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Elisa Marconi e Francisco Bicudo

A tese de doutorado – A reinvenção da prisão: a expansão do sistema prisional no Estado de São Paulo e as consequências do encarceramento massivo (1985 – 2010) – desenvolvida pelo sociólogo Rodolfo Arruda Leite de Barros foi defendida em fevereiro do ano passado – mas permanece atualíssima. No momento em que 93% dos paulistanos (segundo o Datafolha) desejam a redução da maioridade penal, o pesquisador, que atua no Observatório de Segurança Pública da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Neto (Unesp), no campus de Marília, a 400 quilômetros da capital, chama a atenção para as características e consequências da sociedade punitiva em que vivemos.

De fato, existem razões para a sociedade estar assustada. O número de assassinatos e de jovens mortos no Brasil – dois indicativos usados amplamente para aferir o grau de violência de uma comunidade – confirma que a insegurança tem revelado sua face mais cruel. No entanto, o que a mídia em geral faz ao lançar luzes sobre esse cenário é apenas espetacularizar e fomentar a sensação de medo e de histeria coletiva, sem sugerir análises mais qualificadas ou olhares múltiplos e complexos, capazes de ir à raiz dos problemas, já que o debate é para lá de relevante e acaba tocando em pontos constitutivos do Brasil e dos brasileiros.

A reportagem da Revista Giz conversou com exclusividade com o pesquisador da Unesp; os melhores momentos dessa entrevista, você acompanha a seguir.Reforçando essa linha de raciocínio que indica mais serenidade e equilíbrio e menos afobação, Leite de Barros ajuda a contestar a referência do povo cordial, relaciona a violência à profunda desigualdade social e ao nosso histórico de desrespeito aos direitos humanos e discute a eficácia de soluções ditas endurecidas para combater a criminalidade. “Se compararmos com México ou Colômbia, ainda estamos aquém, mas somos uma sociedade violenta, sim. Some-se a isso o sensacionalismo da mídia que canaliza tudo e reproduz e aprofunda a sensação de medo e insegurança. E qual a resposta para a lógica do medo que vivemos hoje? Medidas conservadoras”, lamenta.

 

Revista Giz – Nos últimos dez anos, o senhor vem estudando os dilemas da sociedade punitiva, aquela que atrela, sem muito espaço para o contraponto, que crime se combate com aprisionamento do criminoso e que defende que redução da criminalidade se consegue com medidas restritivas cada vez mais duras. O senhor pode descrever com mais detalhes essa sociedade e as consequências dessas características?

Rodolfo Arruda Leite – Já faz bastante tempo que as Ciências Sociais discutem as políticas públicas de segurança, buscando entender como o sistema prisional se relaciona com a sociedade, como esse sistema de restrição de liberdade e punição atua como um espelho que reflete a sociedade. Dentro desses estudos, São Paulo é o principal foco, porque 1/3 do sistema prisional do Brasil está no estado. Também é aqui que há mais recursos para esse sistema e onde mais se debate essa questão. Na verdade, desde a transição democrática, no final da década de 1980, estamos pensando sobre esse tema. A ideia, naquele momento, era fazer um diagnóstico da situação carcerária, para entender o que se passa nessas instituições e, a partir disso, talvez promover reformas. Enquanto tudo isso ia sendo feito, o debate sobre a segurança pública cresceu, ganhou as ruas, a imprensa e as conversas. E, antes que se examinasse a fundo o sistema carcerário e que fossem levados a público os resultados e as propostas de transformação, houve o endurecimento penal. Em 1984, veio a Lei de Execuções Penais, que procura estabelecer parâmetros para o cotidiano nas instituições carcerárias, um padrão nas unidades. Um pouco mais adiante, vieram a Lei de Crimes Hediondos e o Regime Disciplinar Diferenciado. Em 1993, torna-se público que existem facções criminosas nos presídios que controlam ações fora dessas unidades, colocando a segurança dentro e fora do presídio em desequilíbrio. E em 2006 registramos a mega-rebelião e o ataque de policiais por criminosos controlados por presidiários. Tudo isso vai criando um cenário propício para o discurso do endurecimento penal.

Apenas para ficar claro, é possível dizer que de fato a violência aumentou nesse período, ou o registro e a divulgação dos episódios é que cresceram?

