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Cultura

Vida nas ruas

By 28/05/2015No Comments

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Um passeio rápido pelas ruas centrais de São Paulo já é suficiente para colocar o visitante diante de um dos mais delicados problemas sociais da megalópole: homens, mulheres e crianças que vivem em situação de rua. No entanto, enquanto a maior parcela das pessoas procura desviar dessas figuras, seja por medo, por desgosto ou até mesmo por simplesmente desejar ignorá-los, o Núcleo de Apoio à Pesquisa Centro de Estudos Rurais e Urbanos (CERU) da Universidade de São Paulo (USP) resolveu enfrentar a questão, conhecer mais de perto e fazer uma espécie de censo da população em situação de rua. “As pessoas têm muito medo do morador de rua, ou da pessoa em situação de rua. Acham que são assaltantes, que são drogados ou loucos, que podem ser violentos. Além disso, têm o cheiro e a aparência, tudo causa repulsa e afastamento”, diz a pesquisadora Maria Helena Rocha Antuniassi, uma das diretoras do CERU e líder do levantamento feito entre 2009 e 2011.

O fato, no entanto, é que essas pessoas estão aí, chamando a todo instante a atenção da população que tem endereço físico e requerendo cuidados especiais das autoridades públicas. Não adianta agir como avestruz. O desafio de inclusão é de todos nós. E foi justamente para entender melhor quem eram e quais eram as necessidades dos cidadãos em situação de rua que a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social de São Paulo (SMADS), que, na época, era comandada por Alda Marco Antônio, vice-prefeita do governo Gilberto Kassab, encomendou a pesquisa ao CERU. “A secretaria precisava entender melhor a trajetória dos homens e mulheres em situação de rua, o que os tinha feito chegar àquele ponto. Eles queriam conhecer, em especial, a situação dos chamados albergados, que moram, ou se hospedam, nas casas de acolhimento da prefeitura”, conta Maria Helena. Foi então que o grupo liderado por ela começou a buscar o maior número de informações sobre essa população.

Diferenças

O ponto zero mesmo foi o reforço na conceituação de população em situação de rua. “As pessoas chamam todos eles de mendigo, andarilho, ou morador de rua. No entanto, há uma diferença. A pessoa em situação de rua está nessa condição provisoriamente, é um período de passagem, até que ela se reerga. O morador de rua não. Esse se entende numa situação definitiva: não quer e não vai sair das ruas”, ensina a pesquisadora. Pode parecer um detalhezinho semântico: morador de rua X população em situação de rua. Mas não é. Como se trata de seres humanos, a condição na qual se veem faz toda a diferença. “A pesquisa centrou o foco na população em situação de rua, que são aqueles homens e mulheres que, por acontecimentos da vida, acabaram perdendo o emprego, o contato com a família e a casa”, resume Maria Helena. “Foram morar na rua, mas se utilizam de albergues e hotéis sociais, até de maneira mais permanente, por meses, moram lá mesmo, enquanto buscam novos empregos, ou contato com a família”, completa.

Segundo a pesquisadora do CERU, o que divide um grupo do outro é a perspectiva de vida. O morador de rua já desistiu – por doença, envolvimento com droga, depressão, ou outra condição – de voltar a ter uma vida mais nos moldes socialmente aceitos: família, trabalho e casa. Aquela pessoa que vive no albergue não. “Ela ainda sonha. Encontramos um rapaz que faz cursinho, porque quer entrar numa faculdade. Ele apenas não tem família nem casa, mas tem planos e visão de futuro. E ele não é o único. A situação de rua é transitória.”, vibra Maria Helena.

Depois da conceituação, a equipe de pesquisa foi para a rua propriamente dita. O objetivo era contar e conhecer os homens e mulheres em situação de rua. O que encontraram foi uma população crescente. De acordo com dados levantados pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), em 1991, a população em estado de rua na cidade de São Paulo era de quase 3.400 pessoas; em 2011, esse número já havia saltado para 14.500 pessoas. Essa população é constituída principalmente por homens acima de 40 anos (84,3%) que não obrigatoriamente têm problemas com drogas ou de saúde mental. “É importante notar que existem menos mulheres em situação de rua, porque elas conseguem mais facilmente trabalhar e morar em casas de família ou se juntar a redes de prostituição, que não as deixam na rua. As que ficam mesmo na rua, em geral, têm algum problema mental”, aponta Maria Helena. E por que mais homens? Porque, de acordo com os pesquisadores, eles ainda carregam o papel de provedores do lar. Quando, por uma somatória de razões, eles perdem esse lugar, rompem com a família e vão parar na rua. Pode ter associação com uso de bebidas alcoólicas, ou com doenças mentais, mas não são fatores determinantes. A ruptura familiar sim é uma peça chave no entendimento desse cenário.

Trajetórias de vida

Todo esse material coletado virou um livro, lançado em dezembro do ano passado. Desemprego, Ruptura Familiar e Solidão: trajetória de vida da população em situação de rua em São Paulo (Editora Anna Blume, 144 páginas, R$35,00) narra a trajetória de vida – entrevistas em profundidade – de alguns dos albergados entrevistados e apresenta as conclusões da pesquisa. Maria Helena é a organizadora e destaca que, no final da obra, os pesquisadores fazem uma série de recomendações que servem tanto a autoridades públicas, quanto a entidades assistenciais para que a vida da população em situação de rua possa, quem sabe, ganhar outro rumo. “Em primeiro lugar, sugerimos que essa população seja vista. A sociedade e o poder público tendem a ignorá-la, fingir que são invisíveis e, quando não, tratá-la com violência”, alerta a pesquisadora do CERU. Aqui, neste ponto, entram em cena a escola e o professor. “Trazer para a sala de aula essa questão é fundamental e premente. A gente só cuida daquilo que a gente enxerga. Os alunos precisam saber que essa população existe, que são seres humanos e que têm direitos como qualquer outra pessoa”, sugere. A segunda recomendação é de assistência intensa e sem desistência. “Ninguém vai parar na rua porque quer. É uma sucessão de pequenas fatalidades e projetos que vão dando errado. Por isso mesmo, é uma população difícil de lidar, mas que precisa de atendimento e apoio”, resume a organizadora do livro. “Cada pessoa que sai da situação de rua e consegue se reerguer na vida é uma vitória da sociedade toda”, conclui.

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