Por Cláudio R. Sousa*
“Eu sou mais como galinha caipira. Não boto um ovo de dia e outro de noite, sob luz artificial”
Raduan Nassar
Raduan Nassar é o célebre escritor que, ao receber um prêmio literário em fevereiro passado, fez questão de denunciar o golpe em andamento no Brasil. Porém, anterior a isto, é filho de imigrantes libaneses que chegaram ao Brasil em 1920, se instalando em Pindorama, no norte do Estado de São Paulo. Nascido em 1935, vinte anos depois mudou-se para São Paulo, onde se formou em Filosofia.
Para continuar seus estudos, em 1953, Raduan transfere-se com sua família para a capital, São Paulo, palco da efervescência das últimas vanguardas. Nassar depara-se, então, com o ambiente paulistano e sua “atmosfera cultural constrangedora”, na qual, como ele mesmo dizia, “os jovens escritores que não cediam às propostas da época eram inibidos pela falta de espaço”. Conhece também a ferrenha “briga de foice para arregimentar seguidores” entre aqueles que queriam “ser reconhecidos como a elite”, atitude que, segundo ele, termina, de modo obsceno, por “dar um tamanho às chamadas grandes individualidades que reduz o homem comum a um inseto”. (Cf. Nassar, Cadernos, 1996).
Em 1967, fundou com seus irmãos o Jornal de Bairro, um semanário que chegou a atingir a tiragem de 160 mil exemplares.
Na década seguinte, Raduan Nassar publica, em 1976, Lavoura Arcaica. Este romance, mesmo escrito durante a ditadura militar no Brasil e tematizando a violência e a constituição de valores, evita, entretanto, fazê-lo como literatura engajada, bastante comum naquela circunstância histórica.
Talvez por isso, a crítica literária institucionalizada tenha sido bastante generosa com a obra de Raduan Nassar. Reconheceu-lhe imediatamente o talento, tanto que em 1976Lavoura Arcaica ganhou os seguintes prêmios: “Coelho Neto”, da Academia Brasileira de Letras (ABL) para a categoria romance; o prêmio “Jabuti”, da Câmara Brasileira do Livro (CBL), na categoria Revelação de Autor; e “Menção Honrosa” – também Revelação de Autor – da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) (CADERNOS, 1996, p. 12)
Todos esses prêmios, no entanto, não arrefeceram o ímpeto do escritor, pois era evidente o momento de radicalização e de tomada de posição dos autores frente àquelas circunstâncias da produção cultural brasileira. Raduan Nassar, a seu modo, é um partícipe da resistência ao “vazio literário” que se instaurou nos anos de 1970.
Para o Raduan desse período, a força de criação opositiva não vinha da Poesia Concreta, nem de seus desdobramentos, nem de seus opositores. Lavoura Arcaica resgata indiretamente muitos textos alheios, todavia é feito de uma linguagem convulsionada e “percorre um trajeto singular na literatura brasileira” (SEDLMAYER, 1997, p. 21). Essa linguagem convulsionada era uma forma de resposta artística ao endurecimento do regime autoritário.
Somadas uma coisa e outra, Raduan Nassar parece superar, por meio da singularidade de sua obra, o impasse que é ver despontar o enfraquecimento dos projetos coletivos frente ao crescimento da onda conservadora proveniente da opressão política promovida pela ditadura militar, que, a esta altura, reconhecia publicamente a existência de guerra revolucionária no Brasil.
Nesse sentido, a linguagem revolta empregada em Lavoura Arcaica nos remete à impossibilidade da comunicação fluente, censura nos jornais e proibição de reuniões públicas, na realidade social do Brasil pós 1968, que passa a ser pauta do dia para os artistas. A incomunicabilidade torna-se evidente, pois não se pode mesmo acreditar no que é comunicável, seja porque a imprensa está controlada, seja porque a linguagem nos parâmetros da normalidade não dá conta da realidade difusa.
No entanto, para além da repressão, não há mais como fugir de outra força, a do mercado editorial, que ao longo dos anos 1970 (Lavoura Arcaica foi lançado em 1976) promoveu uma produção intensa também de romances bem ao gosto do público. Só no biênio 1975-76 foram publicados: Os que bebem como cães, Assis Brasil, Pilatos, Carlos H. Cony, Os sinos da agonia, Autran Dourado, Cabeça de papel, Paulo Francis, Quatro olhos, Renato Pompeu, A república dos assassinos, Aguinaldo Silva, Armadilha para Lamartine, Carlos & C. Sussekind, As meninas, Lígia F. Telles, Zero, Inácio de L Brandão, A Festa, Ivan Ângelo, e outros que poderiam inchar a lista de mais vendidos da recém-criada revista Veja. (Alguns aqui citados ocuparam o topo da lista durante meses).