No final dos anos 1980, o Brasil, de fato, registrou uma mudança no perfil da criminalidade. Muda o jeito da criminalidade urbana também e, com isso, o discurso da violência ganha outro vulto. Estudos como o da professora Alba Zaluan (antropóloga urbana especialista em violência, uma das pioneiras no tema) mostram que, naquele período, o Brasil apresenta aumento de violência e aumento de criminalidade. E, a partir daí, as primeiras pesquisas sobre segurança pública apontam que, fundamentalmente, o sistema de segurança não conta com uma estrutura que dê conta das demandas. As delegacias, as prisões, os policiais, enfim, tudo carecia de estrutura. E quando você tem um aumento de demanda sem tanta estrutura, claro que os problemas aumentam. São problemas como o funil que a Justiça Criminal representa. Dos muitos casos relatados, poucos geravam registros no sistema para serem levados adiante, para serem investigados e esclarecidos. E essa pouca resposta gerava um clamor na sociedade, por mais policiais, por mais delegacias e presídios.

Mas por que essa sociedade pede tão prontamente o endurecimento da punição? Onde se assenta essa lógica? Por que essa é a escolha do brasileiro?

Nas Ciências Sociais, chamamos isso de modelo repressivo de segurança pública. Esse modelo traduz bem o que acontece em São Paulo. Ou seja, depois do delito vem, obrigatoriamente, a punição. E essa punição se dá através dos mecanismos do sistema de segurança pública: policial, arma, presídio. Crime se combate e se previne punindo o criminoso. E o que deve chamar a atenção é que essa versão é fartamente difundida pela mídia. A imprensa mostra os casos e, à medida que vai relatando, vai provocando maior revolta da população. E, no meu campo de estudo, chamamos isso de populismo penal. Certos líderes vêm a público cobrar maior ação do Estado, leis mais duras, mais presos na prisão, mais reclusão. E tudo isso sem pensar nas consequências.

Esse clamor por endurecimento das penas guarda relação também estreita com o período autoritário da ditadura militar?

Tem sim, claro. Na transição democrática, os debates que se estabeleceram por conta dos presos políticos, da reclusão desses jovens, dos direitos humanos, tudo isso acabou sendo engolido. As pesquisas que foram feitas sobre o sistema de segurança indicaram que nossas Instituições de Segurança se movem por procedimentos arbitrários, pouco democráticos. Nossa cultura institucional é de uma herança autoritária, profundamente autoritária. As delegacias, os presídios, as instituições – tudo funciona numa lógica muito autoritária e isso vem de antes da ditadura, mas se aprofunda ali. Quando se deu a abertura dos portões dos presídios para a libertação dos presos políticos, os pesquisadores entraram ali e descobriram que a situação era muito pior do que se imaginava. A situação dos presos comuns era muito, muito grave; as arbitrariedades eram frequentes e grandes. E a ignorância sobre aquela situação toda também era bem expressiva. Junto com essas investigações, estava no ar o discurso dos Direitos Humanos, por conta da tortura e do assassinato dos militantes de esquerda. Essa conversa acabou sendo misturada com a defesa dos criminosos e aí a força do debate se perdeu. O discurso da prevenção da violência – em contrapartida ao da punição – foi engolido. E, simultaneamente, a constatação das pesquisas nas instituições de punição revelava que a resposta dada à criminalidade não estava revertendo os crimes e isso levou a população a perceber tudo isso como impunidade. Daí a ligar a impunidade à frouxidão do sistema foi um pulo.

E a resposta dos governos então foi endurecer…

Exatamente. Em São Paulo, durante o governo Mário Covas, houve a percepção de que era preciso liberar recursos para o sistema prisional, para a justiça criminal, para a polícia e para os presídios. Era preciso apertar mais o cerco aos criminosos. O problema é que, verdadeiramente, os governos não têm o controle dessas instituições. A corrupção está ali e a falta de resultados também. O que temos estudado é que tanto uma coisa quanto outra  são consequências desse modelo, e não um desvio de caminho. Novamente, as autoridades se apoiam naquela lógica linear vinculada: se aumenta o crime, devem aumentar as prisões. É uma lógica circular, que não se discute. A herança autoritária, que traz a cultura da institucionalização da punição pelos crimes, reforça esse modelo repressivo, que traz mais e mais violência.

E o senhor defende que existe uma forte ligação entre essa mentalidade repressiva e a profunda desigualdade social que vivemos no Brasil.

A gente não pode nunca dissociar uma situação da outra. Não dá para esquecer e deixar de lado a situação histórica de déficit de cidadania e de direitos civis. Está muito presente na maneira como nos organizamos que as pessoas são diferentes e têm mais ou menos direitos por serem quem são, porque têm determinadas origens. Nesse sentido, o debate sobre os direitos humanos foi derrotado, chega a ser ofensivo para algumas pessoas levantar a lembrança de que as pessoas têm direitos. A questão desses direitos humanos é um ótimo parâmetro, porque aqui no país está no âmbito do trabalho das polícias. Em países em que o sistema político é mais consolidado, esse debate é mais sério, não se associa direitos humanos à criminalidade, porque são os direitos das pessoas todas. Outra coisa que os estudos mostram é que, de alguma maneira, o que acontece nos presídios acaba se revertendo para a sociedade. Se tem abuso de violência dentro do sistema prisional, certamente encontramos abuso de violência na sociedade. Há vários caminhos para isso acontecer. Via familiares, via comunidade, via desequilíbrio no padrão que regula precariamente polícia e economia criminal. Assim, a sociedade fica contaminada com os casos e a sensação de insegurança.

