, por exemplo, a Anistia Internacional lançou a chamada ação de urgência, para pressionar as autoridades. “É uma medida máxima que os militantes dos direitos humanos utilizam quando querem mobilizar a sociedade e as autoridades para algum caso grave. Via representações na Justiça e em instâncias de direitos humanos e via redes sociais também, buscamos atingir o maior número de pessoas para que uma dada situação seja olhada com afinco. No assassinato do DG, não dava para levar no mesmo ritmo de sempre. É um caso grave e emblemático”, afirma.
Quando explica esse episódio em especial, Ciconello, na verdade, ajuda a desvelar a situação de profunda atenção e preocupação específica que o Brasil representa no relatório de 2014. “É muito grave a situação do Brasil. Porque somos o país que mais matou no mundo. Não estamos em guerra e da década de 1980 para cá, mais de 1,2 milhão de brasileiros foram mortos. Esse número alarmante supera o número de mortos em países que vivem conflitos sérios, como Iraque e Palestina juntos”, alerta o assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional.
Os dados, de fato, são alarmantes. O capítulo dedicado ao Brasil no documento aponta que, a cada ano, cerca de 56 mil pessoas são assassinadas no país. Dessas, 30 mil, em média, são jovens. E, desses, 77% são negros. “Ou seja, não é só um número elevado de vítimas, é que o assassinado no Brasil tem uma cara. Todos sabem quem é”, indica Ciconello, “e tudo fica ainda mais sério porque mesmo com esses níveis alarmantes, piores que de países em guerra, que fragilizam um grupo muito específico, ainda assim, não há uma política nacional para redução desses crimes”, provoca.
Mais do que documentar realidades, a Anistia Internacional envia às autoridades constituídas e à sociedade civil uma cópia do relatório global e cobra providências e políticas públicas para responder às violações aos direitos humanos. Aqui no Brasil, a organização defende a instalação de uma política nacional para redução de homicídios. “Nos mesmos moldes do que aconteceu com o combate à fome. Começou ainda nos anos 1990, com as campanhas do Betinho [o sociólogo Herbert de Souza], se aprofundou no governo Lula e avançou no governo Dilma. Passou a ser uma bandeira do país todo e se conseguiu um resultado admirável em 20 anos”, relembra o advogado. Acontece que os entraves para a redução da violência no Brasil são muito maiores, porque, em grande medida, as violações ou são cometidas pelo Estado, ou não são combatidas na origem pelo Estado.
“É muito grave a situação do Brasil. Porque somos o país que mais matou no mundo. Não estamos em guerra e da década de 1980 para cá, mais de 1,2 milhão de brasileiros foram mortos. Esse número alarmante supera o número de mortos em países que vivem conflitos sérios, como Iraque e Palestina juntos”
Primeiro, afirma Ciconello, é preciso entender que o pacote das violências em destaque no Brasil, de acordo com o relatório global, vai além dos assassinatos. O documento atesta violência policial, tortura e falência do sistema prisional. Junte-se a isso, nas palavras do próprio relatório: “a alta letalidade nas operações policiais, em especial nas realizadas em favelas e territórios de periferia; o uso excessivo da força no policiamento dos protestos que antecederam a Copa do Mundo; as rebeliões com mortes violentas em presídios superlotados, e casos de tortura”.
Temos aí os ingredientes de uma crise importante na segurança pública. O requinte de crueldade, para o assessor da Anistia Internacional, é que talvez o principal motivo para não enfrentarmos abertamente a questão da violência crescente e desmedida no Brasil é a noção equivocada de que somos um país pacífico, uma democracia racial, tolerante e acolhedor. Ao mesmo tempo, o discurso da guerra ao terror, que legitima a atuação da autoridade fora da legalidade e conta com o apoio de parte considerável da população, cresce e repercute a olhos vistos. “No fundo, esse discurso justifica que a vida de uns vale mais que a de outros. O Estado, ao contrário, deveria tomar todas as medidas possíveis para manter a vida de todos os cidadãos. Sem exceções. Diferenciar o valor do cidadão agrava a crise. Os números mostram que a violência policial cresce junto com os casos de roubo, assalto, estupro e agressões”, sugere Ciconello.
O relatório “O estado dos Direitos Humanos no mundo” mostra as feridas, mas também propõe soluções. O documento deste ano sugere duas grandes linhas de ação. A primeira é a mais polêmica e que certamente encontrará mais obstáculos: democratização da polícia. “Essa instituição ainda não passou pela democratização, continua agindo como braço armado – muitas vezes na ilegalidade – do Estado. Não é cobrada, julgada, punida, auditada, nada. Também não é eficiente, porque não soluciona crimes, e não cumpre aquilo que deveria ser seu papel primeiro: a proteção da população”. Ou seja, a Anistia Internacional pede uma verdadeira reforma nas polícias. “Caso contrário, os jovens negros e pobres vão continuar sendo assassinados”, alerta.
A segunda sugestão presente no documento é aquele pacto nacional pela redução de homicídios. “Estamos cobrando os governos estaduais e federal para sairmos do mapa dos homicídios, assim como saímos do mapa da fome. Medidas efetivas de curto, médio e longo prazo. 56 mil assassinatos anuais é o argumento mais forte que temos”, finaliza Ciconello.