Tais romances trazem as marcas históricas de suas condições de produção incrustadas na temática da repressão política ora de modo explícito, ora enviesado, sobretudo de 1975 em diante, por ser o início do processo de abertura do regime militar. Era fim do governo Médici, tempo de maior promiscuidade entre forças armadas, polícia e banditismo, e começo do governo Geisel, tentativa de higienizar as mãos dos militares após as atrocidades cometidas nos porões da ditadura.
Porém, não se pode subentender que na fase anterior, de 1964 a 1974, a literatura tivesse olvidado o tema da repressão, Quarup, de Antonio Callado, em 1967, inaugura a reflexão em torno do golpe militar. No mesmo ano, Zé Celso encena O Rei da Vela, peça escrita por Oswald de Andrade. Para recortar um exemplo que nos interessa diretamente, temos Chico Buarque (sempre contra o golpe) e Ruy Guerra que, em 1973, escrevem e montam, mas não estreiam, a peça Calabar.
A literatura desse período podia respirar, a intervalos de asfixia e gás lacrimogênio, o ar impuro de uma abertura distante.Este é o caso de Raduan Nassar em Lavoura Arcaica.
O fascinante em Lavoura Arcaica é o jogo envolvendo uma ação narrativa reduzida quase ao ponto zero, um aumento vertiginoso de parênteses, de falas que se sucedem quase sem parágrafos, vazios e intervalos capazes de torná-las menos abafadas, de palavras que se multiplicam torrencialmente. Numa bela tensão entre o não-dito (plural) e o vivido, o presente do texto (restrito), entre a imobilidade no contexto da ação e a rapidez com que se sucedem os mais diversos acontecimentos e sensações no plano imaginário. E a possibilidade sempre presente de os dois planos se cruzarem com resultados inesperados (SÜSSEKIND, 2004, p. 110-111).
No contexto específico da arte, a produção de Nassar confere um certo amadurecimento da literatura pós 1964, mas se distingue da volumosa produção literária marcadamente preocupada com a denúncia das arbitrariedades do regime repressivo ou inescrupulosamente voltada à produção de mercadorias literárias de baixo valor.
Para muitos escritores dessa geração, a literatura é entretenimento, meio de vida ou veículo de denúncia, dentro da sutileza da linguagem literária e de suas formas de mediação (o contexto, disseminado na obra, resistindo firmemente à razão instrumental e à linearidade), já que os meios de comunicação estão sob a mira direta dos censores, e o jornalista Raduan Nassar sabe disso. Porém, uma ou outra obra se livra do receituário edas proibições. Isto porque havia pouca habilidade de leitura da parte dos censores: o que não se entendia talvez passasse… A isso somava-se uma demanda crescente de textos a ser publicados; vivia-se um boom literário, dando o efeito de tolerância/indiferença por parte da censura, sobretudo em relação aos romances que se referiam à situação do país de maneira indireta, já que o público leitor era bastante delimitado.
Durante a década de 1970, em literatura, a premência é resistir documentando, o que hoje podemos dizer que foi justo, compreensível e admirável no que tange à militância política. Contudo, esse movimento de escritores, críticos e intelectuais está em conflito aberto com outros artistas (lembremo-nos da produção de um Paulo Leminski), que promoviam a experimentação da linguagem em diferentes patamares, sobretudo as formais. Por fora deste embate literário, corre um certo Raduan Nassar. Desse conflito, resulta uma hesitação crescente quanto ao futuro da literatura e, neste sentido, as experiências vanguardistas dos anos de 1950, a poesia marginal, a migração dos poetas para a música, e, por fim, o abandono da literatura por Raduan Nassar são testemunhos complexos do impasse instalado no Brasil pelo golpe de 1964.
Agora talvez entendamos melhor as palavras finais do discurso de Raduan Nassar durante o recebimento do Prêmio Camões 2016, honraria concedida pelos governos de Brasil e Portugal : “O golpe estava consumado, não como ficar calado.”
Nós, professoras e professores, nos calaremos?
REFERÊNCIAS:
Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, setembro de 1996.
CICCACIO, Ana Maria. Dúvida, a matéria-prima de Nassar. In: O Estado de São Paulo, 27/02/1981.
SEDLMAYER, Sabrina. Ao lado esquerdo do pai. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
SÜSSEKIND, Flora. Literatura e vida literária: polêmicas, diários & retratos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
Cláudio R. Sousa tem pós-doutorado pelo programa de Teoria e História Literária da Universidade Estadual de Campinas (2014-2017), doutorado em Letras no programa de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo (2009), mestrado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2002), especialização em Psicanálise: Fundamentos da Psicanálise e sua Prática Clínica pelo Instituto Sedes Sapientiae e graduação em Letras pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.