Mas somos mesmo uma sociedade insegura? Não tem certo exagero nisso?

A nossa tradição é de acreditar que o brasileiro é um povo cordial. E isso pode nos levar a um grande equívoco. Não somos nada cordiais. Somos uma sociedade violenta. A escravidão é uma marca profunda disso. As explicações sociais para a escravidão e as heranças que ela deixou, também. A desigualdade de todas as naturezas é uma violência. As taxas de homicídio do país, a grande mortalidade de jovens, os acertos de contas entre policiais e criminosos, enfim, tudo isso mostra uma sociedade com índice de violência alto. Se compararmos com México ou Colômbia, ainda estamos aquém, mas somos uma sociedade violenta, sim. Some-se a isso o sensacionalismo da mídia que canaliza tudo e reproduz e aprofunda a sensação de medo e insegurança. E qual a resposta para a lógica do medo que vivemos hoje? Medidas conservadoras.

É preciso então cuidado para avaliar o cenário?

É preciso ter muita calma, porque não dá para esquecer que o Brasil é um lugar complicado. A letalidade da nossa polícia é gigantesca. Ou seja, é uma polícia que mata sem se preocupar muito com isso, a desigualdade social e o padrão social das metrópoles empurram a gente para situações de extrema violência. A professora Vera Telles (Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) estuda, por exemplo, as fronteiras porosas entre a legalidade e a ilegalidade. Temos centenas de exemplos nas comunidades, nos acertos de contas no tráfico de droga. A gente chama tudo isso de economia do crime, e a Sociologia e o Direito, que habitualmente dão conta dessa área, têm categorias tão estanques que não conseguem trabalhar nesses pontos de contato entre o legal e o ilegal, que é tão frequente no país.

Exatamente, a legitimação do ilegalizável por parte do Estado.O senhor está falando também das ideias do professor Paulo Sérgio Pinheiro…

As pesquisas já sugerem informações dessa natureza para fomentar o debate mais qualificado? Por exemplo, a gente pode fazer alguma associação entre as sociedades mais repressivas e punitivas com situações de menor criminalidade?

Essa associação entre capitalismo e criminalidade vem sendo estudada há bastante tempo pela Sociologia, por exemplo. Mas os estudos não avançam muito, porque há uma preocupação em separar o crime da pena e o foco é sempre a pena. De qualquer maneira, esse olhar ajuda a explicar um pouco o que acontece no Brasil: desigualdade arraigada, injustiça social e falta de perspectiva. O impacto disso tudo é também violência. E é difícil fugir dos estereótipos, das associações rasas e definitivas. A visão marxista leva em conta que vivemos numa sociedade desigual e apoiada na exploração, miséria e marginalização, o que teria relação profunda com os crimes e a violência. Contudo, é preciso ressaltar que são tantas as pressões para debater esse assunto, tantas, que é difícil até estudar até que ponto a crise social gera uma sociedade mais violenta. Só como exemplo, a população que migrou do Nordeste para o Sudeste na década de 1970 sofreu muita discriminação, mas tinha, de alguma maneira, encaixe no arranjo social, servia a famílias, construiu a cidade, eram trabalhadores domésticos. Tinham lugar. Hoje, a população redundante que as metrópoles produzem não tem mais esse encaixe e perde o projeto de vida, as perspectivas. E isso sim desemboca em violência, criminalidade e em crescimento do sistema prisional. E a gente também não pode esquecer que somos uma sociedade muito conservadora e que qualquer movimento em direção à maior igualdade, oportunidades semelhantes e tal, mexe no eixo do conservadorismo, que é um balizador da nossa sociedade. E a resposta a isso é sempre violenta e mais conservadora e repressiva ainda.

E qual é a saída então?

O debate sobre a segurança pública carece de profundidade, de abertura na visão. O padrão repressivo apenas não está mudando a realidade. São Paulo é um ótimo exemplo. A conscientização da população sobre a complexidade dessa questão da Segurança Pública é um grande desafio. As pessoas precisam conhecer o país em que vivem e, aí sim, se posicionar. E, por fim, leis mais adequadas à nossa realidade, o que envolveria a imprensa. A maneira de relatar, de informar, de prestar serviço ao público.

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